Making Of
Por trás do campo de centeio
Um dos livros mais influentes do século XX, O apanhador no campo de centeio teve seu embrião em contos escritos ao longo dos anos
1940, foi um sucesso imediato e marcou o início do isolamento de J. D. Salinger, que duraria 50 anos
Luiz Rebinski Junior
Se querem mesmo ouvir o que aconteceu, a primeira coisa que vão querer saber é como O apanhador no campo de centeio foi escrito.
Assim como a trajetória pessoal de J. D. Salinger, pautada pela reclusão e aversão à sociedade, o percurso literário de seu romance mais famoso — para além de seu conteúdo — é igualmente turbulento e interessante. Um dos livros mais influentes do século XX, O apanhador no campo de centeio (The cacth in the rye) teve sua edição marcada por uma série de episódios guiados pelo gênio irascível de Salinger, o que inclui brigas intermináveis com editores e auto-sabotagem.
O mundo conheceu a história do atormentado Holden Caulfield em 1951, quando Jerome David Salinger finalmente fez sua estreia em livro, mas há pelo menos uma década o personagem vinha sendo burilado em contos que Salinger, aos poucos, foi publicando na imprensa americana, em revistas como Story, Collier’s e The New Yorker.
Ao todo foram 27 contos publicados em periódicos antes de vir à tona o romance sobre o rebelde Holden, que narra seu descontentamento com o mundo hipócrita dos adultos após ser expulso da escola. Dos quase 30 contos produzidos por Salinger antes de O apanhador no campo de centeio, nove deles trazem a família Caulfield como protagonista. A primeira história foi “Slight rebellion off Madison”, recusada pela revista The New Yorker, mas que acabou sendo a avenida pela qual a carreira de Salinger iria trafegar até a publicação d’O apanhador. A história ressurgiria, uma década depois, como um capítulo do livro, assim como aconteceu com o conto “I’m crazy”.
“Slight rebellion” seria publicado na revista The New Yorker em 1941, mas os editores do periódico declinaram do convite e o conto acabou ficando anos na gaveta. Desolado com a recusa de sua história, Salinger embarcaria meses depois em uma viagem que marcaria profundamente sua existência e estaria
presente de forma indelével em toda a sua produção literária. Em abril de 1942, Salinger se alistou no Exército
americano e, dois anos mais tarde, foi enviado à Europa para lutar na Segunda Guerra Mundial com os Aliados. Terça-feira, 6 de junho de 1944, o Dia D, foi também o ponto crucial na vida do escritor. A guerra, seus horrores e agonias iriam marcar cada aspecto da personalidade do escritor e repercutir em seus escritos. “A influência é evidente, não só no ambiente de falsidade que Holden tenta denunciar em O apanhador, mas também em outros personagens da sua obra. O exemplo mais evidente é Seymour Glass, que não suporta o trauma de ter lutado na guerra e se mata com um tiro na têmpora, como mostra o clássico conto ‘Um dia perfeito para os peixes-banana’”, diz o jornalista Martim Vasques da Cunha, editor da revista Dicta&Contradicta.
Salinger chegou a sargento numa unidade de contraespionagem, onde seu domínio do francês e do alemão lhe permitia entrevistar prisioneiros de guerra e identificar agentes da Gestapo. Desembarcou na praia de Utah no Dia D, participou de todas as sangrentas campanhas em território europeu até a vitória final dos Aliados e foi um dos primeiros soldados a chegar a um campo de concentração nazista.
Passada a guerra e depois de ter emplacado contos de sucesso na mesma New Yorker que o recusara no início de sua carreira, Salinger decide retomar sua novela em 1950. Segundo Kenneth Slawenski, autor de Salinger, uma vida, à época, o que o escritor tinha de seu livro “era um emaranhado de contos desconjuntados, alguns deles escritos no longínquo ano de 1941”. Conforme relata o biógrafo, o autor havia feito acréscimos ao original ao longo dos anos, mas sua filosofia e visão do mundo vinham mudando, e as partes da novela que Salinger possuía no final de 1949 abrigavam mensagens e temáticas diferentes. O desafio que se erguia à sua frente era juntar todos aqueles fragmentos numa obra unificada.
“A fim de poder se dedicar à missão, Salinger se isolou das distrações. Considerou que estava produzindo arte elevada e, conscientemente, procurou refúgio em sua própria floresta invertida”, escreve Slawenski, em uma referência ao famoso conto “The inverted forest”, publicado em 1947 na revista Cosmopolitan.
Em 1961, a Time relatou que Salinger havia concluído O apanhador no campo de centeio isolando-se em um cubículo abafado perto do elevado da Third Avenue, em Nova York, numa espécie de prisão autoimposta. Segundo o biógrafo, é possível que o tal “cubículo” fosse, na verdade, uma das salas da New Yorker. A revista costumava oferecer espaço de trabalho aos seus colaboradores, e sabe-se que Salinger tirou partido disso no verão de 1950, quando usou os escritórios vagos dos editores enquanto concluía O apanhador no campo de centeio.
Lenga-lenga tipo David Copperfield
Na abertura do romance, Holden recusa-se a compartilhar o passado de seus pais com o leitor tachando de ridículo fazer qualquer relato sobre o que eles faziam antes “que eu nascesse e toda essa lenga-lenga tipo David Copperfield”. “Meus pais”, explica Holden, “teriam um troço se eu contasse qualquer coisa íntima sobre eles”. A atitude esquiva demonstrada pelos pais de Holden foi diretamente importada das atitudes da mãe e do pai do próprio escritor. Solomon e Miriam Salinger, que falavam pouco sobre eventos passados da família, o que fez com que Salinger e seus dois irmãos — Doris e Sonny — crescessem como pessoas muito reservadas.
“O próprio Salinger reconheceu que há muito de autobiográfico n’O apanhador”, explica Jorio Dauster, tradutor do livro no Brasil. “Tal como Holden, Salinger pertencia a uma família de posses — tendo morado num prédio da Park Avenue —, frequentou uma academia de estilo militar, comandou a equipe de esgrima do colégio e foi posto para fora de várias escolas que cursou.”
Depois de trabalhar na novela durante uma ano, Salinger concluiu O apanhador no campo de centeio. O escritor havia confessado a seu primeiro editor, Whit Burnett, que muitas páginas de seu romance haviam tomado de assalto a praia na Normandia; haviam desfilado pelas ruas de Paris e estado presentes na morte de inúmeros soldados, em incontáveis lugares.
Mas, bem como Holden, seu criador era um ser humano genioso. Comprometida informalmente com Salinger, a editora Harcourt Brace declinou do acordo assim que Salinger entregou seu original. Os editores pediram para que Salinger, depois de longos anos de trabalho, reescrevesse seu romance. Em um almoço com Salinger, o editor Eugene Reynal teria afirmado a Salinger que Holden seria louco.
Com seu romance novamente em mãos, Salinger assinou contrato com a Little, Brown and Company. Mas os problemas estavam longe de terminar. Entre o final de 1950 e julho de 1951, o que transpirou entre Salinger e seus editores foi uma série de episódios nos quais o autor parecia se opor a cada esforço feito para que seu livro fosse um sucesso. Salinger não gostou da capa da edição de bolso que a editora preparou para O apanhador, com uma ilustração de Holden com seu chapéu de caça vermelho. A contra-gosto, o escritor aceitou a ilustração e só ficou definitivamente safisfeito quando a editora lhe informou que Michael Mitchell, seu amigo pessoal, faria a ilustração da edição em capa dura do livro. A capa se tornou emblemática, com um cavalo em chamas estilizado. Mas Salinger ainda se incomodou com a estratégia de marketing da editora, que, como é de praxe no mercado editorial, mandou cópias promocionais do livro a jornalistas e críticos. Irritado, Salinger teria respondido que não queria publicidade nenhuma para seu livro e gostaria que sua fotografia fosse retirada da contracapa, pedido que seria respeitado nas centenas de edições que o livro teria nos Estados Unidos e mundo afora.
“O livro conquistou sucesso imediato, com oito edições em dois meses, porém mais tarde foi retirado das bibliotecas de muitas escolas nos Estados Unidos por conta da linguagem de Holden Caufield, que os fundamentalistas cristãos ainda consideram chula e sacrílega”, explica Dauster, que também verteu para o português Carpinteiros, levantem bem alto a cumeeira & Seymour, uma apresentação.
Com críticas elogiosas (“um romance de estreia incomumente brilhante”, escreveu o New York Times quando o livro foi lançado), O apanhador ficou 30 semanas na lista de best-sellers do NYT, iniciando assim seu bem-sucedido périplo pelos corações e mentes de adolescentes, jovens e, vejam só, também dos adultos que Caulfield tanto desprezava. Assim que o livro foi lançado, J. D. Salinger, fugindo do tumulto da publicação, partiu para um período sabático na Inglaterra. O escritor dava os primeiros sinais de seu eminente isolamento, que duraria 50 anos, até sua morte, em 2010, aos 91 anos.
1940, foi um sucesso imediato e marcou o início do isolamento de J. D. Salinger, que duraria 50 anos
Luiz Rebinski Junior
Se querem mesmo ouvir o que aconteceu, a primeira coisa que vão querer saber é como O apanhador no campo de centeio foi escrito.
Assim como a trajetória pessoal de J. D. Salinger, pautada pela reclusão e aversão à sociedade, o percurso literário de seu romance mais famoso — para além de seu conteúdo — é igualmente turbulento e interessante. Um dos livros mais influentes do século XX, O apanhador no campo de centeio (The cacth in the rye) teve sua edição marcada por uma série de episódios guiados pelo gênio irascível de Salinger, o que inclui brigas intermináveis com editores e auto-sabotagem.
O mundo conheceu a história do atormentado Holden Caulfield em 1951, quando Jerome David Salinger finalmente fez sua estreia em livro, mas há pelo menos uma década o personagem vinha sendo burilado em contos que Salinger, aos poucos, foi publicando na imprensa americana, em revistas como Story, Collier’s e The New Yorker.
Ao todo foram 27 contos publicados em periódicos antes de vir à tona o romance sobre o rebelde Holden, que narra seu descontentamento com o mundo hipócrita dos adultos após ser expulso da escola. Dos quase 30 contos produzidos por Salinger antes de O apanhador no campo de centeio, nove deles trazem a família Caulfield como protagonista. A primeira história foi “Slight rebellion off Madison”, recusada pela revista The New Yorker, mas que acabou sendo a avenida pela qual a carreira de Salinger iria trafegar até a publicação d’O apanhador. A história ressurgiria, uma década depois, como um capítulo do livro, assim como aconteceu com o conto “I’m crazy”.
“Slight rebellion” seria publicado na revista The New Yorker em 1941, mas os editores do periódico declinaram do convite e o conto acabou ficando anos na gaveta. Desolado com a recusa de sua história, Salinger embarcaria meses depois em uma viagem que marcaria profundamente sua existência e estaria
presente de forma indelével em toda a sua produção literária. Em abril de 1942, Salinger se alistou no Exército
americano e, dois anos mais tarde, foi enviado à Europa para lutar na Segunda Guerra Mundial com os Aliados. Terça-feira, 6 de junho de 1944, o Dia D, foi também o ponto crucial na vida do escritor. A guerra, seus horrores e agonias iriam marcar cada aspecto da personalidade do escritor e repercutir em seus escritos. “A influência é evidente, não só no ambiente de falsidade que Holden tenta denunciar em O apanhador, mas também em outros personagens da sua obra. O exemplo mais evidente é Seymour Glass, que não suporta o trauma de ter lutado na guerra e se mata com um tiro na têmpora, como mostra o clássico conto ‘Um dia perfeito para os peixes-banana’”, diz o jornalista Martim Vasques da Cunha, editor da revista Dicta&Contradicta.
Salinger chegou a sargento numa unidade de contraespionagem, onde seu domínio do francês e do alemão lhe permitia entrevistar prisioneiros de guerra e identificar agentes da Gestapo. Desembarcou na praia de Utah no Dia D, participou de todas as sangrentas campanhas em território europeu até a vitória final dos Aliados e foi um dos primeiros soldados a chegar a um campo de concentração nazista.
Passada a guerra e depois de ter emplacado contos de sucesso na mesma New Yorker que o recusara no início de sua carreira, Salinger decide retomar sua novela em 1950. Segundo Kenneth Slawenski, autor de Salinger, uma vida, à época, o que o escritor tinha de seu livro “era um emaranhado de contos desconjuntados, alguns deles escritos no longínquo ano de 1941”. Conforme relata o biógrafo, o autor havia feito acréscimos ao original ao longo dos anos, mas sua filosofia e visão do mundo vinham mudando, e as partes da novela que Salinger possuía no final de 1949 abrigavam mensagens e temáticas diferentes. O desafio que se erguia à sua frente era juntar todos aqueles fragmentos numa obra unificada.
“A fim de poder se dedicar à missão, Salinger se isolou das distrações. Considerou que estava produzindo arte elevada e, conscientemente, procurou refúgio em sua própria floresta invertida”, escreve Slawenski, em uma referência ao famoso conto “The inverted forest”, publicado em 1947 na revista Cosmopolitan.
Em 1961, a Time relatou que Salinger havia concluído O apanhador no campo de centeio isolando-se em um cubículo abafado perto do elevado da Third Avenue, em Nova York, numa espécie de prisão autoimposta. Segundo o biógrafo, é possível que o tal “cubículo” fosse, na verdade, uma das salas da New Yorker. A revista costumava oferecer espaço de trabalho aos seus colaboradores, e sabe-se que Salinger tirou partido disso no verão de 1950, quando usou os escritórios vagos dos editores enquanto concluía O apanhador no campo de centeio.
Lenga-lenga tipo David Copperfield
Na abertura do romance, Holden recusa-se a compartilhar o passado de seus pais com o leitor tachando de ridículo fazer qualquer relato sobre o que eles faziam antes “que eu nascesse e toda essa lenga-lenga tipo David Copperfield”. “Meus pais”, explica Holden, “teriam um troço se eu contasse qualquer coisa íntima sobre eles”. A atitude esquiva demonstrada pelos pais de Holden foi diretamente importada das atitudes da mãe e do pai do próprio escritor. Solomon e Miriam Salinger, que falavam pouco sobre eventos passados da família, o que fez com que Salinger e seus dois irmãos — Doris e Sonny — crescessem como pessoas muito reservadas.
“O próprio Salinger reconheceu que há muito de autobiográfico n’O apanhador”, explica Jorio Dauster, tradutor do livro no Brasil. “Tal como Holden, Salinger pertencia a uma família de posses — tendo morado num prédio da Park Avenue —, frequentou uma academia de estilo militar, comandou a equipe de esgrima do colégio e foi posto para fora de várias escolas que cursou.”
Depois de trabalhar na novela durante uma ano, Salinger concluiu O apanhador no campo de centeio. O escritor havia confessado a seu primeiro editor, Whit Burnett, que muitas páginas de seu romance haviam tomado de assalto a praia na Normandia; haviam desfilado pelas ruas de Paris e estado presentes na morte de inúmeros soldados, em incontáveis lugares.
Mas, bem como Holden, seu criador era um ser humano genioso. Comprometida informalmente com Salinger, a editora Harcourt Brace declinou do acordo assim que Salinger entregou seu original. Os editores pediram para que Salinger, depois de longos anos de trabalho, reescrevesse seu romance. Em um almoço com Salinger, o editor Eugene Reynal teria afirmado a Salinger que Holden seria louco.
Com seu romance novamente em mãos, Salinger assinou contrato com a Little, Brown and Company. Mas os problemas estavam longe de terminar. Entre o final de 1950 e julho de 1951, o que transpirou entre Salinger e seus editores foi uma série de episódios nos quais o autor parecia se opor a cada esforço feito para que seu livro fosse um sucesso. Salinger não gostou da capa da edição de bolso que a editora preparou para O apanhador, com uma ilustração de Holden com seu chapéu de caça vermelho. A contra-gosto, o escritor aceitou a ilustração e só ficou definitivamente safisfeito quando a editora lhe informou que Michael Mitchell, seu amigo pessoal, faria a ilustração da edição em capa dura do livro. A capa se tornou emblemática, com um cavalo em chamas estilizado. Mas Salinger ainda se incomodou com a estratégia de marketing da editora, que, como é de praxe no mercado editorial, mandou cópias promocionais do livro a jornalistas e críticos. Irritado, Salinger teria respondido que não queria publicidade nenhuma para seu livro e gostaria que sua fotografia fosse retirada da contracapa, pedido que seria respeitado nas centenas de edições que o livro teria nos Estados Unidos e mundo afora.
“O livro conquistou sucesso imediato, com oito edições em dois meses, porém mais tarde foi retirado das bibliotecas de muitas escolas nos Estados Unidos por conta da linguagem de Holden Caufield, que os fundamentalistas cristãos ainda consideram chula e sacrílega”, explica Dauster, que também verteu para o português Carpinteiros, levantem bem alto a cumeeira & Seymour, uma apresentação.
Com críticas elogiosas (“um romance de estreia incomumente brilhante”, escreveu o New York Times quando o livro foi lançado), O apanhador ficou 30 semanas na lista de best-sellers do NYT, iniciando assim seu bem-sucedido périplo pelos corações e mentes de adolescentes, jovens e, vejam só, também dos adultos que Caulfield tanto desprezava. Assim que o livro foi lançado, J. D. Salinger, fugindo do tumulto da publicação, partiu para um período sabático na Inglaterra. O escritor dava os primeiros sinais de seu eminente isolamento, que duraria 50 anos, até sua morte, em 2010, aos 91 anos.