BATE-PAPO | Bastidores do Brasil 28/04/2023 - 12:37

O biógrafo Paulo Rezzutti fala sobre os personagens da série de livros A História Não Contada durante um encontro realizado em março na Biblioteca Pública do Paraná — com mediação da professora da UFPR Liana Leão

 

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Solar da Marquesa
 

A minha entrada na literatura se deve principalmente à Marquesa de Santos. Na época da faculdade tive de pesquisar algum imóvel na cidade de São Paulo que tivesse sido recém-restaurado e aberto ao público. Havia o Solar da Marquesa — para mim, a Marquesa de Santos era a Maitê Proença da minissérie da Rede Manchete. Tomei um choque ao saber que tinha algo dessa mulher, que foi amante do Dom Pedro I no Rio de Janeiro, em São Paulo. Descobri mais coisas ainda pesquisando sobre a restauração e acabei na vida dela. Tinha toda uma história não contada sobre essa mulher que fiquei curioso em saber. Ela só foi amante do Dom Pedro? Foi a única coisa que ela fez na vida? Nada além de amante? Me formei em Arquitetura em 1997, e dali em diante — brinco que não é a gente que escolhe os personagens, os personagens é que nos escolhem — apareceram outras informações, às vezes mesmo sem pesquisar, sobre a Marquesa de Santos em São Paulo, no período que me interessava. Conheci o escritor Paulo Schmidt e ele me levou para minha primeira editora com o projeto de uma biografia sobre ela. Só que, enquanto pesquisava sobre a Marquesa dos Santos, encontrei as cartas inéditas entre ela e o Dom Pedro que estavam em Nova York e nunca tinham sido publicadas. Meu primeiro livro, Titília e o Demonão [2011], foi sobre essas cartas. São as transcrições e o entendimento do que determinados elementos continham nelas, desde palavras que não são mais usadas, até formas de se chamar determinadas coisas. Era para se chamar Marquesa e o Imperador, só que vendo as cartas não tinha como ser tão pomposo, porque era um homem e uma mulher e as cartas do relacionamento deles.

 

Escândalo atrás de escândalo
 

Publiquei a biografia da Marquesa de Santos em 2013. O livro é completamente diferente, tem mais certezas do que dúvidas e também muita documentação inédita. Um desses documentos é o de divórcio da última filha que a Marquesa teve com Dom Pedro I, a Condessa de Santos, a única entre os cinco filhos criada pela mãe. A Marquesa quer que ela seja uma nobre, só que a Condessa se casa com um crápula, que a agredia e traia. É escândalo atrás de escândalo. A Marquesa de Santos foi esfaqueada pelo primeiro marido e só conseguiu se separar porque era amante do imperador do Brasil — a filha não vai ter a mesma sorte. É bem difícil a relação da mulher dentro da História. Eu trouxe o caso da filha e a questão do feminino no século XIX, como era a luta da mulher e como ela não tinha direito a nada a partir do momento em que se casasse. A Leopoldina não tinha tanta mobilidade social quanto a Domitila, ela tinha o posto de Imperatriz e foi criada para ser uma governante. Sabia que tinha que dar dignidade ao posto que ocupava, tinha que dar o exemplo.

 

“O libertador”
 

A biografia de Dom Pedro I é o livro que abriu portas para mim também na Europa e foi bem divertido de fazer. Tento sempre trazer o lado humano dos personagens e às vezes explicar o porquê de determinados gestos, falas e formas de se interpretar esse personagem — e o quanto a própria política usa desses personagens como exemplos positivos ou negativos. Dom Pedro I é o maior exemplo disso. Enquanto no Brasil ele é visto com receios e preconceitos, em Portugal ele é um herói, que tirou Portugal do obscurantismo. Lá é chamado de “O libertador”, porque venceu o absolutismo e as tropas do irmão, Dom Miguel. No Brasil, esse ataque direto a ele começa na abdicação, em 1831. O 7 de setembro acaba sendo comemorado no lugar do 12 de outubro, quando ele foi aclamado como Imperador do Brasil, em 1822. O Rio de Janeiro notificou outras províncias pedindo para que elas reconhecessem Dom Pedro como governante do Brasil, e os políticos das assembleias o fizeram. Em 1831, quando ele abdicou e foi para Portugal, o 7 de setembro começou a ser criado, porque não se vê com bom tom comemorar o imperador do qual quiseram se livrar. Tem uma primeira modificação: o que era a vontade do povo, por causa do aniversário dele, se transforma e acaba com o laço entre Brasil e Portugal. Você tira o povo desse movimento da Independência e coloca aquela pessoa só, que fez um gesto e acabou. Isso explica muito. Os paulistas adoram isso, porque o gesto de louvar o 7 de setembro tira o protagonismo não só do povo brasileiro, mas de outras províncias que vão ter conflitos pela Independência até o segundo semestre de 1923 — como se São Paulo fosse o cenário de toda a história. É uma construção feita pelo paulista.

 

A mão de Leopoldina
 

A decisão de ficar no Brasil tem a influência dela. Há todo um jogo de bastidor que ela vai costurando para convencer Dom Pedro a ficar. O “Fico” dela é anterior ao “Fico” dele. Dom Pedro tinha medo de não cumprir as ordens e perder o trono de Portugal, e para ela o trono português estava perdido, então precisava garantir o do Brasil. Leopoldina tinha uma visão política e estratégica muito superior à dele, que se deve à vivência dela na Áustria. Ela participou como expectadora do Congresso de Viena, viu esse rearranjo do mapa europeu depois de Napoleão. Tinha uma vivência política e uma visão geopolítica que o marido não atingia. Teoricamente, ela viria ao Brasil para se casar com o herdeiro de Portugal, não para ser imperatriz. Entre 1816 e 1817, já falava português. Ela procurava entender a História do Brasil, o que é o Brasil. Além da educação, você tem os costumes — a corte portuguesa era muito mais ligada à religião. Leopoldina tinha a visão do que era o mundo limitado do Brasil com essa corte. Portugal e Espanha ainda tinham uma visão da mulher no ambiente interno, não fora, na rua. Ela teve um estranhamento muito grande. Tem algumas pessoas com quem teve uma interlocução, geralmente que tiveram uma vivência na Europa, como José Bonifácio e Maria Graham, uma viajante inglesa que não fazia questão de entender todas as regras e por isso tinha embates com a corte.

 

 

foto: Kraw Penas

 

 

Intercâmbio científico
 

No Brasil, Leopoldina se aplica ao que já gostava em Portugal — à filosofia natural, que abarcava mineralogia, botânica, etc. Ela vai ser uma grande interlocutora científica, fazer captura de espécimes, coletar penas de aves, artefatos indígenas, caçar e empalhar animais, mandar sementes, pássaros, plantas, tudo o que ela pode, para a família, em Viena, e também para outros lugares. O pai dela subsidiou o museu brasileiro em Viena até a morte dele, em 1837. Ele auxiliava a missão austríaca que, como outros países, viria a descobrir o que é o Brasil, aberto para o grande público a partir de 1808 — até então não se sabia se tinha Brasil. Com a vinda para cá, os portos brasileiros se abrem para as nações germânicas, só que essas nações não sabem o que podem fazer no Brasil, o que comercializar. Eles não querem cometer o mesmo erro dos ingleses, que mandaram patins de gelo para serem vendidos aqui. Os austríacos tentam descobrir esse Brasil fazendo esse intercâmbio de espécimes que Leopoldina manda para Viena, que também recebe algumas coisas. Ela consegue cultivar essa vertente dela como cientista, como alguém que quer entender o que é esse Brasil, que quer ir a fundo e vai, de certa maneira. Uma das coisas que sobreviveram dela é um herbário que está no Museu Nacional — apesar de ter pego fogo, a coleção estava em outro lugar.

 

Ser mulher no século XIX
 

No meu último livro, Independência: a História Não Contada [2022], começo a tratar da História do Brasil com a questão dos ciclos econômicos. Só que tento trazer coisas que não aparecem, como a participação das mulheres na Inconfidência Mineira, por exemplo, ou como eram feitas as extrações de diamantes em Diamantina, elementos que dão uma salpicada. Isso de entrar na História pela curiosidade, desenvolver e passar um pouco de conteúdo. É o que faço nas biografias, elas são álibis para mostrar períodos. Aqui contamos várias fofocas, mas na fofoca da separação da filha da Marquesa de Santos jogo a questão do feminino — o que era ser mulher no século XIX, quais problemas elas enfrentavam no século XIX.

 

Abolição por partes
 

Uma das questões de descontentamento do Dom Pedro I com as oligarquias que o sustentavam no trono é que em 1825 ele assina, junto com o tratado que vai a levar ao reconhecimento da independência do Brasil com a Inglaterra — que tem interesses comerciais —,outro tratado que determina o prazo de seis anos para o Brasil cessar o tráfico negreiro. Dom Pedro assinou e passou por cima dos deputados. Quando isso caiu no congresso, gerou um mal-estar para ele no Brasil, o que é uma das causas para a abdicação, em 7 de abril. Tem essa primeira tentativa de acabar com o tráfico no primeiro reinado, que não dá em nada. Mas há uma ideia de abolição por partes, uma coisa mais devagar, temendo que se rompa o tecido e a estrutura social. Normalmente, quando os escravos eram libertos, eles saíam das terras ou iam para outros lugares, se afastavam daquele núcleo onde estavam escravizados. José Bonifácio, antes da Independência, bola esse sistema de ir rompendo com a escravidão paulatinamente, libertando os nascidos e por aí vai — isso só vai ser implementado no segundo reinado. A sociedade brasileira sofre com isso até hoje. A fazenda rompendo com o trabalho escravizado, mas ainda explorando a mão de obra, é uma coisa que a gente não vê muito em outros países.

 

Espírito republicano
 

Em 7 de abril de 1890, Dom Pedro II visita o Palácio de Queluz, em Portugal, vê o leito de morte do pai e as manchas de sangue causadas pela tuberculose e relata tudo isso em um diário, onde escreve: “Eu abdicaria, como o meu pai abdicou, se eu não pudesse levar o Brasil a uma República”. Aí tem a questão do espírito republicano, mas existem muitas interpretações sobre o que ele realmente queria dizer nessa frase. Entretanto, se a gente reparar, a única república europeia na época, tirando a Suíça, era a França, e é justamente em Paris que ele resolve morar. E é em Paris que ele vai morrer. O kaiser da Alemanha ofereceu o palácio dele, o rei de Portugal ofereceu um palácio em Portugal, mas ele preferiu ficar na França republicana. Acho que só isso já diz muita coisa do pensamento dele, do que ele achava, o modelo ideal que ele acreditava para um país.