ARTIGO | Teixeira e Sousa e seu tempo 19/09/2024 - 11:09
por José Correia Baptista
Grande parte da crítica literária – de José Veríssimo a Alfredo Bosi – reconhece Antonio Gonçalves Teixeira e Sousa (1812-1861) como autor do primeiro romance romântico brasileiro, O filho do pescador, de 1843. A crítica literária também aponta em Teixeira e Sousa as deficiências dos elementos de seu romance-folhetim, como destaca Antonio Candido, a peripécia, a digressão e a conclusão moral, que, no entanto, não tiram a importância histórica do escritor na formação da literatura brasileira.
Quem foi Teixeira e Sousa e o que posteriormente ganhou relevo em sua obra, como observador da vida cotidiana e crítico de seu tempo?
Teixeira e Sousa — que a crítica mantém o “s” do início de suas publicações, embora nas últimas obras tenha adotado o Souza com “z” — nasceu no dia 28 de março de 1812, em Cabo Frio, mais especificamente na freguesia de Capivari, que mais tarde passou a ser chamada de Silva Jardim. Tanto que o centro urbano de Cabo Frio não aparece como cenário em seus livros. Em A providência (1854), testamento literário com traços autobiográficos, Teixeira e Sousa ambienta seu último romance no Morro do Castelo, Rio de Janeiro, onde passou parte de sua vida, e Campos Novos, área rural de Cabo Frio, o que nos dá pista de lá ancorar suas memórias.
Ele era filho de uma mulher negra e um português. Por seus livros, sabemos que, em 1824, foi levado por seu pai à procissão de Nosso Senhor dos Passos em São Pedro da Aldeia, que atraía um grande número de pessoas, por ser considerado um santo milagroso. Meses depois seu pai o embarca para o Rio de Janeiro. Calcula-se que fora pedir ao santo que intercedesse por sua família que se desfazia. A mãe morrera e o pai empobrecera para pagar dívidas de empréstimo que contraíra com portugueses. Também através de seus livros, descobrimos que cinco anos depois voltou tuberculoso a Cabo Frio, e assistiu à morte do pai e das irmãs, atingidas por doenças infectocontagiosas comuns no litoral fluminense. É ajudado por um antigo mestre, o cirurgião Inácio Cardoso da Silva, protetor que cede uma pequena habitação em Capivari para que ele se tratasse e se recuperasse da tragédia familiar. Acredita-se que ali tenha começado a escrever os Cantos líricos e, possivelmente, a arquitetar seu primeiro romance.
Em 1840, Teixeira e Sousa retorna ao Rio de Janeiro e conhece Paula Brito, que abre as portas de sua tipografia para que o cabo-friense nela trabalhasse e estreasse como escritor nas publicações editadas por aquele que era conhecido como o mecenas pobre da emergente literatura romântica. Ambos construíram a mais bela história de amizade na literatura brasileira. Brito publicou a maior parte dos livros de Teixeira e Sousa. Quando ele morreu, em 2 de dezembro de 1861, de hepato-enterite, aos 49 anos de idade, jornais da época registram que Brito, assim que recebeu a notícia, teve um ligeiro incômodo. Aquele era o dia de seu aniversário, comemorado sempre na presença do amigo. Ele morreria duas semanas depois, no dia 15 de dezembro, de linfatite, com 53 anos de idade.
Em 16 anos de atividade literária, Teixeira e Sousa publicou seis romances, três livros de poesia, três de teatro e dois de assuntos diversos. Casou-se em 1846 com Carolina Maria, com quem teve seis filhos, e, diante de novas despesas, foi à procura de outra fonte de subsistência. Em 1849, por meio de amizades na corte, consegue ser nomeado professor público de instrução primária. Continua a escrever e a publicar, até que em 1855, por influência de Nabuco de Araújo, então ministro da Justiça, é nomeado escrivão da Primeira Vara do Juízo do Comércio da Corte. Dá-se o ano de 1856 como término da produção de obras inéditas do escritor. Ele chegou a escrever ao amigo Joaquim Norberto de Sousa Silva dizendo que se tornara um ex-poeta e que “amam as musas e as letras, mas não as demandas”.
O primeiro romance da literatura brasileira já nasce na corrente que leva à luta pela abolição da escravatura, na medida em que trata o negro como sujeito universal e não como um ser apagado e atomizado na força de trabalho escravo. A cena de O filho do pescador, que realça o heroísmo do escravo João, acontece quando a casa do personagem Augusto é tomada pelo fogo. “O sino da igreja de N.S. de Copacabana parecia estalar-se ao som de repetidas picadas”, narra o escritor, alertando para incêndio e levando pessoas a correrem para o local em que as chamas se levantavam naquela noite. Perguntava-se então onde estaria Augusto. João entra na casa em chamas e momentos depois traz Augusto salvo sobre suas costas, depois retorna ao incêndio para salvar mais vidas.
Um dos últimos capítulos do romance tem como cenário o centro do Rio de Janeiro, no largo do palácio, quando gritos de “pega ladrão, pega ladrão” colocam em cena um capoeira. O ladrão, na correria fugitiva, esbarra nesse negro da capoeira dando-lhe em seguida uma forte bofetada. No chão e furioso, em um salto de onça, ele transpassa com uma faca o coração de seu agressor, que cai, estrebucha e morre. Teixeira e Sousa justifica a reação do negro capoeira por ter sido cruelmente ofendido, sendo um direito dele vingar-se no próprio lugar em que fora indignamente afrontado. Esta cena, no entanto, leva Teixeira e Sousa mais longe ao tirar a seguinte conclusão: “Também num escravo se podem deparar com estímulos dignos do mais honrado homem livre!” O ano do lançamento do livro é 1843 e Teixeira e Sousa se mostra sensível ao tema do apagamento do negro na sociedade brasileira, procurando, em seus limites, dar relevo a cenas e ao seu pensamento que marcam sua posição em favor de um novo olhar para o negro como ser humano universal.
O filho do pescador traz outras novidades na concepção literária sob o ponto de vista do escritor como observador da sociedade de seu tempo. O historiador da música popular brasileira, José Ramos Tinhorão, vê no livro de Teixeira e Sousa informações preciosas sobre a música popular urbana e a novidade dos bailes em casas familiares. E Tinhorão vai dedicar um capítulo de seu livro A música popular no romance brasileiro (1992) a essas contribuições de Teixeira e Sousa. Na descrição da festa de casamento de Laura com Augusto, Teixeira e Sousa — observa Tinhorão — inaugura as relações entre o romance e a música popular, ao mesmo tempo em que traçava um quadro de costumes do Rio de Janeiro da primeira metade do século XIX. Com ironia, o escritor cabofriense descrevia os tipos dos rapazes presentes na festa, a alegria geral que se ampliava em consumo de bebidas e a hora dos improvisos poéticos. Terminado o jantar (na época, por volta das 16h30), chegava a vez das danças e cantorias. E o que se cantava era uma modinha. Tinhorão valoriza o que Teixeira e Sousa captava como o que era modernidade naquele momento: a novidade da moda dos bailes em casas de família, em que os autores de modinhas sentimentais estavam ganhando a estatura de verdadeiros poetas no Rio de Janeiro, e, em decorrência desse sucesso, começavam a receber o interesse romântico das mulheres.
Se a estrutura da composição literária de Teixeira e Sousa era descuidada, na medida em que o escritor estava preso ao que o folhetim tinha de mais contingente, transitório, os temas de seu tempo atraíram a atenção e a reflexão do escritor, como a parcialidade da justiça, a construção de riquezas pelo expediente do crime, a anulação do negro como ser humano, o imperativo da violência e do mal, entre outros. Além dessas referências, o olhar de Teixeira e Sousa reposicionava e valorizava a natureza em sua literatura, característica do romantismo, mas que estava entranhada no escritor e que é proeminente em seus livros.
O filho do pescador começa exatamente com a descrição de “uma risonha primavera” em Copacabana, onde é ambientado o romance e onde Emiliano, o "belo caçador dos bosques", tem um papel central na história. Emiliano, por quem Laura se apaixona, é na verdade seu filho, como mais uma pena que lhe pesa sobre seus erros na vida. Em As tardes de um pintor (1847), uma bela e majestosa mangueira é mais um de seus personagens da natureza que ocupa quatro páginas do livro. Em A providência (1853), Teixeira e Sousa descreve longamente a rica flora e fauna de Campos Novos (Cabo Frio), citando numerosos tipos de pássaros. Ao final deste romance, Narcisa atrai Graciano para um pântano em Campos Novos, onde ele morre submergindo lentamente na lama. A natureza é uma expressão da Providência que julga e aplica a pena no tom moralista em que o mal tem o seu curso traçado.
O problema do mal e a intervenção da Providência nos assuntos humanos quando eles desandam, é um tema que percorre a obra de Teixeira e Sousa. Já em O filho do pescador, quando o negro escravo João vai vencendo os perigos do incêndio para salvar vidas, o escritor pergunta: “Será isto acaso, ou Providência? Seria a mão do homem quem ateou essas chamas, e derrubou essa parede, ou a mão de Deus?” Naquele capítulo em que o negro capoeira mata um agressor no centro do Rio de Janeiro, há entre os espectadores do crime “um preto de trinta e oito a quarenta anos de idade, que contempla o morto com um gesto misterioso!”. É João, cujo pensamento o escritor traduz nas palavras: “Quem com ferro fere, com ferro é ferido!”. A vez do malvado Marcos, o assassinado, tinha chegado.
Não é à toa que o escritor dá título ao seu último romance de A providência. Podemos afirmar que a sociedade que aparece nos romances de Teixeira e Sousa é a constatação hobbesiana pré-contratual da guerra de todos contra todos. Ele passa a ideia de que o mal, a imposição aos negros em uma escala social, está associada a um quadro mais amplo de violência institucionalizada. Por isso, ele vai afirmar: “Acreditai-me: essas grandes, muito grandes casas dinheirosas, são feitas furtando-se ou roubando-se, matando-se ou iludindo-se, enganando-se, etc., etc”. Nos romances de Teixeira e Sousa não existe um mundo burguês com seus antecedentes de formação de um mercado e de valores liberais. A aparente vida burguesa dos personagens principais da história tem como origem a descoberta de um tesouro em um naufrágio na Massambaba, extensa costa de Arraial do Cabo até Saquarema.
Na visão orgânica e inteligível da história brasileira, o mal está instalado em uma conjuntura que será sempre trágica. Entretanto, Teixeira e Sousa não é indiferente ao que vê, porque seus personagens têm sede de verdade e de amor. Deus dá liberdade e livre arbítrio aos homens e mulheres. O mal aí se instala. O mal é contingente porque, para existir, precisa de um reino do bem. Não tem vida própria. Portanto, o mal não é substância. As ideias filosóficas do escritor estão muito próximas às de Santo Agostinho. O conceito necessário, sim, é de Deus. E a Providência é o governo do mundo. É o que dá racionalidade à história humana. Cujo final, para Santo Agostinho, é o triunfo geral da Igreja de Cristo. Mas, para Teixeira e Sousa, surge um conceito moderno, que é, como defende em A providência, o de que “a mudança é uma lei natural, uma lei necessária”. E, naquele Império da escravidão, Teixeira e Sousa foi bem claro: "a vida é esperança; mas a alma da esperança é a liberdade".
José Correia Baptista é escritor, formado em Ciências Sociais e em Letras pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Mora em Cabo Frio há mais de 40 anos.