PENSATA | De repente me lembro do verde: memórias da casa do Pilarzinho 11/08/2025 - 10:21

Por Fernanda Maldonado

 

Na década de 1970, meus avós, Dirceu e Rosa Mocelin, saíram de uma colônia de imigrantes italianos da Região Metropolitana de Curitiba e mudaram-se para o alto do Pilarzinho, bairro localizado na região norte da capital. Lá eles construíram uma casa para morar com os dois filhos e, no terreno ao lado, compraram uma outra casinha – essa em estilo polonês, com jardim e lambrequins, que passaram a alugar.

 

Recibo do aluguel
Recibo de pagamento de aluguel da casa no Pilarzinho. Foto: Acervo pessoal / Fernanda Maldonado

 

É verdade que os primeiros inquilinos não foram lá muito marcantes, mas na metade da década, Dirceu e Rosa receberam como moradores e vizinhos Paulo Leminski e Alice Ruiz, com os filhos pequenos Aurea, Miguel e, mais tarde, Estrela. Desses, até hoje eles não se esquecem. Durante quase dez anos, a casa alugada pelo casal Paulo e Alice, na Rua Jorge Cury Brahim, se tornou um epicentro de encontros, numa mistura quase improvável da atmosfera pacata e provinciana do bairro com uma absolutamente fervilhante contracultura urbana. Um verdadeiro atravessamento de mundos.

Na biografia do poeta, o jornalista Toninho Vaz con­­ta que Leminski descrevia a Curitiba do final dos anos 1970 como uma cidade dividida em "guruatos" culturais: "O guruato do Oraci Gemba, no teatro; o guruato do Karam, também no teatro. O guruato do Sylvio Back, com a turma do cinema. Temos ainda o guruato da Boca Maldita, uma região cheia de profetas. Eu fico com os marginais. Fui empossado Ministro-Sem-Pasta da Marginália".

Um dia, Gal Costa e Caetano Veloso saltaram de um táxi e bateram à porta perguntando se ali morava, de fato, um tal de Leminski. Gilberto Gil, Luiz Antônio Solda, Rettamozo, Ademir Assunção, Itamar Assumpção, Jorge Mautner, Moraes Moreira, Fortuna, Augusto de Campos, Waly Salomão, Décio Pignatari, Ivo Rodrigues e tantos outros também estiveram por lá. 

O relato que você lê a seguir é a transcrição mais fiel possível de uma conversa de quintal com meus a­vós sobre esse período. A memória é narrada em primeira pessoa pelo Vô Dirceu, que na época trabalhava como verdureiro no Mercado Municipal.

 

Dirceu Mocelin
Dirceu Mocelin teve como inquilinos a família Leminski, no Pilarzinho. Foto: Fernanda Maldonado

 

Quando ele mudou-se lá na casa velha nossa, eu fui lá ajudar fazer mudança, trazer os objetos pra dentro, armário e tal, porque costumava sempre ajudar nessas coisas. A casa tinha um corredor comprido e no meio da mu­dança ele perdeu um dinheiro por ali. Eu disse, "seu Paulo, o senhor perdeu um dinheiro aqui". Ele olhou pras notas, deu um chute no dinheiro e disse: "isso aqui é ilusão". 
Ele vivia assim mesmo. Ele não tinha ganância, não tinha assim, que nem a gente, essa preocupação em se preparar para o futuro... Ele era assim. Dentro de casa não tinha cadeira praticamente, apenas umas almofadas no chão. Sentava lá, cruzava as pernas e assim era a vida dele.

Ele sempre trazia os amigo dele lá na casa. Quem que foi o artista que veio lá, o Caetano Veloso, não? Era o Caetano?  ("Sim, sim", confirmou Vó Rosa). Ou foi Gilberto Gil. Um dos dois. 

Eu sei que eles vinham ali porque o Paulo, além de escritor e poeta, era compositor, um pouco músico… era faixa preta de judô e publicitário. As propagandas de televisão, naquela época, cinquenta anos atrás, muitas delas era ele que escrevia. E ele quase não trabalhava de dia, trabalhava mais à noite. Três horas da manhã, eu levantava pra ir pro Mercado e ele tava trabalhando, escrevendo. De dia ele dormia e de noite ele trabalhava.

A nossa casa dava de frente com a porta da casa deles, então volta e meia ele vinha lá na porta e falava "Oi, seu Mocelin! Oi, dona Rosa!", mas logo saía, ele não ficava. Agora, a Alice conversava bastante com a gente. Ela vinha comprar as verduras que eu trazia e a gente acabava conversando um pouco mais. Infelizmente com o Paulo nunca sentamos assim, pra conversar. Ele era intelectual, nós, muito simples.

O Paulo Leminski sabia a história sagrada da bíblia de frente pra trás, de trás pra frente, mas Cristo para ele era um intelectual. Para ele Cristo não era filho de Deus, nada disso. Era muito gozado. 
A casa que ele morava tinha um sótão. Ele tinha tanto, mas tanto livro, que era tudo jogado. E como eu tinha muita caixaria de verdura, ele dizia: "seu Mocelin, me arrume lá umas cinquenta caixas que eu vou empilhar uma em cima da outra pra guardar livro".

Quando ele publicou aquele livro, o Catatau, tinha pilhas e pilhas desse livro paradas lá no sótão. E eles tinham o falecido Miguelzinho¹. Ainda no tempo do Catatau, um dia o Miguel chamou o meu filho Manir e disse: "vamos lá na rua vender uns livros, ganhar um dinheiro". Acho que não venderam nenhum, ninguém no bairro entendia aquilo de jeito nenhum (risos).

O Miguel a gente acompanhou muito de perto. Fomos doar sangue para ele no hospital algumas vezes. Ele fazia quimioterapia e passava muito mal de manhã. Toda vez que íamos visitar no hospital a gente levava uma fruta pra ele. Um dia ele deixou aquela fruta apoiada numa mesa e disse: "acho que vou montar uma quitanda!".

Ele tinha uma inteligência fora de série, aquele guri. Morreu acho que com uns nove anos, já tava escrevendo um livro. Ele era muito ligado à natureza. Naquela época, meus filhos eram pequenos e eu comprei uma espingarda de pressão para brincar, e ele pensava que eu tinha comprado essa espingarda pra matar passarinho. Ele ficou re­voltado com a gente, sempre querendo proteger os passa­rinhos, os animais. Muito sensível, muito inteligente desde guri. Depois de um tempo ele faleceu e eu pensei que o casal ia enlouquecer. Se abraçaram, gritaram... porque eles não admitiam a morte do filho.

Depois disso, o Paulo e a Alice ficaram mais uns seis meses na nossa casa, mas como tinham muita lembrança do Miguel, eles se mudaram pra apagar um pouco a lembrança. Se mudaram para a casa do Pietruk, nosso vizinho, mas nós mantivemos algum contato. Uma vez eu ti­nha um negócio pra resolver lá com ele e fui acertar o nos­so negócio. Ele veio me recepcionar na porta da outra ca­sa… to-tal-men-te PELADÃO! (muitos risos).

Ele morreu, infelizmente, um tanto por causa do alcoolismo. De noite ele tomava mais de um litro de Underberg, aquela bebida forte. Às vezes, na horta, tinham pilhas de garrafa que ele bebia de noite. Mais tarde atacou a cirrose. Eu dizia: "e aí, seu Paulo, como é que está? Tá mais melhor?". Ele respondia: "É, tô mais melhor, mas revirou toda a galáxia!"

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Fernanda Maldonado é jornalista cultural e mestranda em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), onde pesquisa na linha Arte, Memória e Narrativa. Atua na comunicação de instituições culturais do Paraná, em bienais e projetos de produções independentes. É coordenadora de comunicação da Secretaria de Estado da Cultura do Paraná.

Fernanda Maldonado
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