Poemas | Sônia Barros
Viver a vida
fluem no filme de Godard
como se palavras
dentro das páginas de
um livro,
águas sobre o escuro
leito de um rio
e seus detritos
(fluem
apesar do susto de
obstáculos prestes a
represar as águas)
submersa existência passa
despercebida
essência de uma
dor
quase fluida
sob o brilho
corpóreo reflexo que
apenas ilude:
a vida
(não vivida)
reflui.
Ouvir o outro
(pensando em Walter Benjamin)
Quanto mais me esqueço de mim
e ouço a voz de cada gesto
que vem do outro,
apaga-se a existência
entrecortada do tempo,
e essa história
alheia passa a ser
a minha,
cada pedra
transposta se transforma
(unindo passo a passo)
num único caminho,
linha contínua
traçada por pés descalços
no nascimento
de si mesmo.
Tempo subjetivo
Embriagada, escreve
coisas sem sentido
mas que sempre
a salvam
pelo menos do desespero
de um instante
sem rumo
e sem saída,
que só a escrita ilumina.
Mesmo que depois,
passada a embriaguez,
a luz se apague
e a escuridão lhe pese
por fora e muito mais
por dentro.
Como na madrugada
solitária
em que o cheiro
das bananas na fruteira muito
doces — a poucas horas
de estarem podres — marcou de adeus
diversas e definitivas linhas
em tinta negra, letras
miúdas e espremidas,
cuja grafia já revelava
em seu desenho
o desfecho,
que só depois
de muito tempo
viria.
Pois ela nem estava, ainda,
de partida.
Afeto e faca
(a partir de “canetas emprestadas” de Armando Freitas Filho)
A caneta do poeta
(não importa se dele
ou emprestada)
é afeto e faca
cai na carne
no centro
côncavo
deste coração
que deixa de ser
oco
e envolve
absorve
acolhe
come
não o objeto
mas o
gesto, o
gosto
da tinta-lâmina
que tatua
mais do que um retrato
a presença por inteiro
na escrita inventada
(às vezes numerada)
de si mesmo:
deus e mestre.
Sônia Barros nasceu em 1968, em Monte Mor (SP). É formada em Letras pela Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep). Autora dos livros de poemas mezzo voo (2007) e Fios (2014), Também escreveu várias obras para o público infantojuvenil, entre as quais, A coragem de Leo (2014) e Nas asas do haicai (2016).