Conto | Sérgio Sant’Anna

Noites

 

Bárbara Scarambone

Ilustração

 

 

A noite é um eclipse, um oásis. A noite pode ser um bálsamo ou um tormento. A noite pode ser cheia de medo ou até terror. A noite do hominídeo sozinho na caverna enquanto lá fora o vento uiva e há trovões e relâmpagos. A noite da moça nua dormindo sozinha no quarto escuro, recebendo no corpo reflexos multicores que vêm dos luminosos do dancing em frente. A noite desesperada e arfante dos dançarinos drogados ouvindo a música eletrônica que ecoa pelo bairro. A noite de outra mocinha dormindo abraçada com o homem que a conquistou com seu arrojo e paixão. A noite dessa mesma mocinha dormindo entregue, sem saber que um dia esse macho maldito a matará com facadas quando ela quiser deixá-lo. A noite mais sábia das lésbicas. A noite dos que gostam de dormir sozinhos numa escuridão igual a um breu. A noite do insone na escuridão lúgubre do país. Os ruídos não identificáveis na noite lá fora. Noites de sonhos recorrentes, às vezes cheios de medo, do qual se quer livrar, mas o senhor dos sonhos não se deixa conduzir. E os sonhos que a gente sabe que são importantes, mas dos quais não se consegue lembrar. Ou de repente lembra. De todo modo deve-se dormir à noite com um bloquinho de notas ao seu lado, na cama, para anotar os sonhos, contos e poemas. As noites de Edgar Allan Poe escrevendo seus contos de amores necrófagos. Noites dostoievskianas. São os sonhos um indício da existência de Deus? Também a noite é uma criação de Deus? Os espíritos vagando na noite. A noite do morto enterrado há pouco no caixão: “Onde foram parar todos?”. A noite do homem que se imagina no paraíso. O paraíso é uma praça arborizada no meio da qual passa um riacho murmurante entre pedras. Ali há também um belo casarão em cuja varanda repousa Deus, numa cadeira de vime. Deus, com um leve sorriso meio irônico, oferecendo-se à contemplação dos eleitos. E o diabo, pode aparecer à noite? Sim, como não, e a gente acorda trêmulo, aliviado por voltar à realidade e, por via das dúvidas, reza uma ave-maria, pedindo proteção. Mas será que existe mesmo uma vida eterna? Existe mesmo Deus? Mas existir Deus não significa que a gente voltará a viver. Mas quem sabe? A noite do homem que tenta se concentrar para se comunicar com a mãe morta há muitos anos, nem que seja num sonho. A noite em que pode aparecer também a mulher amada que o homem conheceu num sonho e ficou perdidamente apaixonado e se mantém à espera de que ela venha visitá-lo de novo. A noite do senhor que dorme só em seu quarto miserável e sem janelas, mas ele sente, dentro de si mesmo, o universo infinito e pensa em como terá se criado essa vastidão incalculável. E sabe que existe nessa vastidão espaços escuros imensos. Existem também buracos negros que podem engolir galáxias inteiras e daí pode se inferir que existe Deus? A noite no exoplaneta K2-18b, orbitando uma estrela anã vermelha, a 111 anos-luz da Terra e no qual podem existir, embora improvavelmente, formas mínimas de vida, os tardígrados. A noite em planetas a bilhões de anos-luz da terra. E a noite dos suicidas? Escolher, puxa vida, não existir durante toda a eternidade? Mas se a morte for natural pode significar que não viver durante todo a eternidade é um pensamento extasiante. A última e definitiva noite. As noites dos noctâmbulos. A noite na jaula da fera. As noites com nossos monstros. As noites com nossos remorsos. As noites com nossas loucuras. As noites com os nossos demônios. As noites com nossas preces. As noites de tédio. As noigandres. As noites com nossos amores perdidos. As noites cheirando lança- -perfume. As noites dos fumadores de ópio. As noites de Baudelaire. As noites de breu total. As noites de delírios de febre. Nossa noite do suicídio. A noite da ressurreição. A noite nos bastidores vazios dos teatros com seus fantasmas. As noites com seus cenários. A noite eufórica. A noite da morte. A noite com medo. As noites de desesperança absoluta. A noite do crime de Agatha. A noite de sono com um livro aberto no peito. A noite de chuva lá fora, ah, que bom! A noite dos enfermos querendo desencarnar. A noite de escombros psíquicos. A noite do inconsciente sempre vivo. A noite dos assassinos. A longa noite de tortura. A noite surrealista. As noites dos sonhos esquecidos para sempre. A noite negra com a mulher negra. A noite de lágrimas não confortadas. A noite da morte do pai. A noite da escrita febril. A noite da escrita abortada. A noite desesperada. A noite abençoada. As mil e uma noites.


SÉRGIO SANT’ANNA é autor dos livros de contos Anjo Noturno (2017), O Conto Zero (2016), O Homem-Mulher (2014), entre outros. Além disso, já transitou pelo romance, poesia e teatro. Em meio século de vida literária, venceu quatro vezes o Prêmio Jabuti, três vezes o APCA e uma vez o prêmio da Biblioteca Nacional.