Conto | Bruno Liberal

Dente de cachorro

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Ele procura ela.

Caça.

Avança dentro da vegetação seca. É noite. Ela se esconde atrás de uns galhos retorcidos. Procura um abraço na escuridão, uma segurança, um último refúgio. O vento cria um sussurro alongado na fração de tempo de uma respiração profunda. Ela treme acocorada, sentindo no chão as pedras machucarem os pés descalços. O que encontra é a feiura de tudo no mundo.

Ele, com a arma empunhada, percebe a criatura em si. O lobo de dentro. E, novamente, aponta e dispara para o alto.

Ela corre assustada. Ele ri exaltado.

Arreia! Corre peste. Corre.
(um raiozinho de nada, de esperança)

O homem feio de chapéu preto solta o cachorro. É sua diversão de agora. Ela, desesperada em sua carcaça de mulher, podia ser um pássaro trancado numa casa de espelhos. Ela se arranha, se fura, geme, grita, se corta, mata, sangra. E corre, corre.

O cachorro, esse fantasma, agarra sua perna fina, delicada. 



Ela cai com a cara esparramada na terra salgada. Acabou. Foi pega no dente. Na arma. Na violência dessa noite.

Era assim que ele agia.
(esse homem que era tantos outros e outros)

Soltava o cachorro na noite e corria para pegar mais uma.
(hoje ela, essa moça)

Ela viu apenas um raio negro rasgando a Caatinga. Quebrando os galhos secos que esperavam um fio de chuva para voltar à vida, como ela agora na sua esperança. Ouviu no coração o barulho desse rasgar de mato que vinha em sua direção e trazia medo. Ela toda medo. E o cão agarrou na canela da moça. Eram essas as ordens do homem. E esmagou suas lembranças, transformou a moça toda naquilo ali deitada. Lutando no frio, no escuro, no inferno.

Peguei, peste. Agora tu vai ver.

Ele chega e ri. Mostra os dentes enormes. Vê a sombra de medo na cara dela. A lua também parece rir iluminando sua dor. Ele abaixa as calças. Arregaça o talo. Ri alto com a escuridão do seu desejo.

Ela então se desarma. Foi pega no mato, como um animal. E como um animal ela vira uma coisa e desfaz-se dos espinhos. Do que lhe resta.

Vira sua coisa mulher. E se esconde na própria natureza de objeto. Refugia-se em alguma lembrança viva que agora é tão difícil.

Também será difícil voar novamente. Bater as mãos como asas.

Ela também vira seu bicho. Que não é lobo.

É passarinho baleado.

Ela ouve seu uivo de lobo sujo. A imundice desse instinto.

Percebe a tristeza do cachorro que seguia as ordens do verdadeiro animal.
(outro raiozinho de nada, de humanidade)

E sente que os espinhos também choram. E que seus olhos são cristais em queda livre.


Bruno Liberal estreou na literatura em 2012 com o livro de contos Sobre o tempo. Em 2013 foi o grande vencedor do I Prêmio Pernambuco de Literatura com Olho morto amarelo, também de contos, que será lançado em Novembro pela Cepe Editora. Vive em Petrolina (PE).

Ilustração: Nicholas Pierre