Conto

Equilíbrio


Carlos Machado

Para Sr. Tenório Telles

Mano passa os olhos vagarosos por sobre a Caixa D’água Eduardo Ribeiro. O brilho das retinas sua de tanto calor. Na avenida principal uma imagem retorcida pelo mormaço descansa às Margens do Rio Negro. Longe, ouviu de seu pai: uma cidade sabe que está se acabando quando sente a possibilidade de lhe construírem um viaduto transitando pelas costas.Quando alguém decide fazer, é porque ela não existe mais, são outros tempos. Mano sobe o primeiro viaduto com os pés no chão. Rachados. Pensando na figura esguia e equilibrada do pai. Parece ouvi-lo em cada esquina, segurando suas mãos enormes para atravessar as ruas, atento ao que contava. Sempre o chapéu colocado de lado na cabeça, o terno impecável e a maleta com os produtos à venda. Só não entende porque foi embora sem avisar. Apenas saiu. Mano olha para frente, espera na esquina. Livra-se do peso das sacolas que carregava e parte em direção aos barcos. Logo cedo em sua casa, acorda para encher o copo com cachaça gelada. Refrescar Manaus! Afoga o rosto amassado dentro da pia cheia d’água, limpa as remelas coladas aos cílios. Sempre fechados. Tão cedo ainda. Mas não há modo de continuar na cama: tudo dói. É preciso esticar o esqueleto. Não consegue mais acordar sem se sentir dolorido. Cheira a debilidade da velhice que a cada vento o aperta forte. Cãs. Há dias que os dentes não sabem o que é uma escova. Sente fome. A geladeira aberta range com seu estômago. Apenas uma garrafa de pinga e outra vazia de guaraná. Na parte lateral um pote com molho de tomate mergulhado em fungos, um limão ressecado do mês passado e um pedaço de peixe malcheiroso. Na mesinha ao lado da pia uma pequena sacola com pão de algumas noites. Quando criança, dizia à mesa do café que sabia ser muito esperto: cortava o pão pela metade para mostrar aos irmãos que tinha mais do que eles. Tenho dois, hahaha! Subiam correndo pela casa, todos os três, soltando gargalhadas para todos os lados. Olhando assim, para a comida seca sobre a mesa, tem o ímpeto de jogá-la fora, mas o estômago apertava em sua barriga. Colava em seu pulmão. Depois de comê-la com ímpeto infantil, Mano recolhe os alimentos estragados da geladeira e os coloca em duas sacolas. De volta ao banheiro vê que não há mais espaço para o papel higiênico. Junta uma terceira sacola. Ajeita o cabelo com os dedos ásperos, molhando-os na torneira, e pernas para rua. Em frente ao portão, o Mercado Municipal Adolpho Lisboa já mostra a que veio: imponente na timidez da cidade, empurrando as pessoas umas nas outras. Calor. Muito calor. Com os olhos semicerrados pela claridade, titubeia por entre a multidão afoita. Esse era o caminho que fazia para o trabalho: subia a Joaquim Nabuco proseando com os amigos, passava pela Boulevar Amazonas já no segundo cigarrinho, aquietava-se na praça Chile por alguns minutos e, antes de se fechar na sala da Caixa D’água, um tempinho para rezar no São João Batista. Como esquecer esse caminho dos mesmos quinze anos? Olhando para o porto flutuante, Mano segura-se para não desabar. Ressentido. Mas senhor, foi a primeira vez. Sim, Manoel, a primeira e última! Esqueceu-se de fechar as válvulas de segurança antes do fim do expediente. Foi-se embora. Milhares de litros d’água cidade abaixo. Na noite anterior havia discutido com Joana. Nunca se aquietou com mulher alguma. Mas essa era especial! Sabia chegar com vontade. Nesse dia Mano deixou-se perder com os amigos no botequim do Pádua até de madrugada. Chegou trançando as pernas de cachaça. Foi dormir com o ouvido inchado de tanta gritaria. Foi a última vez, Manoel, a última! No trabalho, não conseguia parar de pensar em Joana. Sua última obrigação era simplesmente fechar as válvulas para evitar que a caixa enchesse por completo. Saiu sem fechá-las. Andando em direção ao porto, Mano aproxima-se de Paulinho – banguela com apenas dois dentes na boca – sentado em frente a um barco de pesca. Junta-se ao amigo das manhãs: Paulinho, tudo depende do ponto zero, mas não consigo encontrar, o equilíbrio. Como? Que tá dizendo, cara? Eles nem se olham. Meu pai foi embora quando eu tinha catorze anos, eu ainda quero saber o porquê. Mas não consigo! Mano, o que te aconteceu hoje? Quando visitou sua avó no interior do Amazonas, ainda com doze anos, viu um quati ser morto por uma onça. Impressionado: filho, se alguém lhe corta a barriga, uma força enorme que vem de dentro empurra o estômago pra fora. Se o que lhe cortam são as costas, os pulmões são, imediatamente, sugados, ficando do tamanho de um feijão. Agora, o que pode acontecer quando lhe cortam perto dos pulmões e do estômago ao mesmo tempo? Esse é o ponto de equilíbrio, tudo começa aí, a partir do zero. Calor, Paulinho, muito calor.

Agora em silêncio, os dois observam um navio atracado no Rio Negro descarregando mercadorias.

Mano espera.


Carlos Machado é músico e escritor. Autor de Balada de uma retina sul-americana (7 Letras, 2006), Nós da província: diálogos com o carbono (2005, 7 Letras) e A voz do outro (7 Letras, 2004). O conto “Equilíbrio” pertence ao livro inédito Passeios. Vive em Curitiba (PR).