Poema | Sylvio Back

O porão

o que dizer de um porão
com três paredes se havia
uma claraboia baça e um
bordado de arame em arco 
nada que anunciasse o fim
os ovos são cortados à faca
enquanto fundos de garrafa
açulam lábios e línguas e a
fumaça corrói os agasalhos
finos de uma estiagem tal
que sobe do lago vizinho
onde peixes boiam balofos
a retina atolada como se
visse a quarta parede ela
ficou no além-mar onde
estrelas tombam maceradas
pelo olvido asseio reluzente
os dedos da irmã recontam
o eco de saltos pés passos
na esperança que o sono
devolva o verão vez por
outra sempre uma saudade
pra frente com bolo café
geleia de amora da casa
de bonecas tão alta quanto
a roda gigante do calendário
um navio que possa singrar
as ruas de Curitiba sem
despejar lodo no abajur
chinês na pia o vaso fedido
cujo sifão seca todas ilusões
de a cama junto à porta
um dia correr para o centro
crente que jamais as pernas
caíssem ao léu da insônia
na preguiça matinal açoite
de pneus pó ratos calotas
em zigue-zague mancos
biombos simulando sutis
aconchegos cheios de mãe
o avental encardido fogo
à marmita quem dirá que
o frio é tato a broa dormida
rançosa a manteiga (salve
-se o queijo bichado) alemão
é assim mesmo pois a vida
não virá nem agora nem
depois talvez não venha
jamais só como atalho da
última maldita parede basta
o breu do teto os recantos
descolados da trincheira
trovão de sol lascas da noite
que precisam do amanhecer
são ares patinando pra sair
do céu a penumbra do cão
arranha olhos medonhos
e deixa a todos atônitos
o porão recomeça o seu
périplo sem dó nem piedade


SYLVIO BACK é cineasta, poeta, roteirista e escritor. Autor de 38 filmes (12 longas-metragens) e 25 livros, entre roteiros, poesia e ensaios. Premiado no Brasil e no exterior por sua produção literária e cinematográfica, Back acaba de lançar O himeneu, coletânea de contos eróticos.