Bate-Papo | Mulheres na Literatura 30/03/2021 - 13:55

Em uma live promovida pela Biblioteca Pública do Paraná para marcar o Mês da Mulher, as escritoras Giovana Madalosso, Julie Fank e Mariana Basílio discutiram a participação feminina na literatura. Leia a seguir os melhores momentos da live — que também está disponível, na íntegra, no canal youtube.com/BibliotecaPR.

 

Julie Fank: Como vocês se inscrevem dentro dessas questões que tangenciam tanto a representatividade quanto a participação feminina na literatura?

Mariana Basílio: Acho que a discussão sobre esse tema é essencial sempre. A partir do momento em que nós nos tornamos mulheres, como diz Simone de Beauvoir, a todo momento a gente sente essa opressão. Quando a gente vai para uma área das artes, a gente começa a compreender esses intermeios entre o que somos na diferenciação de gênero. Nisso a gente acaba se envolvendo nas temáticas dos nossos trabalhos, sejam em prosa ou em poesia, para que então nos reencontremos e mudemos nossas interpretações. Acredito que o nosso trabalho, a partir de cada obra publicada, vem cada vez mais aprofundando esse intermeio. Quando a gente também discute a questão da premiação que eu tive no ano passado — o antigo Prêmio Paraná que agora se tornou o Prêmio Biblioteca Digital —, acaba refletindo bastante sobre essa questão. Seja pela historicidade da temática que está envolvida em cada livro, seja pelas autoras que estão envolvidas ali e também pelos dados que são discutidos na academia. Na Universidade de Brasília, por exemplo, um dado é claro: desde a década de 1970 até o início dos anos 2000, a proporcionalidade das autoras publicadas aumentou. Eram cerca de 17% no país e hoje em dia são 27%, quase 28%.

A minha editora, a Patuá, tem um trabalho bem específico, como uma editora alternativa, de tentar equiparar isso. O Eduardo Lacerda tenta sempre fazer com que seja 50/50, pelo menos, mesmo que o que seja enviado para a editora ainda seja menos. É a discussão que eu levei para lá e para a premiação. Concorri na categoria poesia com cerca de 600 obras.  Fiquei em primeiro lugar e em segundo lugar também ficou uma mulher. Eram quatro categorias, 12 vencedores, quatro primeiros lugares. Fui a única mulher em primeiro lugar, e a única categoria que premiou mulheres foi poesia, eu e a outra poeta. Sinto que essa proporcionalidade vem aumentando a passos muito largos, mas com muita calmaria. A gente queria que fosse um processo muito mais radical, muito mais rápido, mas se olharmos a historicidade desse processo, na questão da alfabetização e do letramento, conseguimos bastante empoderamento. A massa da população conseguiu ter acesso à educação popular, uma educação básica. E agora, principalmente nas últimas décadas, vem conseguindo também ter acessos à educação do ensino superior. Meu pai e minha mãe não tiveram ensino superior. Mas eu tive, então sou reflexo dessa historicidade que envolve processos políticos e ideológicos. Envolve todos esses meandros. 

A nossa função enquanto escritoras, enquanto artistas, é sempre pontuar isso. Fiquei muito feliz de ter vencido, da minha forma subjetiva, com o meu mérito, o Prêmio Biblioteca Digital. Só que ao mesmo tempo vou continuar pontuando o meu lugar de fala, de uma mulher branca. É preciso lembrar das mulheres não brancas, das mulheres negras, da comunidade trans. De tudo que envolve ser mulher no século XXI.

Coincidentemente, uma semana após receber o Prêmio Paraná, também recebi uma outra premiação, por histórico de realização da literatura, do Governo de São Paulo. Eram 30 bolsas para serem contempladas. Eu e a Micheliny Verunschk fomos as únicas autoras entre os 30. Tanto ela quanto eu pontuamos essa dificuldade de falar mais. Como isso vem acontecendo se tantas mulheres se inscreveram? Isso me marcou muito porque em um espaço pequeno de tempo, em dezembro, me vi com essas duas premiações paralelas e pensando muito nisso. É o que a Micheliny falou: vamos convidar as mulheres cada vez mais, não devemos ter esse receio. Vamos participar cada vez mais desses prêmios e dessas iniciativas, para que a gente consiga reverter parte disso. É também um processo psicológico, emocional. É conseguir dizer: “O que eu tenho aqui é bom, vai ganhar. Vou enviar porque perpassa esse empoderamento também”. É toda uma imagética do que nós vivemos, enquanto mulheres, e que deve estar cada vez mais inserido nesse nosso cotidiano enquanto autoras.


Giovana Madalosso: Acho que a gente ainda está muito longe de chegar no lugar ideal. Não tem nenhum motivo para que a gente esteja ainda neste lugar de tão pouco destaque dentro da literatura. Vale a pena a gente pensar nas questões que nos levaram até isso aqui, que não tem absolutamente nada a ver com o nosso talento. A Mariana falou uma coisa muito legal, que eu senti sempre, desde pequena, porque escrevo desde quando me alfabetizei: o que a gente enfrenta em primeiro lugar, na vida, é uma questão de não ter a nossa voz validada como sujeito. Isso desanima, porque o trabalho do escritor é acreditar que você tem alguma coisa relevante para dizer. Então como você, que desde pequena sente que sua voz não é importante, vai querer escrever um livro? A gente tem que primeiro lutar contra isso, pra ter essa validação de voz.

Depois a gente tem muito menos tempo para escrever, porque as tarefas domésticas sempre ficam com as mulheres. Isso é uma questão histórica. A gente nunca pode escrever tanto. Depois, lá na frente, a gente encontra um mercado editorial que em princípio não estava interessado nos nossos temas, e que agora muitas vezes está. Outras vezes nem está tão interessado, mas precisa preencher um catálogo de mulheres – o que tudo bem, tá valendo. Sempre conto que o meu primeiro livro [A Teta Racional] foi muito recusado por causa do nome, por ter a temática de amamentação. Esse livro penou para ser publicado, fiquei um ano procurando editora, porque todo mundo achava o nome chulo.

A gente vive agora, na pandemia, mais um grande exemplo do que é essa situação. De novo as mulheres são as pessoas que estão mais sobrecarregadas, portanto estão escrevendo menos. Estou lendo super pouco nesse período porque não estou dando conta do recado. Está muito difícil, e olha que tenho companheiro feminista, escritor, que me ajuda bastante. E tem uma outra questão que também precisa ser discutida. Finalmente a gente chega lá e consegue ser publicada. Seja por autopublicação, por editoras menores ou por uma grande editora, não importa. Mas a gente acaba ainda replicando um padrão, acaba procurando os mesmos nomes. As pessoas mais conhecidas e famosas são as que mais aparecem, enquanto as outras continuam com seus livros aparecendo muito pouco. 

A gente tem que abrir um pouco a cabeça para a questão estética que vem com essas novas vozes. Mulheres negras, mulheres indígenas, pessoas que vêm de outras realidades que não são a realidade desse cânone branco e majoritário do qual eu faço parte e que vem ditando o que é a literatura por tanto tempo. Junto com elas vem também uma outra estética com a qual nós não estamos nem acostumados. As próprias premiações precisam em um certo ponto se abrir para esse novo tipo de voz, que talvez não vá ser aquela literatura que a gente está acostumado desde sempre, sendo criado nesse cânone clássico. Até começarmos a gostar e procurar coisas que talvez não estejamos tão acostumados. É um trabalho bem grande, estamos longe de comemorar.


Julie Fank: Há dois pontos na fala de vocês que faz sentido resgatar. A pandemia aumentou o abismo que existe entre os homens e as mulheres, tanto no mercado de trabalho quanto nos dados de publicações de artigos científicos. É um pouco mais fácil de mensurar isso em relação à produtividade literária, e já saíram pesquisas comentando que há muito menos mulheres submetendo artigos científicos à publicação justamente porque não tiveram tempo e condições de escrever. Porque ocuparam o espaço de cuidadora das famílias, dos seus companheiros ou das suas crianças.

Quando a gente traz isso para a ideia de concurso, estritamente falando do Prêmio Biblioteca Digital, percebemos que houve uma participação até bastante grande de mulheres. Mas tivemos menos participação feminina do que se esperava, e certamente tem a ver com essa falta de tempo para lapidar o romance, para lapidar um livro de contos ou de poesia e poder mandar. Além de todo esse ponto emocional e de segurança em relação à sua própria produção, de autonomia e a emancipação artística sobre sua produção, a ponto de precisar que outra pessoa diga “Olha, é bom”. Antes disso precisa ter uma autoautorização.

Como jurada do concurso, digo que talvez eu tenha sido a que mais ficou decepcionada com a minha participação, por não ter premiado uma mulher. Era um júri às cegas, os concorrentes usavam pseudônimos, não tinha como saber antes se era mulher ou homem. No final, saber que você não premiou mulheres, sendo feminista, é frustrante. Mas também faz parte desse processo de tentativa de equidade, no sentido de julgar pelas regras e não pelo nome e por tudo o que ele carrega. Mas isso suscitou uma discussão e hoje a gente está aqui falando sobre isso. 

Como é que vocês visualizam a produção de vocês, no campo individual mesmo, neste tempo de pandemia? Os temas não são mais feministas, vão muito além disso, são humanitários. Não temos mais como tirar essa marca da nossa escrita a partir de agora. Como isso afetou a escrita de vocês, de um ano para cá?

Giovana Madalosso: Algumas pessoas dizem, nestes momentos de angústia, que não conseguem escrever, o que acho bem natural. Mas estou escrevendo mais do que nunca. Gosto de ler e escrever porque “lá não é aqui”. Quando a realidade aperta muito, confesso que fujo e vou morar dentro das minhas ficções, nas minhas crônicas e comentários —  que é um pouco menos difícil do que viver nesta realidade.

Desde que a pandemia começou, eu realmente produzi muito. O Suíte Tóquio já estava praticamente pronto, mas fiz a preparação e revisão já durante a pandemia. Além disso, para aliviar a angústia, pensei no que poderia fazer para ajudar. Um amigo meu me procurou com o projeto Inumeráveis, um memorial para cada vítima do coronavírus no Brasil. Não gostamos de falar em números, mas já obituamos alguma coisa entre 10 e 20 mil pessoas. Eu me joguei durante meses escrevendo essas histórias. Tenho um carinho muito grande pelas comunidades indígenas, então durante meses fiquei ligando para as famílias das vítimas, escrevendo as histórias e revisando o que os outros participantes escreviam. 

Também escrevo para o jornal Rascunho, escrevo colunas, escrevi contos, ensaios sobre outros assuntos. É muito curioso, porque decidi que não queria trazer a pandemia para dentro do meu trabalho. Mas muitas vezes estou contando alguma história e em algum momento da narrativa alguém entra no elevador, aperta o botão, e na hora eu penso: “Vai passar álcool gel? Será que vai apertar o botão com o cotovelo?”. Acabei trazendo essa neurose para dentro dos contos, mesmo não falando desse tema. Mas ele estava tão introjetado que eu pensava nisso quando escrevia. Escolhi não trazer para dentro do que estou escrevendo até agora, porque achei que ainda não era o momento. Deixei isso pro Inumeráveis, deixei isso para as crônicas.

Geralmente tenho uma certa rejeição àquilo que marca a literatura de uma forma temporal, então não queria trazer essa temporalidade. A gente tenta, dentro da ficção literária, trabalhar com o que é atemporal, na maioria das vezes, para que a obra continue reverberando por muito tempo. Mas pelo jeito daqui a pouco até a ficção vai estar impregnada pelo coronavírus, porque ao que tudo indica a gente vai conversar com ele por muito mais tempo do que a gente imaginava. Em suma é isso, essa dificuldade de planejar a vida doméstica, crianças sem escola... Mas sou muito feliz por fazer literatura. Usando toda essa angústia, catalisando toda essa coisa negativa para fugir, para escrever. Porque com palavras é como eu sei me defender do mundo.

Mariana Basílio: Durante todo esse ano aconteceu algo bem curioso. Eu tinha ganhado uma bolsa do Governo de São Paulo, do Programa de Ação Cultural (Proac), para publicar o meu quarto livro de poesia, que se chama Mácula. A ideia original do Mácula era falar um pouco sobre a comunicação, a origem da linguagem, perpassando com os temas atuais da sociedade, com os temas de política social. Era a ideia em princípio. Isso foi há quase dois anos, antes de mandar o projeto para a bolsa. Depois que fui contemplada é que comecei a escrita. Todos os meus livros são obras que já têm as histórias definidas, são sempre livros muito diferentes e muito específicos. Comecei a fazer o Mácula, fiz as duas primeiras partes, o que deu um pouco mais de 100 páginas. Então fui passando o pente fino e senti que estava descolado do que depois foi a terceira seção, que se chama “As Confissões Negativas”. 

Quando escrevi essa seção, nós já estávamos em junho do ano passado. Fiz uma pesquisa nas redes sociais, em um período de 24 horas, perguntando qual era a grande palavra da vida das pessoas naquele momento, que era o auge da pandemia. O auge é agora, infelizmente, e muito brutalmente. Mas naquele momento, junho do ano passado, nós enxergávamos aquele momento como auge. Então perguntei: “Qual é a grande palavra da sua vida hoje?”. Mapeei essas palavras e cheguei a 50, que achei que poderia usar como títulos de poemas e, assim. contar essas historicidades em forma de poesia, nessa nova temporalidade da pandemia. 

Como a Giovana, também tenho uma predileção por não trabalhar com recortes temporais. Geralmente são recortes mais atemporais ou que cruzam nessa temporalidade entre passado, presente e futuro. Mas, neste momento, nesta pesquisa do Mácula, acabei adentrando o nicho dessa nódoa da pandemia, e dessas palavras coletivas. Então criei esses 50 poemas, que acabaram sendo mais longos e envolvem histórias que fui vivenciando nos noticiários, na mídia. E também coisas que eu lembrava da juventude, da infância, já na idade adulta. 

Giovana Madalosso: Acho que é um clássico, a gente sempre tem uma produção artística muito grande em períodos de guerra e pós-guerra. A gente é impactado por informações que nos fazem repensar tudo e isso acaba gerando uma força artística enorme. Observei desde o começo da pandemia como o trabalho dos quadrinistas e chargistas no Brasil, por exemplo, deu um salto de qualidade enorme. Acho que não tem nenhum efeito colateral positivo em nada do que está acontecendo, mas digamos que pelo menos a arte efervesce nesses momentos. Mas fiquei muito curiosa, Mariana. Teve uma incidência maior de algumas palavras quando você fez essa pesquisa? Eu já chuto “medo”, “desespero”... Conta o que apareceu mais.

Mariana Basílio: Curiosamente, eu pensei que ia ter bastante repetição, mas não teve. Algumas palavras me surpreenderam, como “coragem”, “ternura”, “esperança” — foi uma das que mais teve repetição. Todas essas com um olhar bem positivo. Outras eu pensei que iriam aparecer muito e não apareceram tanto, como “morte”, “dor”, “ausência” e “perda”. Elas se refletiram em outras camadas. Mas fiquei surpresa com palavras diferentes, até  com algumas simbologias de animais. Um dos poemas se chama “Crocodilo”. 

Julie Fank: É isso que a Giovana falou: “A palavra é a minha arma”. Essa palavra que não dá nem para a gente relativizar, esse instrumento bélico que não é mais metafórico. Quando a gente coloca isso como nosso principal motivo, nosso principal instrumento, a gente também está lembrando que a escrita e a arte são formas de resistência importantíssimas para que a gente consiga passar por isso não só sobrevivendo, mas tentando encontrar um pouquinho de vida nesse processo.

Giovana Madalosso: São formas de reflexão, porque o que está acontecendo é um achatamento intelectual muito grande. A gente teve nesses últimos anos muitas certezas absolutas, muitas inverdades. Não tem mais muito espaço para discussão intelectual. Ou é isso, ou é aquilo. E aí a arte traz essa coisa incômoda da não-certeza, da reflexão, o que é extremamente necessário nesse cenário que de repente ficou bastante emburrecido.

Julie Fank: Tem um conto da Giovana que me chama a atenção pela apropriação da forma, apropriação de outras origens, em alguma medida, se apropriando de uma outra história, outra narrativa. [Lê trecho] Não tem nada a ver com a pandemia, mas tem tudo a ver, porque a partir do momento em que a gente também olha para dentro enquanto tanta gente está nesse automático, nesse lugar em que não consegue ter empatia, não consegue olhar pra uma situação como a nossa. A literatura faz isso, tira a gente desse lugar do automático e leva a gente a tomar um olhar de estranhamento. E parece que toda sua produção vai para esse lugar, como todas as contemporâneas, mas especialmente neste olhar entre esses dois pólos. O pólo autocentrado, essa elipse, e essa outra figura que é a narradora e está olhando para a gente, para essas pessoas, e está questionando isso. Como começou esse processo e como você desautomatizou também o olhar sobre o próprio cotidiano?

Giovana Madalosso: Olhando para a Fernanda, que é essa mulher de classe média, que vive num mundo do qual faço parte. Vivi assim na minha família, na minha origem, depois eu vim para São Paulo e trabalhei como publicitária. Para quem não conhece Tudo Pode Ser Roubado, tem esse personagem que é um colecionador, e ele quer muito ter uma obra raríssima. É um livro avaliado em não sei quantos mil reais, a primeira edição do O Guarani. A narradora é que vai atrás de roubar essa peça para ele, também porque ela quer uma grana para finalmente ter um apartamento próprio. 

No Suíte Tóquio a gente tem a Fernanda, que é uma mulher super bem-sucedida, tem um super emprego. Tem casa, apartamento, uma obra de arte na parede, um título do clube, “eu e meu marido felizes para sempre”. Porém é óbvio que essa felicidade não vai chegar. Aí é que tenho uma crítica muito grande. Uma crítica com relação a essa ilusão de que com bens materiais, e também imateriais, a gente vai estar resolvido. Na verdade, acho que nunca nada vai estar resolvido. Em alguns momentos as coisas ficam mais tranquilas, depois surge uma nova dificuldade e assim as coisas se renovam. Minha crítica é justamente sobre a anestesia desse olhar, essa ilusão que faz todo mundo achar que se tiver tal e tal coisa…  

A classe média brasileira vive muito disso. “Se eu garantir esse, esse e esse direito, essa escola particular para meu filho, meu filho falar inglês, então estamos todos muito blindados contra a vida lá fora”. E aí chega uma pandemia que coloca todas as nossas certezas a nossos pés, que é exatamente uma coisa que eu busco fazer com a literatura, mostrar que nós não temos nada. Tudo nosso pode ser roubado, tudo nosso pode ser retirado a qualquer momento porque na verdade nós de fato não possuímos nada. Tudo que nós achamos que temos é transitório: são transitórios os nossos bens materiais, são transitórias as pessoas que a gente ama e que podem morrer, desaparecer a qualquer momento, um casamento que pode acabar. Então o que tento fazer, e acho que a pandemia está fazendo de uma maneira muito dura, é desancorar essa ilusão. Não vamos achar que conquistando esse livro raro para minha coleção, tendo esse apartamento próprio, ou como a Fernanda, entrando nesse modo de casamento que vai dar certo, que vai estar tudo bem. Tanto que a Fernanda é uma pessoa extremamente infeliz dentro dessa realidade que ela criou com tanto suor, trabalhando tantas horas por dia, abrindo mão de ficar com a própria filha.

Aí o sequestro da babá, que vive muito mais com a criança do que a própria mãe, esse roubo acaba sacudindo a Fernanda. E da mesma maneira que a pandemia sacudiu a gente, a Fernanda é sacudida para enxergar os destroços da vida dela, que não estava funcionando. No final talvez eu esteja escrevendo sempre o mesmo livro, Tudo pode ser roubado

Julie Fank: O que está ocupando a biblioteca de vocês agora? 

GM: Eu costumo recomendar mulheres. Mas já que falei tanto de mulheres hoje, vou me dar ao luxo de recomendar um homem branco: Nostalgia, do Mircea Cărtărescu. Ele consegue reinventar a realidade em forma de sonho, um lugar a meio caminho, de uma maneira muito genial. Acho que a gente precisa sonhar mais, porque a gente chegou no beco agora. Tantas desgraças, a questão política tão complicada, a crise climática na esquina… Está tudo tão complexo e a gente não vai sair disso se a gente não tiver capacidade de elaborar novas realidades. Mircea Cărtărescu consegue elaborar novas realidades a partir desse ambiente de sonho.

MB: Indico essa obra maravilhosa que é um ensaio autobiográfico da Virginia Woolf. Ela faz esse esboço sobre o passado, mas refletindo sobre o presente. E a figura corpórea dela é feminina e ao mesmo tempo de um ser que tenta se libertar e se emancipar enquanto escritora numa sociedade com muito mais opressões do que a nossa. É um livro de que estou gostando bastante.

JF: Queria recomendar Os Tais Caquinhos, da Natércia Pontes, cearense, primeiro romance. É um livro bastante potente que fala de devastação, em alguma medida. Ela fala de uma casa devastada por uma separação, ainda antes da pandemia. E das duas filhas com o pai, que está tentando viver a separação e ao mesmo tempo na casa, um ambiente completamente insalubre. E fala do amor ali dentro.