PENSATA | Futebol de sangue e silêncio 26/04/2024 - 03:06

A relação entre os regimes autoritários e o futebol nas estratégias de comunicação de massa

 

Por Carlitos Marinho

 

As ditaduras militares de todo o mundo costumam utilizar os megaeventos esportivos para promoverem os seus regimes autoritários. No Brasil, ficou marcado como o ditador Emílio Garrastazu Médici se apropriou da conquista da Seleção Brasileira na Copa de 1970, no México, para legitimar o seu poder por meio da propaganda, no momento de crescimento exponencial de TV`s no Brasil. Ainda hoje, os eventos de grande proporção são estrategicamente usados como modo de lavar a própria imagem do país, como foi na Copa do Mundo de futebol masculina de 2022 no Catar e como será na Arábia Saudita em 2034. A estratégia parece dar certo, visto o sucesso e as glórias de todos os envolvidos nesta extensa cadeia produtiva, e os poucos questionamentos da imprensa.

Segundo Eduardo Galeano, em seu livro Futebol ao Sol e à Sombra, “Futebol e pátria estão sempre unidos: e com frequência os políticos e ditadores especulam com esses vínculos de identidade.” Hoje, ditadores como o sanguinário Mohammad bin Salman, da Arábia Saudita, mandante do esquartejamento do jornalista Jamal Khashoggi, controlam gigantes clubes europeus como Manchester City e Newcastle, por meio do Fundo Soberano Saudita, que é capaz de diversificar a economia árabe e torná-la menos dependente de um só produto, que é o petróleo. Já o emir do Catar, Tamim bin Hamad Al Thani, é proprietário do clube francês Paris Saint-Germain e já desembolsou 222 milhões de euros para contratar Neymar em 2017, até hoje a contratação mais cara da história do futebol.

Em seu livro, Galeano lembra quando a Seleção Italiana venceu as Copas de 1934 e 1938, e sempre no início e no término de cada partida, saudava o público com a palma da mão estendida em nome da pátria e de Benito Mussolini, que liderou o Partido Nacional Fascista na Itália. Em 1942, os jogadores do time ucraniano Dínamo de Kiev jogaram contra soldados nazistas. Em plena ocupação alemã, os prisioneiros de guerra cometeram a loucura de derrotar o time de Hitler. Mesmo com medo e com fome, os soviéticos venceram por 5 a 3 e foram fuzilados depois da partida.

Provavelmente, Galeano não ficaria surpreso ao ver ídolos mundiais na Arábia Saudita como Cristiano Ronaldo, Neymar, Benzema, Sadio Mané e tantos outros ótimos jogadores atuando em um dos quatro clubes que foram estatizados: Al Hilal, Al Ahli, Al Ittihad e Al Nassr. Isso porque o escritor narra quando o Real Madrid, time modelo da Espanha de Franco, reinou de 1956 a 1960 com vários craques de outras nacionalidades, como o francês Kopa; dois argentinos, Di Stéfano e Rial; o uruguaio Santamaría e o húngaro Puskas. No livro, Galeano cita José Solís, um dos chefes do regime, pronunciando um discurso de gratidão diante dos jogadores:“Porque gente que antes nos odiava, agora nos compreende graças a vocês”. A pergunta que fica é: por que estes jogadores são pouco cobrados?

Os novos modos de apropriação do futebol por governos totalitários ocorrem por meio do sportswashing. O termo anglicizado surgiu a partir da constatação dos meios de comunicação sobre o uso do esporte para limpeza da imagem de um país. Esta reabilitação ocorre por meio da organização de megaeventos, compra de clubes de futebol ou jogadores com alguma intencionalidade geopolítica. Esta intenção está em buscar personalidades com forte apelo comercial e trazer credibilidade ao regime político do país de origem do investimento.

Joseph Nye define hard power como a capacidade de um Estado em usar a coerção para garantir seus interesses, enquanto o soft power refere-se a outras formas de influência, como persuasão e prestígio internacional. Enquanto o hard power está ligado a fatores como território, economia e força militar, o soft power envolve convencer outros países a seguir políticas e práticas comuns. Ambos os conceitos são importantes na política internacional, mas soft power oferece uma abordagem complementar e alternativa ao uso de coerção.

Essa estratégia é adotada pelo Catar desde os anos 2000 para se destacar regionalmente e reduzir sua dependência do petróleo e gás natural. A relevância do país é mantida enquanto a exploração de hidrocarbonetos for importante na economia mundial. No entanto, cenários de descarbonização comprometem essa posição. Investimentos no setor esportivo fazem parte dessa estratégia de construção de soft power como a compra de clubes europeus, a organização da Copa do Mundo de 2022, e até mesmo o investimento em ciências do esporte por meio do complexo esportivo Aspire Academy, referência mundial na formação de profissionais do esporte. Concomitante a isto, é justo lembrar que a construção das infraestruturas da Copa do Mundo de 2022 no Catar foi feita com infração aos Direitos Humanos e trabalho análogo à escravidão. De acordo com reportagem do jornal britânico The Guardian, o número de mortes ultrapassa 6,5 mil trabalhadores.

Ainda que pratique uma política mais agressiva e violenta, a Arábia Saudita percorre o mesmo caminho do Catar quanto à lavagem de imagem por meio de investimentos pesados no futebol. Pouco se fala sobre o massacre em massa de migrantes africanos que tentam cruzar a fronteira em direção ao país do Golfo Pérsico, ou a intervenção saudita que cometeu crimes humanitários na Guerra do Iêmen, o apartheid contra as mulheres, a criminalização da homossexualidade e a perseguição religiosa contra os xiitas, por exemplo. Pelo contrário, em rápida pesquisa na internet sobre a Arábia Saudita, é possível encontrar notícias como o alto investimento em equipamentos culturais e resultados esportivos da Liga Saudita de Futebol.

Um dos mais relevantes jornalistas que atuam na editoria de esporte, Paulo Vinícius Coelho, também conhecido como PVC, é um constante crítico das ações políticas da Federação Internacional de Futebol (FIFA) em prol de beneficiar países que tentam lavar sua própria imagem por meio do futebol. Contudo, após a conquista da Liga dos Campeões da União das Associações Europeias de Futebol (UEFA) pelo Manchester City, PVC teve a possibilidade de fazer uma pergunta para o histórico treinador Josep Guardiola, técnico do City – o que é uma raríssima oportunidade. Na ocasião, o jornalista disse que no momento da coletiva de imprensa, teve vontade de perguntar para Guardiola sobre como é representar um clube financiado com o dinheiro da ditadura saudita, responsável pelos diversos crimes humanitários descritos no parágrafo anterior. No entanto, PVC disse que não era o momento para esse questionamento, e acabou perguntando sobre o esquema tático utilizado por Guardiola, que homenageou Johan Cruyff na resposta. Ora, qual será então o momento de fazer uma pergunta que não deve se calar?

 

Carlitos Marinho (1997) nasceu em Mariluz, no Paraná. É jornalista na Secretaria de Estado da Cultura do Paraná e pesquisa Gestão Cultural no Programa de Pós-graduação da Unespar.