Ana Miranda 05/09/2017 - 12:00

Acostumada a peregrinar pelo Brasil (e pelo mundo), a romancista Ana Miranda voltou para casa. Ela, que já morou em Brasília, no Rio de Janeiro e em São Paulo, hoje vive em Fortaleza, de onde saiu quando tinha quatro anos. Mais do que uma nota biográfica, esse retorno à terra natal representa uma nova etapa na carreira literária da autora. “Há muito tempo queria escrever alguma coisa sobre minha terra, mas eu não a conhecia, então como é que poderia escrever?”, disse Miranda na edição de julho do projeto Um Escritor na Biblioteca, que contou com a mediação do escritor Miguel Sanches Neto.
A autora cearense estreou em 1978, com a coletânea de poemas Anjos e demônios, mas seu nome está associado ao romance. O primeiro que escreveu, Boca do inferno (1989), logo virou best-seller e até hoje é sua obra mais conhecida. Ambientada na Bahia do século XVII, a história traz para o primeiro plano duas figuras marcantes da cultura brasileira: o poeta Gregório de Matos (1636-1696) e o jesuíta Antonio Vieira (1608-1697). O livro também ganhou o mundo, sendo traduzido na Suécia, Dinamarca, Holanda, Argentina, Itália, Estados Unidos, Espanha e Inglaterra.

Durante o encontro na Biblioteca, Ana Miranda relembrou como construiu, de maneira intuitiva, a narrativa histórica sobre o poeta baiano que deu início a uma sequência de romances elaborados a partir de episódios marcantes do passado brasileiro, a exemplo dos livros O retrato do rei (sobre a Guerra dos Emboabas) e Desmundo (ambientado no Brasil Colonial), este último adaptado com sucesso para o cinema. “Eu não sabia nada sobre romance histórico, não sabia nada sobre intertextualidade. Ninguém sabia nada sobre isso nos anos 1980”, diz Ana.

Desde seu retorno ao Ceará, ela tem se dedicado cada vez mais à pintura — há alguns anos, por sugestão do editor Luiz Schwarcz, passou a ilustrar as capas dos próprios romances. Essa produção gráfica deve ganhar ainda mais visibilidade em breve, com a publicação de um livro.

O bate-papo na Biblioteca ainda teve ótimas histórias sobre epifanias, cinema, método de escrita e o dialogo de Ana Miranda com outros autores contemporâneos, como Rubem Fonseca e Raquel de Queiroz. Confira o resumo da conversa. 

     Fotos Higor Oratz
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As artes
Na escola em que eu estudava, em Brasília, o ensino havia sido formulado pelo Darcy Ribeiro e pelo Anísio Teixeira. Pela manhã as crianças iam para a escola clássica — estudavam português, matemática, geografia, história, etc. — e de tarde frequentavam a “escola parque”. E era realmente um parque de diversões porque ali eram oferecidas todas as artes — dança, teatro, escrita, pintura, desenho, gravura, cerâmica, além de alguns cursos de línguas. Eu fazia todas essas atividades. 

Biblioteca
Mais tarde, fui estudar em uma escola de freiras. Lá havia uma biblioteca com obras para adultos. Lembro que o primeiro livro que peguei foi do [Fiodor] Dostoiévski, um romance chamado O idiota. Peguei por causa do título, claro. Achei o nome muito interessante porque eu me achava meio idiota. Naquela época, já havia tentado fazer literatura, no sentido de que falsificava a realidade. Tinha um diário e, então, às vezes alguém me fazia uma pergunta e eu tinha a resposta na mente, mas não tinha coragem de responder. Aí abria o diário e escrevia: “Alguém me fez tal pergunta e eu respondi”. Percebia que com a palavra podia fazer uma reconstrução da vida, do mundo, das minhas dificuldades. Fiquei logo apaixonada pelos livros. As bibliotecas foram muito importantes na minha formação e na formação do meu sonho, pois abriram portas.

Volta ao Ceará
Há um mito dentro do mundo da literatura — e eu acho que em todos os mundos, talvez —, de que nós nos encontramos, mesmo, na nossa aldeia. Mais ou menos como a frase do Tolstói, que é muito repetida entres os escritores: “Se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia”. Eu tinha vivido em muitos lugares e ainda assim tinha laços fortes por onde morei: tive e tenho raízes em Brasília, no Rio de Janeiro e já estava me enraizando também em São Paulo, com relações de amor, de amizade e família. Mas eu não conhecia as minhas origens. Não sabia algumas coisas do meu comportamento, de onde vinham, e só fui entender quando voltei ao Ceará.

Epifania
Há uns anos, estive em uma aldeiazinha lá em Minas Gerais, na cidade de Carmo do Rio Claro. Um lugar fantástico, como uma visão de aldeia. Depois de subir uma montanha, foi me faltando oxigênio e, quando cheguei no alto, estava ofegante, cansada. Chovia naquele momento e quando eu já estava lá em cima, abriu-se uma fresta entre as nuvens e um raio de luz incidiu sobre a aldeia. Foi uma visão, uma coisa epifânica. Me moveu por dentro. Isso fez surgir dentro de mim algo que estava há muito tempo sendo trabalhado e pensando de uma forma meio obscura, sombria. Naquela hora, comecei a escrever e vinham versos e mais versos à minha cabeça. Anotei tudo. Foram mais de 100 páginas de versos, que posteriormente entraram em um pequeno livro chamado Prece a uma aldeia perdida. Depois disso, a sensação que eu tinha é de que se não fosse para o Ceará, ia morrer. Era uma coisa tão forte me chamando, que deixei tudo em São Paulo, vendi meu apartamento, as coisas que eu tinha, etc. As pessoas fizeram muita pressão para eu não ir, mas fui assim mesmo. Fui ao encontro das minhas origens.

Conselho de Raquel
Também tinha vontade de voltar ao Ceará por causa da Raquel de Queiroz. Ela era minha vizinha no Rio de Janeiro e brigava muito comigo. Dizia assim: “Você não é cearense”. “Sou sim, Raquel. Saí do Ceará e você também saiu”, respondia. Ela retrucava: “Não, eu nunca saí do Ceará”. E realmente ela nunca saiu do Ceará, onde ia, levava o Ceará dentro dela. A casa da Raquel no Rio era uma espécie de embaixada dos cearenses. Ela achava que eu não era cearense porque minha obra não havia “pisado o Ceará”. E isso foi um desafio muito grande. Há muito tempo eu queria escrever alguma coisa sobre minha terra, mas não a conhecia, então, como é que poderia escrever? E minha visão hoje do Ceará é a visão de alguém que ao mesmo tempo é e não é daquela terra. 

Bárbara do Crato
Em 1989, quando saiu Boca do inferno, a Raquel de Queiroz me chamou na casa dela no Leblon e me deu dois livros. Eram obras sobre uma heroína republicana chamada Dona Bárbara do Crato. Uma mulher fantástica, fortíssima, que comandava exércitos. Ela e o filho proclamaram a República, lá no interior do Ceará — foram republicanos. Depois Dona Bárbara foi presa — a primeira presa política brasileira que se saiba. E essa mulher é trisavó da Raquel de Queiroz. Foi mãe do Padre Martiniano [José Martiniano de Alencar] e avó do escritor José de Alencar. Eu já tinha uma vontade de escrever sobre o José de Alencar, mas o chamava e ele não vinha. Quando a Raquel me deu esses dois livros, ela me deu uma missão: “Quero que você escreva um livro sobre a Dona Bárbara do Crato”, disse. E sabia que ela queria que eu escrevesse um livro nos moldes do Boca do inferno, um romance clássico, mostrando a guerra dos padres de 1816, que foi um episódio eletrizante da nossa História. E realmente ainda tenho muita vontade de escrever sobre isso. 

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Criação literária 
É uma guerra contra o mundo para escrever. Porque tudo é tão bom, né? E nessa casa onde moro agora, tem uma vista linda, então a vontade de escrever é zero. A vontade é de ficar olhando a paisagem e andar na praia, tomar água de coco, conversar com as pessoas e passear. Então, tem que abrir mão do mundo, de muitos prazeres. Mas tenho conseguido. Em cada época da minha vida tenho uma organização diferente. O que está acontecendo atualmente é que só consigo escrever pela manhã, bem cedo. Acordo mais ou menos às 5h30 e começo a escrever — nem tomo café, nem tiro a camisola. Fico escrevendo até 9h, 9h30. Só depois disso começo a vida. Então, tenho conseguido aos poucos fazer esse romance em que trabalho atualmente. Dizem que a gente come o mingau pelas beiradas, né? É isso que está acontecendo comigo. 

Pintura
À noite ponho em minha cama caixas de lápis de cor, papel, uma prancha, régua e me dedico aos desenhos. Até brinco que esse material é o meu marido. Durmo com ele. Fico desenhando, desenhando, aí leio um pouco, depois, quando tenho alguma inspiração, volto a desenhar.

Capas de livros
Faço esses desenhos para mim mesma. As pessoas agora que estão conhecendo, porque foi um acaso. Eu já tinha publicado vários livros, e estava escrevendo Desmundo, meu quinto livro, e meu editor, o Luiz Schwarcz, foi na minha casa, no Rio, e viu um desenho colado com durex na porta. Ele achou interessante e perguntou de quem era. Disse que era meu, então ele sugeriu que as capas dos meus livros saíssem com esses desenhos. A partir do Desmundo, meus romances começaram a sair com as imagens que eu mesma elaboro. E é interessante porque as ilustrações não tem relação direta com o texto. Mas a sensação é que a parte mais profunda do texto está ali naquele desenho. Quer dizer, tem uma absorção diferente, existe uma possibilidade de absorção que não é igual ao que é elaborado nas palavras. São imagens muito oníricas.

Experiência no cinema
Eu era péssima fazendo isso, porque era muito tímida. É péssimo não saber nem falar direito. Mas quando estava no segundo grau, tinha um curso de cinema e uns meninos foram fazer o primeiro filme do curso e me chamaram. Disseram que eu tinha cara de Cinema Novo. Mas fui fazer, com muita vergonha, pois não gostava. Nem vi esse filme. Mas aí, depois eu casei com o Arduíno Colasanti, ele ia fazer os filmes e eu acabava fazendo também. Foi uma coisa assim, ainda nesse ímpeto, de viver a vida, de experimentar de tudo.

Desenho x escrita
Hoje em dia desenho bastante, mas sei que não conseguiria ficar só desenhando, embora eu goste mais de desenhar do que escrever. Acho que meu talento é mais para desenhar do que para escrever. Sinto que sou mais “eu mesma” quando estou desenhando do que quando estou escrevendo. A escrita é um trabalho mais racional, né? Mas não conseguiria viver sem essa experiência da palavra, da construção do mundo com a palavra, que é de uma amplidão fantástica, infinita. E o romance, é o gênero imperfeito. É chamado gênero imperfeito porque ele é a vida. Cabe tudo. A única obrigação é ser mais ou menos verossímil, mais ou menos. 

Boca do inferno
Não foi um projeto consciente. Comecei a escrever sobre o Gregório de Matos a partir de um sonho que tive. Sonhei que eu subia em uma torre e lá no alto tinha uma mulher cega, muito velha, que conversava comigo. Ela me dizia que tinha sido amante do Gregório de Matos. Olha que sonho, né? Meio absurdo. Achei aquilo incrível, e comecei a escrever sobre isso. Fui então procurar os poemas do Gregório. A coisa aconteceu assim, como se fosse um raio caindo na minha cabeça, na minha vida. Não foi uma escolha, uma intenção. 

Romance histórico
Não sabia nada sobre o romance histórico, sobre intertextualidade. Fazia tudo intuitivamente. E ninguém sabia nada sobre isso nos anos 1980. Sabia-se muito pouco disso no Brasil. Tinha pouco material, poucas discussões sobre o assunto. Depois fui percebendo como surgiu o romance histórico, num contexto de sentimento de valorização da própria identidade. Quando o mundo começa a se globalizar e as culturas começam a se influenciar, então ele nasce um pouco com esse sentido de solidificar e fazer surgir um amor pela cultura própria, pela própria história e pelos próprios personagens. Tanto que nos primeiros romances históricos, os personagens eram heróis, o Walter Scott com Ivanhoe e A dama do lago, por exemplo. Aí fui lendo e descobrindo. E foi tão interessante, porque eu estava fazendo isso sozinha — sozinha não, porque eu tinha o Rubem Fonseca, uma companhia fantástica, que me dava muito apoio. Mas estava sozinha no sentido de que não tinha conexões. E de repente comecei a perceber que esse tipo de texto estava sendo feito em outros lugares, porque começaram a surgir coisas muito parecidas com aquilo que eu estava fazendo, como o Memorial do convento, do Saramago, que tinha uma história muito parecida com a que eu estava escrevendo. Quer dizer, estava surgindo um novo romance histórico, comecei a perceber que não estava sozinha.

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Pureza
Escrevi Boca do inferno sem a presença do outro, da crítica. Então, teve uma ingenuidade muito favorável à minha absorção daqueles elementos todos. Teve uma pureza de relacionamento. Não existiu nenhuma crítica exterior àquilo que eu estava absorvendo naquele material. Foi uma relação de muita pureza. Acho que isso ajudou bastante nessa força que o livro tem. É um livro sem medo, totalmente sem medo.

Rubem Fonseca
Ele era totalmente contra o que eu estava fazendo em Boca do inferno. “Escreve sobre o seu tempo, escreve sobre o seu tempo”, dizia. E eu estava escrevendo sobre outro tempo, mas também estava escrevendo sobre o meu tempo — sem perceber. Quer dizer, fazia algo que não tinha relação com o que ele fazia. Por outro lado, acreditava muito no que ele falava, no sentido ideológico da escrita. Ele acreditava muito na questão da dedicação, do mergulho, da entrega do escritor naquilo que está fazendo. Depois tem a questão de você realmente dominar a escrita, dominar a técnica, ter domínio da carpintaria. Sempre ouvia ele falando isso e fui pegando as coisas. Ficava muito atenta a todas as manifestações dele. E depois, essa questão de você abandonar as outras coisas para se entregar realmente à literatura. Ele sabe tudo isso, ele sabe perfeitamente, conhece muito bem. Ele leu tudo. Ele lê um livro por dia até hoje. Uma coisa impressionante.

Geração 1980
Gosto de muitos autores da minha geração — a dos anos 1980 —, como Milton Hatoum, Cristovão Tezza, etc. Quer dizer, me considero dessa geração. Acho que é um grupo de escritores que tem um grande mérito, porque trabalham com a literatura como arte, ou seja, desligados das questões de mercado. Hoje há uma exigência para que o jovem escritor escreva um livro que venda, que seja realmente lido, que seja adaptado para o cinema, para a TV. Muita gente está escrevendo com essa pressão. E nós começamos a sentir isso, mas ainda víamos a literatura como “a arte da palavra”. Trabalho com a literatura como se fosse uma pintora, uma desenhista. Estou fazendo arte. Acho que a literatura já teve muita importância no debate dos costumes, para as pessoas do século XIX. A formulação do rosto brasileiro foi feito através da literatura, com os românticos, o próprio José de Alencar e o Gonçalves Dias. E havia os folhetins, as pessoas liam para debater sobre o comportamento humano. Mas isso foi sendo usurpado por todas as outras artes, pela mídia. Hoje em dia, são as novelas que debatem o comportamento das pessoas, das famílias, o comportamento social — e de uma maneira muito frágil, um pouco suspeita, porque tem muitos interesses mercadológicos envolvidos nesse debate de comportamento. A literatura ficou só com uma questão, que só ela realmente pode dar conta: que é a transformação da palavra em arte. É a única coisa que resta. Acho que da geração dos anos 1980, há muita gente fazendo literatura nesse sentido, como arte.

Novos trabalhos
Sempre fujo desse assunto. Nunca falo sobre o que estou escrevendo, porque é muito perigoso. Eu era muito amiga do Fernando Sabino, aí um dia ele chegou para mim e falou: “Ana, vou escrever um livro fantástico, um livro maravilhoso, é a história de um cara mais velho, professor, e tem uma aluna, menina de 12 anos”. Eu falei: “é Lolita, do Nabokov”. Aí ele caiu em si. Disse: “É verdade, é Lolita”. O Sabino desistiu do livro, porque destruí o projeto dele. Mas lógico que não ia ser Lolita, seria outro livro. Eu devo ter uns 60 livros para serem escritos. E fico lidando com vários assuntos. Tenho estantes com ideias para livros a serem escritos, que eu vou guardando. Eu chamo de “Edifício de Livros”. Nunca sei a hora nem qual é o livro que vai descer. E também não falo. Mas estou escrevendo dois livros agora, lutando com eles. Não sei qual dos dois vai vencer. Tem um que eu gostaria, mas estou com muita dificuldade de encontrar a voz — como tive no Desmundo. É uma coisa tão trabalhosa. É muito difícil. O livro é quem manda, sabe? Então, sou só uma obediente, escrava dos temas sobre os quais quero escrever.

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