Conto | Karen Debertólis

Uma vida simples


Vou parar aqui e sentar diante deste jardim de luzes. Tenho que espantar estas vozes que ecoam em minha cabeça. Odeio lugares cheios de gente. Pessoas que passam ao lado agitadas, ritmo cardíaco acelerado, olhares por toda a parte.

Ainda lembro da noite em que lhe falei sobre isto. Mão afável na minha e sorriso brando. Vez ou outra cacheando os cabelos encostando a cabeça calmamente na parede suja avermelhada pela luz do ambiente. Em meio àquele barulho de sons incongruentes, era imprecisa a minha fala. Até notar que seus olhos iam além de minhas palavras e cortavam as letras que pairavam no ar entre nós sobre a mesa de lata. E nem ouvia mais o que dizia. Senti o seu olhar vasculhando cada detalhe de boca e nariz fino e olhos claros e cabelos agrisalhados.

Ainda lembro daquela mesa de canto entre tantas pessoas exóticas, lúgubres, atarracadas, acanhadas, extravagantes, coloridas. Uma vez ou outra nos levantávamos e dançávamos, mesmo a contragosto, ao som da música horrível que o DJ insistia em repetir em vários finais de semana. Dançava numa letargia seguindo seus movimentos de deusa. Foi a partir dali, naquele estranho pedaço da cidade, que comecei a filosofar sobre quanto há ordem em meio ao caos. Ao longo de muitas noites, ficamos, assim, olhando-nos detidamente. Entre uma história e outra, contada a conta-gotas, tentava esconder a minha aflição, as minhas agruras, o meu desespero agravado pela opressão daquele local estranho.

Não sei bem o que tinha me levado até ali. Era um certo azedume interno, uma angústia que não acabava nem mesmo depois de escovar os dentes para dormir. Mas, perambulei por aquele espaço exíguo, noites a fio de meses insuportáveis, antes de encontrar-lhe. Nem mesmo sei, ao certo, o que me fez voltar àquele antro tantas vezes. Talvez, eu não sabia, mas já procurava por você.

Jacobsen
Então, passei a sentir uma pressão no peito que só cessava quando você aparecia acompanhada sempre de uns amigos. Naquela altura da noite, eu já havia bebido uma dúzia de copos de qualquer coisa, mesmo que não alcoólica. O momento mágico: seu corpo moreno, cabelos longos, sorriso à mostra, atravessava o acortinado de tiras de plástico vermelho. Alheia à insubordinação de ritmos e vozes, palavras incongruentes, bêbados insolentes. E aquela música torta do DJ era abafada por fados e gaitas gitanas e violões que tocavam na minha cabeça.

Uma noite resolvi agir. Deixei de lado as impossibilidades psicológicas — a timidez, a insegurança barata que me acompanhava. E, logo, tua pele macia estava à minha espreita. Primeiro, me aproximei da roda de amigos que sempre a circundava. Havia alguns conhecidos do escritório. Em seguida, começou a fase da dança. Um gim tônica ajudou. E mais três na sequência foram os estimulantes para a minha coragem. O desenvolvimento de toda uma performance criativa para aquela música barata, o seu olhar no meu, as reclamações sobre a música, as risadas que se seguiram. E o corte de cena, finalmente, para a mesa de lata num canto.

Os dedos longos, as unhas feitas, as costas nuas para me debruçar. E assim, as noites se tornavam um imenso mistério a ser desvendado. E eu, que não gostava de barulhos, me entreguei a uma sequência enlouquecedora de ruídos rondando a minha cabeça depois das madrugadas a seu lado naquele lugar tão fétido. Melhor ainda quando a lua banhava o bosque ali perto.

Tirávamos as roupas e observávamos os pássaros noturnos.

Depois, seguíamos juntas para nos aninharmos em minha pequena cama.

Emaranhada em seus longos cabelos, afundada nos seios — perfeitos —, recostada às suas costas ouvindo o silêncio. Nem sequer lembrava das confusões do cotidiano. O trânsito louco de carrinhos nos supermercados, a longa espera nos cruzamentos no centro da cidade às seis da tarde, as filas nos cartórios para homologar papéis, as audiências nos juizados de pequenas causas, as manifestações feministas, os ensaios de escolas de samba na rua detrás do prédio, as crianças do vizinho jogando bola no apartamento.

Nada importava. Somente Júlia que agora bagunçava a rotina simétrica da minha vida. Desarrumava a cama à noite e me acordava com o aroma de café vindo da cozinha. Há quantos anos não usava as toalhas de mesa e as xícaras e os pires e a mantegueira e sentia o cheiro de torradas? Nem me lembrava mais de que as primeiras horas matinais, antes de ir para o trabalho, podiam ser cheias de ternura.

Ela me despertou antigos sentimentos e hábitos. No final de tarde, sempre quando íamos nos encontrar, pensava em algum cardápio especial para aguardá-la. Nada muito requintado ou complicado. Uma salada com folhas verdes de variadas tonalidades, macarrão com molho de tomates que eu mesma preparava seguindo a receita da avó italiana, bife com batatas fritas.
Voltei a cuidar das plantas da sacada. Plantei um pé de melancia que cuidamos ao longo de meses até comermos a primeira fruta numa quente tarde de verão. Comprei colares multicoloridos. Sapatos descolados. Vestidos justos que ela me ajudava a escolher na loja e me observava experimentar malandramente nos provadores. “Uma advogada precisa vestir-se de maneira impecável”, ordenava.

Júlia era chefe do setor de enfermagem em um grande hospital. As semanas de trabalho eram difíceis, não só por possíveis plantões durante noites repletas de casos de emergência de embrulhar o estômago de qualquer um, mas por reveses que fugiam ao seu controle. Em uma das vezes, ligou-me chorando. Uma jovem senhora, internada há duas semanas que havia apresentado melhora nos dois últimos dois dias, subitamente, morreu. A família era pequena. O pai, dois filhos, uma nora e a neta de dois meses. Julia havia acompanhado a família, confortado, participado das alegrias da recuperação e da possibilidade de alta hospitalar da mãe. Era como se tivesse sido derrotada.

Tristezas e alegrias. Ordem e caos. A vida seguia como uma estrada sinuosa e repleta de bifurcações. Eu não tinha mais controle sobre nada. Parte do meu guarda roupas era dela. Na bancada do banheiro, espalhavam-se seus frascos de perfume, no armário maquiagens e cremes. Mulher de bom gosto. Não tinha mais jeito, comprei uma cama de casal.

Eu também levei parte de mim para o apartamento dela. Além de roupas e outras intimidades, o vaso com o pé de boldo. Não abandonamos o velho hábito de frequentar o antro onde nos conhecemos. Alguns amigos ainda iam, os garçons nos tratavam bem, as bebidas eram ótimas. Ela cuidava de mim quando passava do limite alcoólico, mas era o boldo que me salvava. Um chazinho ou uma folha macerada com água gelada.

Os problemas hepáticos após as noitadas eram exceções. Voltávamos sempre loucas de desejo e a noite era pouca para tantas peripécias na cama. Não importava, se na minha ou na dela. Não importa, se nunca mudamos os endereços. A maneira como seu olhar me tocava ultrapassando copos e garrafas sobre a mesa de lata, a maneira como eu me encostava nas suas costas nuas embalada pelas músicas horríveis do DJ. Nada se alterou. Nunca.

Ao longo dos anos fomos entendendo que o desejo tem seus barulhos peculiares. O som dos sapatos que rondam, dos beijos apaixonados, das mãos atritando com os pelos do corpo, dos líquidos humanos, da língua que passa audaciosa varrendo as cavidades das orelhas. Ruídos como mares revoltos que desordenavam o cotidiano.

Em muitas noites de verão, voltávamos ao nosso bosque secretamente para observarmos o frescor noturno das árvores imensas que desenhavam estranhas criaturas na contraluz lunar. Em muitos invernos nos refugiávamos por outras terras nas quais o sol permanecia por poucos meses do ano. E, assim, fomos colecionando palavras em idiomas diversos, fotografias com tradicionais poses de turistas, souvenires inúteis.

Mas, a ordem é ameaçada pelo caos a todo momento. Numa tarde chuvosa, quando voltava para casa, fui surpreendida por um telefonema inesperado. Ligavam do hospital em que Júlia trabalhava. Pediram que aguardasse na linha. Ela não iria trabalhar naquele dia. Estava de folga e havia programado resolver questões burocráticas no banco. A princípio, argumentei com a secretária do setor de que deveria ser um engano, a ligação não era para mim.

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A demora na transferência da ligação para outro setor causou-me uma tensão estranha. Depois de minutos, o médico de plantão, me disse um “boa noite” afobado. E seguiu explicando que tudo estava sob controle e que eu não deveria me desesperar. Lentamente sentei na poltrona vermelha e aconchegante. Disse à ele que não entendia muito bem o motivo daquele telefonema. Ouvi alguém ao seu lado dizer um palavrão como se tivessem cometido um erro.

Júlia estava em observação na UTI. E aos poucos ele me contou sobre o acidente. O motorista que avançou o sinal vermelho foi quem telefonou para o número do hospital que estava no adesivo colado no vidro do para-brisa do carro de Júlia. Imediatamente, a ambulância seguiu para o local. Ela estava desacordada, um corte profundo na testa, um deslocamento da clavícula. O forte impacto da colisão fez com que sua cabeça se chocasse contra o vidro. Prestaram os primeiros socorros e os colegas de trabalho, em grande parte seus amigos, a receberam no hospital.

Não me lembro de muitos detalhes daquela noite. O caos retornava de forma estridente. Um zumbido metálico no ouvido me poupou de ouvir as bobagens proferidas pelo taxista durante o trajeto até o hospital.

Estou absorta diante deste jardim de luzes. Pequeníssimas lâmpadas multicoloridas que se espalham entre a vegetação rasteira do jardim dos fundos de uma biblioteca em Paris. Uma profusão de vozes que se confundem com a música que ecoa de uma das janelas iluminadas do prédio histórico. Um torpor envolve minha cabeça. Estou aturdida pelos risos de turistas e parisiense eufóricos. Odeio lugares cheios de gente.

Meus pés doem. Pouso minha mão sobre o assento de pedra do banco. Fecho os olhos para tentar resgatar a ordem em meio àquele caos da cidade abarrotada de luz. Estou cansada. Uma suave mão pousa sobre a minha. Sinto o calor do corpo que senta-se ao meu lado e se aconchega. Lentamente me viro e abro os olhos devagar para ser colhida pelo intenso castanho do olhar de Júlia. Ela sabe do desespero que se apossa de mim em meio a tanta gente. E me resgata do caos. Leva-me pela mão para desvendarmos como tantas outras vezes as ruas, estreitas e belas, iluminadas pela algazarra de luzes da Nuit Blanche.


Karen Debértolis é autora de Calidoscópio (prosa), Guardados (poesia), A estalagem das almas (prosa), Prosa de palavras (prosa). Também gravou o CD de poesia A mulher das palavras. Produz e apresenta o programa Contracapa — Literatura&Arte, na Rádio Web Alma Londrina. Vive em Londrina (PR).

Ilustrações: Marco Jacobsen