Só poeira 09/01/2013 - 15:00
Luiz Bras
Preste atenção a tudo o que não faz sentido ou não tem importância. A tudo o que não encaixa direito. São sinais, eles podem estar tentando se comunicar com você. Preste atenção aos detalhes irrelevantes. Recolha todas as peças, não deixe escapar nada. O despertador que atrasou dois minutos. O tijolo faltando no alto do muro. A nuvem com formato engraçado. A meia que sumiu. Sinais, compreende? Monte o quebra-cabeça. Eles podem estar tentando falar especificamente com você. Preste muita atenção, tome nota de tudo o que parecer tolo ou trivial. Meio século atrás eles descobriram nosso planeta, a civilização humana. Reuniram toda a energia disponível e dispararam em nossa direção uma série de mensagens amigáveis e entusiasmadas. Preocupados com nosso futuro incerto, mandaram pra nós, de presente, soluções científicas e espirituais. Coitados. O esforço foi tão grande que seu planeta foi pulverizado, seu sol também. As mensagens chegaram, mas em frangalhos. As ofertas de amizade e colaboração dispersaram-se na atmosfera. Viraram chuva semiótica. Uma placa meio torta indicando a rua errada? O silêncio súbito numa avenida de trânsito intenso? O desenho esquisito na mancha de óleo? Os clichês nos filmes americanos? Preste muita atenção, tome nota. São sinais, principalmente os clichês nos filmes americanos. São eles tentando se comunicar com a gente. O herói desativando a bomba no último segundo. O vilão frio e calculista com um tapa-olho e um gato. A família sempre atrasada no café da manhã. As bolas de feno ao sabor do vento nas cidadezinhas do Velho Oeste. O raio e o trovão acontecendo ao mesmo tempo. O cartão de crédito ou o arame abrindo qualquer porta. Sinais, compreende? Acenos de uma civilização distante, agora desaparecida.
Luiz Bras é romancista, contista e ensaísta. Autor de Sozinho no deserto extremo, Paraíso líquido entre outros, é colunista do jornal Rascunho, onde todo mês assina a coluna “Ruído Branco”. Os minicontos “Só poeira” e “Bolas de feno ao sabor o vento” são inéditos e integram uma nova coletânea, Pequena coleção de grandes horrores, que sairá pela Terracota Editora, em março de 2013. Vive em São Paulo (SP).
Os irmãos Karamazov não eram três, eram quatro: o engenheiro, o neurologista, o matemático e o cirurgião plástico. Todos geniais. § O primeiro androide foi projetado e gestado em sua empresa de alta tecnologia. § O primeiro androide era em tudo idêntico a uma mulher de trinta anos, inteligente, atraente e saudável. § Ela não sabia que era um androide. § A perversidade satânica dos irmãos Karamazov era ilimitada. Na coletiva de imprensa, os sacanas disseram: que graça teria a criação de um androide perfeito, se a criatura soubesse que é um androide? § Para assegurar que ninguém cederia à tentação de revelar ao androide sua verdadeira natureza, os irmãos Karamazov implantaram no cérebro positrônico um dispositivo demoníaco: uma bomba. § Na coletiva de imprensa, os canalhas explicaram: o detonador foi programado para reconhecer o padrão neural da autoconsciência. No momento em que o androide descobrir sua verdadeira natureza, a bomba explodirá, pulverizando o planeta. § Nos anos seguintes a empresa produziu e comercializou vinte milhões de androides. Todos idênticos a um ser humano de verdade, de ambos os sexos. Todos com o dispositivo de autodestruição. § O grande incêndio de 2034, que devastou São Paulo, reduziu a cinzas o parque industrial dos irmãos Karamazov e todos os seus registros físicos. A epidemia de 2035, que devastou os bancos de dados do mundo inteiro, apagou todos os registros eletrônicos. § Já não era mais possível distinguir um ser humano de um androide. § Anos depois do final da Terceira Grande Guerra as coisas continuavam bastante confusas para os poucos sobreviventes. § O primeiro profeta dizia que todos os seres humanos tinham morrido na guerra e apenas uns poucos androides haviam sobrevivido. § O segundo profeta dizia que todos os androides tinham morrido na guerra e apenas uns poucos humanos haviam sobrevivido. § O debate certamente atravessaria as décadas, talvez os séculos, se um hipocondríaco desmiolado não tivesse descoberto, com um simples exame de sangue, sua real natureza. § Você nem imagina, meu filho, a nossa decepção quando chegamos à Terra, depois de trinta anos de viagem, e já não havia mais Terra, só poeira.
Bolas de feno ao sabor do vento
Preste atenção a tudo o que não faz sentido ou não tem importância. A tudo o que não encaixa direito. São sinais, eles podem estar tentando se comunicar com você. Preste atenção aos detalhes irrelevantes. Recolha todas as peças, não deixe escapar nada. O despertador que atrasou dois minutos. O tijolo faltando no alto do muro. A nuvem com formato engraçado. A meia que sumiu. Sinais, compreende? Monte o quebra-cabeça. Eles podem estar tentando falar especificamente com você. Preste muita atenção, tome nota de tudo o que parecer tolo ou trivial. Meio século atrás eles descobriram nosso planeta, a civilização humana. Reuniram toda a energia disponível e dispararam em nossa direção uma série de mensagens amigáveis e entusiasmadas. Preocupados com nosso futuro incerto, mandaram pra nós, de presente, soluções científicas e espirituais. Coitados. O esforço foi tão grande que seu planeta foi pulverizado, seu sol também. As mensagens chegaram, mas em frangalhos. As ofertas de amizade e colaboração dispersaram-se na atmosfera. Viraram chuva semiótica. Uma placa meio torta indicando a rua errada? O silêncio súbito numa avenida de trânsito intenso? O desenho esquisito na mancha de óleo? Os clichês nos filmes americanos? Preste muita atenção, tome nota. São sinais, principalmente os clichês nos filmes americanos. São eles tentando se comunicar com a gente. O herói desativando a bomba no último segundo. O vilão frio e calculista com um tapa-olho e um gato. A família sempre atrasada no café da manhã. As bolas de feno ao sabor do vento nas cidadezinhas do Velho Oeste. O raio e o trovão acontecendo ao mesmo tempo. O cartão de crédito ou o arame abrindo qualquer porta. Sinais, compreende? Acenos de uma civilização distante, agora desaparecida.
Luiz Bras é romancista, contista e ensaísta. Autor de Sozinho no deserto extremo, Paraíso líquido entre outros, é colunista do jornal Rascunho, onde todo mês assina a coluna “Ruído Branco”. Os minicontos “Só poeira” e “Bolas de feno ao sabor o vento” são inéditos e integram uma nova coletânea, Pequena coleção de grandes horrores, que sairá pela Terracota Editora, em março de 2013. Vive em São Paulo (SP).