ESPECIAL | A nova onda africana 21/12/2021 - 15:25
Em 2021, alguns dos principais prêmios literários foram vencidos por autores africanos — uma grande coincidência ou mudança de paradigma?
Luiz Rebinski
O mundo literário parece ter (re) “descoberto” o continente africano. Alguns dos mais relevantes prêmios literários foram para autores nascidos na África. No começo de outubro, o Prêmio Nobel pegou mais uma vez o mundo de surpresa ao anunciar que a honraria iria para Abdulrazak Gurnah, autor nascido na Tanzânia, mas que vive há décadas na Inglaterra — ele deixou para trás eternos favoritos como o japonês Haruki Murakami e a canadense Margaret Atwood.
Na sequência, a moçambicana Paulina Chiziane, que traz em sua literatura a força da história oral de seu povo, venceu o Prêmio Camões, a maior honraria da literatura de língua portuguesa. Por fim, o Reino Unido e a França também se renderam a autores africanos: o Booker Prize foi dado a Damon Galgut, da África do Sul, e o Gouncourt a Mohamed Mbougar Sarr, do Senegal.
Mas esse é só mais um indicativo de que autores africanos (ou descendentes) têm ganhado os holofotes do mundo literário depois de décadas à margem do mainstream. Nos Estados Unidos, Colson Whitehead venceu recentemente duas vezes o prêmio Pulitzer de ficção, por The Underground Railroad: Caminhos para a Liberdade (2017) e O Reformatório Nickel (2020), ambos publicados no Brasil pela HarperCollins.
A nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie arrebatou a crítica anos atrás com o romance Americanah e desde então virou um dos nomes mais badalados não só nos EUA, mas em diversos outros países, como o Brasil — ela participou em 2020 do Roda Viva, tamanha sua popularidade no país.
Diáspora
“A literatura negra diaspórica e africana se tornou uma das maiores potências literárias do século XXI”, diz Paulo Werneck, editor da revista sobre livros Quatro Cinco Um. “Sempre foi uma literatura poderosa, mas há uma ou duas décadas entrou no radar de editores, agentes literários, tradutores, críticos, jornalistas e por fim dos leitores de todo o mundo.”
As obras dos vencedores citados acima falam, sem exceção, de questões ligadas à história do povo negro, seja com o apartheid como pano de fundo para The Promise, de Damon Galgut, ou por meio de temas caros aos africanos colonizados por portugueses, como é o caso de O Alegre Canto da Perdiz, romance de Paulina Chiziane em que a protagonista se vê dividida entre suas raízes africanas e a influência europeia.
“Penso também que existe um fluxo de escritores africanos que migraram para a Europa e para os Estados Unidos nas últimas décadas. Isso muda certas dinâmicas de legitimação do texto literário, autoriza outras ‘inscrições’”, explica o escritor Vagner Amaro, que atua como editor da Malê, pioneira na publicação de autores negros no Brasil. “Junto com a intensificação dos movimentos antirracistas em 2020, criam uma ambiência de amadurecimento intelectual sobre o quanto as instituições legitimavam majoritariamente escritores brancos e o quanto isso era fruto do racismo”, completa.
O gaúcho Paulo Scott movimentou o debate sobre racismo no Brasil com um livro impactante, Marrom e Amarelo, lançado há dois anos. Para além da discriminação que se conhece, o romance colocou em pauta outra questão racial, essa menos debatida: o colorismo, uma espécie de hierarquia no racismo, conforme o tom da pele negra. Quanto mais retinta a pessoa, maior é o racismo.
Para Scott, esse bom momento vivido por autores negros mundo afora “é parte do esgotamento de um ciclo, de uma lente chanceladora que foi se tornando opaca, incapaz de reter a circulação de histórias, perspectivas e reflexões que a internet e a sua horizontalização do mundo possibilitaram, no plano do mercado e no plano da linguagem criativa”.
Novos caminhos
No entanto, antes de Abdulrazak Gurnah vencer o Nobel, o prêmio não era entregue a um autor africano negro há mais de 35 anos, quando o nigeriano Wole Soyinka venceu em 1986. Soyinka, considerado um dos maiores dramaturgos da África, é uma espécie de pioneiro, que pavimentou a estrada para que os autores negros de hoje possam mostrar seus trabalhos sem tantas amarras e menos preconceito.
“Houve uma geração anterior a esses autores que abriu caminhos, enfrentou o preconceito no mercado, na mídia e nos leitores até se afirmar”, diz Paulo Werneck. E a chave para entender essas mudanças também passa pela troca de geração em postos-chave do mercado editorial, das premiações e até mesmo do jornalismo.
“Meu editor inglês, Stefan Tobler, é um belo exemplo dessa alteração de paradigma”, diz Paulo Scott. “Ele é parte dessa nova geração que percebe a urgência e a necessidade de troca da maneira como se enxerga e se dialoga com o outro. Escolhas como as dele, inevitavelmente políticas, sustentando a inclinação pelo outro, a conexão com o outro, em algum momento, começaram a gerar resultados. A consequência é o que se constata agora.”
No Brasil
O Brasil parece acompanhar essa “tendência” mundial, dando mais espaço a autores negros nas editoras, eventos literários e premiações — no final de novembro, o mineiro Edimilson de Almeida Pereira venceu o Prêmio São Paulo de Literatura, que distribui a maior premiação em dinheiro no país (R$ 200 mil). E há uma “vigilância” grande em relação a essas questões por parte dos próprios leitores, e não apenas de quem é parte do movimento negro.
“No Brasil o mercado, nos últimos cinco anos, vem ampliando a publicação da autoria negra, embora seja mais de escritores negros não brasileiros”, diz o editor Vagner Amaro. Para Paulo Scott, que também tocou na ferida de outra minoria marginalizada no país, a dos povos indígenas, em seu romance mais celebrado, Habitante Irreal, ainda falamos pouco sobre racismo na literatura ou fora dela, o que considera “vergonhoso”.
Ainda assim, ele vê com esperança o futuro de autores e da literatura negra no país. “O Brasil é um país negro e indígena”, diz. “Nossa elite branca, em setores do ambiente acadêmico inclusive, fez de tudo para eliminar a possibilidade desses protagonismos (negro, indígena e de outras origens), mas não conseguiu, apesar de todo o seu egoísmo, de toda a sua violência opressora.”
Luiz Rebinski é jornalista e autor do romance Um Pouco Mais ao Sul (2016). Foi editor do Cândido entre 2011 e 2019 e atualmente é editor-assistente do jornal Rascunho.