Memória | Sérgio Sant’Anna 25/05/2020 - 13:39

Ho-ba-la-lá (ou O maestro das narrativas)

Os mais de 20 livros do escritor carioca, morto em maio, formam um legado que derruba cercas entre os gêneros literários, flerta com outras artes e recria temas atemporais, como amor, solidão e morte

 

Marcio Renato dos Santos

 

Notícia onipresente na minha e em outras timelines na manhã de 10 de maio: Sérgio Sant’Anna, 78 anos, morre vítima da COVID-19 no Rio de Janeiro, cidade onde nasceu e vivia há tempos. Jornais, rádios e sites divulgaram, escritores e leitores repercutiram o fato nas redes sociais — teve reportagem de três minutos e trinta e três segundos exibida no Fantástico daquela noite.

Filho do escritor, o também ficcionista André Sant’Anna permaneceu em São Paulo, onde mora. Se fosse ao Rio, ele e a irmã, Paula, teriam de ficar 200 metros distantes do pai no sepultamento: “Isso é que foi o triste dessa história”.

Serjão, como era chamado por amigos e leitores, deixou uma novela inédita. Autor de O Brasil é Bom (2014), André tem a impressão de que quando for ao apartamento do pai, no bairro das Laranjeiras, no Rio, pode vir a encontrar outras narrativas e contos inéditos. “Ele escreveu até o último dia em casa [o escritor ficou internado durante uma semana em um hospital antes de morrer]”.

Marcelino Freire lembra que Sérgio Sant’Anna enviou dois contos inéditos, escritos durante a pandemia, para uma revista e um jornal. “Morreu escrevendo, podemos dizer. Até quando pôde. Ou seja: essa fé no ofício, essa paixão pela escrita é o legado que ele deixa”, diz Marcelino, autor de Contos Negreiros (2005).

Serjão desde muito esteve presente em eventos organizados por Marcelino, como a Balada Literária e o programa Saideira, gravado há mais de uma década na Mercearia São Pedro, ambos projetos realizados em São Paulo. “Eu o convidava sempre para algo que estava começando a fazer. Ele topava de cara. Era um dos nossos”, define Marcelino — que esteve na última palestra do escritor, no dia 13 de fevereiro, na Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo.

Ricardo Lísias teve a oportunidade de conversar três vezes com o consagrado escritor que tem obras traduzidas em alemão, espanhol, francês e italiano, vencedor quatro vezes do Prêmio Jabuti, três vezes do APCA e uma vez do prêmio da Fundação Biblioteca Nacional. “Era uma pessoa muito culta e ao mesmo tempo bastante gentil. Respeitava o interlocutor e o público. Era agradável conversar com ele”, afirma Lísias, autor de A Vista Particular (2016).

Lísias destaca que ao publicar O Concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro, no início dos anos 1980, Sant’Anna observa aspectos da redemocratização. “O principal deles é a fraqueza com que as instituições democráticas estavam sendo reconstruídas. Essa questão é bastante forte em todos os livros desde então: as personagens são frágeis, emparedadas e fraturadas”, explica Lísias, acrescentando que, a partir da década de 1980, o fragmento, a dificuldade de expressão e as falhas na linguagem passam a ser problematizados na ficção do autor.

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O escritor carioca Sérgio Sant’Anna morreu no dia 10 de maio, vítima da COVID-19. Foto: Daniel Ramalho

 

Mestre do conto
Sérgio Sant’Anna estreou com o livro de contos O Sobrevivente (1969), e em 50 anos publicou mais de 20 livros, incluindo romances, como Amazona (1986) e A Tragédia Brasileira (1987), os poemas de Junk-Box (1984) e principalmente contos. Declarou em entrevistas que se considerava, acima de tudo, contista — inclusive em sua participação no projeto Um Escritor na Biblioteca, no auditório da BPP, em 17 de outubro de 2011. No bate-papo mediado pelo escritor Luís Henrique Pellanda, afirmou que “[o conto] me agrada mais do que romance. Leio conto numa boa, acho um grande tesão ler um bom conto”.

Autor de A Visita de João Gilberto aos Novos Baianos (2019), Sérgio Rodrigues analisa que Serjão é um escritor de histórias curtas: “É aí que deixa sua maior contribuição à literatura brasileira”. Professora de literatura da UFMG, poeta e ensaísta, Maria Esther Maciel afirma que Sant’Anna foi visceral em todas as modalidades textuais a que se dedicou, mas, para ela, no conto o escritor encontrou o seu território por excelência, “sua ‘pátria’ narrativa”.

Carlos Henrique Schroeder, autor de Aranhas (2020), também considera que a ficção de Sant’Anna tem mais potência no conto, “onde ele se sentia mais à vontade, com mais liberdade”. Marcelino Freire assume ser mais leitor dos contos do Sérgio Sant’Anna por procurar captar nessas narrativas os mistérios de criação “curta” do escritor.

De fato, os contos de Sérgio Sant’Anna surpreendem pela linguagem e pelos enredos e desfechos, absolutamente inesperados. Breve narrativa que empresta o título ao livro publicado pelo autor em 2014, “O Homem-Mulher” traz um encontro durante um Carnaval. Até então desconhecidos, Adamastor, vestido de mulher, e Dalva transam, declaram um ao outro amor eterno, mas, atenção, spoiler, eles nunca mais vão se encontrar — o último conto do livro, “O Homem-Mulher II”, retoma a situação, mas no caso desta narrativa não tem comentário, fica a sugestão de leitura.

Primeiro texto de O Anjo Noturno: Narrativas (2017), “Augusta” reúne elementos recorrentes na obra de Sant’Anna, como referências às artes plásticas, morte, sexo, diálogos e frases, sem exagero, magistrais — o crítico literário e professor da Unicamp Alcir Pécora já afirmou que Sant’Anna era, e talvez ainda seja, o “cara” que melhor escreve frases no Brasil: “O mar, é claro. Com iluminação da avenida Atlântica, vê-se a espuma das ondas quebrando na areia, tudo envolto no cheiro de maresia. Dá até para ouvir, a essa hora da noite, quando há um intervalo entre os carros que passam, o barulho dessas ondas. Você também ouve?”.

Carlos Henrique Schroeder diz gostar das narrativas de Sant’Anna sobre os “deslimites” da linguagem, espalhadas em diversos livros, especialmente “Conto (Não Conto)”, “Um Conto Obscuro” e “Um Conto Abstrato”. Ainda destaca textos ficcionais em que sexualidade e tabu entram em espiral e, para Schroeder, um representante desta estirpe é “Um Conto Nefando?”, em que um adolescente mora com a mãe e, tomado por uma crise de ciúmes, acaba tendo relação sexual com ela: “A maneira que o narrador conduz a história é genial, e também como os preconceitos de cada personagem surgem no espectro do pensamento: tabu e linguagem em voltagem máxima”.

Sérgio Rodrigues chama atenção para “O Concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro”, narrativa que dá nome ao cultuado livro de 1982 do Serjão. “É uma espécie de súmula de suas principais características, quase uma declaração de princípios”, define. Do conto, Rodrigues tirou um trecho para epígrafe do seu livro mais recente, A Visita de João Gilberto aos Novos Baianos, o que, frisa, acena para o Sérgio Sant’Anna desde o título. Eis o fragmento-epígrafe: “John Cage ofereceu a gaiola vazia a João Gilberto e disse que era um presente de despedida. — This cage — disse John Cage — contains the Bird of perfection”.

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Carlos Henrique Schroeder e Kelvin Falcão Klein com Serjão, no Festival Nacional do Conto 2014. Foto: Henrique Pereira

 

Olhar prismático
O crítico literário e professor de literatura brasileira da UFRGS Luís Augusto Fischer afirma que Sérgio Sant’Anna apresenta um sentido agudo e elogiável de experimentação — de temas, mas sobretudo de formas narrativas, de ângulos de narração, de modos de apresentação de personagens e conflitos, de tom do texto. “Produziu muitos contos que podem (e até requerem) ser lidos como paródias de outros gêneros textuais, como memórias, texto dramático, crítica de artes visuais e reportagem”, teoriza.

Seguindo o raciocínio, o estudioso da UFRGS acrescenta que Sant’Anna foi um “sujeito de exceção”, porque, de acordo com Fischer, o mais comum é o escritor buscar e lá pelas tantas encontrar sua voz narrativa, sua forma, seu universo temático, e ficar girando em torno desse centro, explorando seus aspectos mais escondidos. “Sant’Anna não: embora eu não possa falar do conjunto de sua obra, que li apenas em parte, creio que ele não apresenta dominantes temáticas ou formais, e sim ostenta essa marca comum de vanguardismo. Mas não consigo encontrar força na obra dele para além disso”, critica.

Sérgio Rodrigues tem um entendimento radicalmente diferente do especialista da UFRGS. Para ele, Sant’Anna esteve sempre às voltas com os temas mais universais, mais ancestrais e básicos da literatura: o sexo, a morte, o fracasso, a solidão: “Fez isso por meio de uma linguagem reflexiva entre o irônico e o lírico, sempre serenamente implacável, o que constitui uma assinatura inconfundível”.

Rodrigues também destaca a inquietação formal, a derrubada de cercas entre os gêneros, o diálogo de Serjão com outras artes e a metalinguagem — tudo isso, afirma, é profundamente informado pela tradição, e não tem, por exemplo, nada de ingênuo ou voluntarista. “Acredito que a obra do Sérgio represente uma ruptura no sentido de que ninguém em nosso país, antes dele, fez dessas características um programa tão abrangente, coerente e continuado ao longo de décadas”, argumenta.

De Belo Horizonte, cidade onde Serjão morou, estudou na Faculdade de Direito da UFMG e conviveu com artistas do Clube da Esquina e do Suplemento Literário Minas Gerais, Maria Esther Maciel observa que a ficção de Sérgio Sant’Anna manteve-se em estado de desassossego, furtando-se à fixidez das formas e à previsibilidade das fórmulas: “Com seu olhar prismático sobre a realidade, sua habilidade criativa no manejo da linguagem e seu humor inquietante, o escritor carioca (e meio mineiro) criou uma obra ao mesmo tempo múltipla — pela variedade de temas, personagens, técnicas e cenários — e singular, tendo em vista o seu caráter ímpar, irrepetível”.

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André Sant'Anna, Mariza Muniz, Sérgio Sant'Anna e Paula Muniz na Biblioteca Mário de Andrade, em SP. Foto: Arquivo Pessoal/André

 

O ainda não feito
Na manhã de 15 de setembro de 2010, André e Sérgio Sant’Anna participaram de um bate-papo sobre leitura no Paço da Liberdade, no centro de Curitiba. Acompanhei o encontro e escrevi a reportagem “Dia de Sant’Anna em Curitiba”, publicada na Gazeta do Povo. Entre várias observações, Serjão disse que evitava ler os seus textos depois de eles serem publicados em livro: “O Chico Buarque me disse que ele também não costuma escutar as músicas que fez e gravou. Esse tipo de comportamento é bastante comum [entre artistas]”.

Antes do evento, comentamos a literatura do Dalton Trevisan e o fato de, naquele contexto, o célebre contista curitibano publicar inéditos na Tribuna do Paraná e na Revista Ideias. O Serjão falou com entusiasmo da sua admiração pela obra do até hoje mais importante escritor paranaense — opinião repetida em entrevistas que ele concedeu. Há dias, consultei o André e ele confirmou que, de fato, o seu pai era fã do Dalton Trevisan, “o contista que ele (Sérgio) mais gostava e um dos primeiros que me ‘apresentou’, quando comecei a ler literatura adulta”.

Em 2014, o Serjão foi o autor homenageado do Festival Nacional do Conto, realizado em Florianópolis com curadoria do Carlos Henrique Schroeder. No bate-papo, inesquecível para o curador, Sant’Anna lembrou os anos pujantes que passou, no início da década de 1970, nos Estados Unidos, participando de um programa internacional para escritores na Universidade de Iowa. Também falou sobre o seu conto clássico sobre o futebol, o “Na Boca do Túnel”, e de como o futebol serviu de metáfora para o fazer literário em alguns de seus livros, além de comentar processos criativos, João Gilberto Noll (autor que admirava), a sua mãe religiosa, a psicanálise e Marcel Duchamp.

Além do que a obra literária apresenta nas linhas e entrelinhas, e também a partir do que foi relatado no parágrafo anterior, o vasto repertório do Serjão pode ser identificado a partir dos autores que ele indicou ao filho. “Na poesia, além da coisa toda que interessa, ele me aplicou, na adolescência, o Sebastião Nunes e o Chacal, dois influenciadores do meu pensamento”, conta André, citando ainda os “malucos” — “de vanguarda” — José Agrippino de Paula, Jorge Mautner, Nelson Rodrigues (“este não ia gostar de ser incluído na lista da vanguarda”), Joyce, Shakespeare, Glauber Rocha, Buñuel, Godard e os beatniks.

Ricardo Lísias não deixa de observar que, indiscutivelmente, Sérgio Sant’Anna é um escritor que herdou os marcos da geração de maio de 1968: liberdade, ousadia e criatividade. André acrescenta que o pai era um artista sempre em busca do “ainda não feito”. Mais que isso. “Não sei nem como explicar direito, mas acho que a literatura dele, com todas mudanças e invenções, era honesta intelectualmente, transparente”, analisa.

Professor na Escola de Comunicação da UFRJ (Sérgio Rodrigues foi seu aluno e monitor), funcionário do Tribunal Regional do Trabalho, colaborador de jornais e revistas, mais que tudo, Sérgio Sant’Anna foi — definido pelo filho — um autor que “suava sangue” para expressar aquilo que realmente desejava. “Não usava efeitos especiais, não seguia ‘bons procedimentos literários’. Quando fazia experimentações de linguagem, era sempre para conseguir o melhor meio para dizer o que queria dizer, nunca por ‘vanguardice’.”

E, aproveitando a expressão que André usa em sua página do Facebook para saudar artistas que admira, talvez não seja exagero, nem delírio, incluir na reportagem aquelas três palavras: “Viva os Maluco!”. Ou, então, escrever aleatoriamente aqui “Guzzy Muzzy”, nome nonsense de uma canção do Jorge Mautner, artista que fazia a cabeça do Serjão, ou ainda ter como desfecho deste texto “Ho-ba-la-lá”, título de uma das poucas composições de João Gilberto, um dos artistas mais admirados pelo ficcionista, citado nas páginas e no título de uma das obras do maestro das narrativas, Sérgio Sant’Anna.

 

MARCIO RENATO DOS SANTOS é autor de oito livros de contos, entre eles A Certeza das Coisas Impossíveis (2018) e A Cor do Presente (2019). Algumas de suas narrativas estão em coletâneas, como O Livro Branco (2012) e Wir Sind Bereit (2013), publicada na Alemanha. Jornalista e Mestre em Estudos Literários pela UFPR, foi o curador das três primeiras edições da Fibi, a Festa Literária da Biblioteca Pública do Paraná.