ESPECIAL | Quatro séculos de influência 29/04/2022 - 13:09

William Shakespeare ajudou a formatar o pensamento ocidental com sua abordagem inovadora de temas como guerra, política, morte, amor e ciúme

Luiz Felipe Cunha

 

Bardo
Imagem: Reprodução

 

Em 1623, quando os ingleses John Heminges e Henry Condell resolveram compilar as obras de William Shakespeare pela primeira vez no livro First Folio — hoje avaliado em mais de 9 milhões de libras —, um outro dramaturgo famoso da época, Ben Jonson (1572-1637), fez uma previsão certeira no prefácio: “Ele não é de uma época, mas para todo o sempre”. Naquele ano, a Guerra dos Trinta Anos seguia a todo vapor, as colônias inglesas se assentavam aos poucos no território que hoje é os Estados Unidos e a morte do Bardo completava seis anos. “Tu és um monumento sem túmulo, e ainda está vivo enquanto teus livros vivem”, arrematou Jonson.

A afirmação de Jonson é incontestável. Quatrocentos anos após a morte de Shakespeare, ainda discutimos a obra do autor de Romeu e Julieta, Macbeth e Hamlet. Sua influência atingiu artistas de diferentes gerações — de nomes clássicos como Virginia Woolf, Vitor Hugo e Machado de Assis aos contemporâneos Jeremy O. Harris, Jean Hegland e David Foster Wallace. E não apenas na literatura. Produções midiáticas recentes, como o filme A Tragédia de Macbeth (2021), dirigido por Joel Coen e com Denzel Washington no papel de Lord Macbeth, ou o roteiro shakespeariano da série Succession (HBO), provam que o Bardo nunca sai do radar cultural.

No Brasil, a Nova Fronteira lançou em 2021 o livro O que Você Precisa Saber Sobre Shakespeare Antes que o Mundo Acabe, organizado pelas professoras e pesquisadoras Liana Leão (UFPR) e Fernanda Medeiros (UERJ). São ensaios de autores nacionais e internacionais que se propõem a corresponder o desafio proposto pelo título, tendo em vista o contexto de emergência da pandemia. “Sabíamos que William, que tem algo a dizer sobre tudo o que concerne ao humano, e que foi, ele mesmo, um sobrevivente da peste (...) certamente seria um autor cuja presença seria importante invocar”, escrevem as organizadoras na introdução.

Nesse sentido, o livro também é uma busca por aprendizado e oferece um repertório que faz entender a magnitude de um autor que, até onde se sabe, compôs sonetos e parte do seu trabalho durante a pandemia de peste bubônica que colocou a Europa inteira em quarentena, no início do século XVII. “A ideia surgiu da vontade de não deixar que a pandemia nos aniquilasse intelectualmente ou existencialmente. O livro é uma forma de criar uma comunidade, de se juntar aos pares em torno de algo que a gente acredita que faz sentido e que pode contribuir para que outros encontrem sentidos”, diz Fernanda.

 

Mcbeth
Denzel Washington em cena de A Tragédia de Macbeth, filme do diretor Joel Coen. Imagem: Divulgação

 

Quando se trata da biografia do dramaturgo inglês mais famoso do mundo, nada é consenso: faltam fontes e os estudiosos batem cabeça para cravar informações (o que resulta em teorias da conspiração, como veremos à frente). Sabe-se que ele nasceu em abril de 1564, em Stratford-upon-Avon, aproximadamente a 160 Km de Londres. Supõe-se que o pequeno William, terceiro de oito filhos, frequentou a escola (mas não a universidade, como os intelectuais da época), pois era filho de um proeminente homem de negócios e uma dona de casa. Ademais ajudou o pai no trabalho, casou-se aos 18 anos e teve três filhos.

Mas não se sabe como surgiu seu interesse pela escrita e o teatro, muito menos os motivos que o levaram até Londres. Ou ainda detalhes sobre como se tornou proprietário do Globe, um dos maiores teatros públicos da época — o período entre 1582 e 1592 é chamado pelos especialistas de “anos perdidos”.

A primeira evidência da ascensão de Shakespeare no teatro aparece em uma crítica do escritor Robert Greene (1558-1592) em que não é possível afirmar se ele era fã ou hater do dramaturgo. Greene escreve: “Um corvo arrogante, embelezado com nossa plumagem, que com seu coração de tigre, envolto em pele de ator, pressupõe-se que seja bem capaz de escrever um verso vazio de forma bombástica, como o melhor de vocês: um absoluto faz-tudo”.

Com a chegada da peste em 1593, o comércio e as igrejas fecharam, assim como os teatros e outros espaços públicos. Impedido de atuar ou dirigir, Shakespeare se pôs a escrever algumas peças e sonetos em que dialogava sobre a finitude da vida e o que fazer em um mundo dominado pela barbárie da guerra. Mais tarde, naquela mesma época, outro evento catastrófico iria impactar o Bardo: a perda de seu filho. A partir de então, o tema da morte passou a ser um dos pilares de sua obra.

“A morte está em toda a obra de Shakespeare, do leito conjugal ao campo de batalha. Porém raramente é tratada em termos religiosos”, explica a pesquisadora Liana Leão. “Em geral, a presença da morte leva os protagonistas a questionamentos existenciais.”

Isso pode ser observado, por exemplo, na peça Medida por Medida. Em um espaço de poucas linhas, o personagem Claudio muda completamente de atitude diante da morte. Ele está condenado a morrer e inicialmente se considera pronto para enfrentar, com coragem, o seu destino:

 

Pois se eu devo morrer,

Enfrentarei a morte como noiva,

Tomando-a em meus braços

 

Pouco depois, quando a possibilidade de não mais existir vai se tornando mais palpável, mais concreta, sua coragem inicial o abandona e ele passa temer a morte:

 

Porém morrer, sem saber pr’onde vamos,

Jazer no frio e lá apodrecer….

A mais odiosa vida neste mundo —

Cuja dor, idade, cárcere ou penúria

Lançados à natureza — é um paraíso

Diante de nosso temor à morte.


Liana, no entanto, explica que Shakespeare não nos dá instruções morais e soluções para lidar ou entender o tema polêmico, mas, antes de tudo, ensina que nosso destino está em nós mesmos. “A responsabilidade pela morte e pela tragédia dos protagonistas pode até flertar com a ideia de destino e da vontade dos deuses”, diz a pesquisadora. “Mas, ao fim, a responsabilidade é sempre do indivíduo. Se há uma lição a ser aprendida nas tragédias — e é uma lição universal — é esta.”

Falando em universalidade, Harold Bloom (1930-2019) — considerado o crítico literário mais importante do mundo — abordou extensivamente a obra do Bardo no livro Shakespeare: A Invenção do Humano (Objetiva, 2000). Para ele, o dramaturgo inglês deu dimensões e camadas complexas para o ser humano, antes inexistentes, e “inventou o homem”. “Shakespeare é o maior inventor, não só de personagens morais, mas da personalidade humana em toda a história da literatura ocidental e talvez universal”, disse Bloom em entrevista à Folha de S. Paulo à época do lançamento do livro.

Para exemplificar a premissa de Bloom, Liana Leão fala sobre um tema especifico: o ciúme. “Ao longo da História, o ciúme já foi considerado como moralmente justificado”, diz. “Na literatura grega, na Ilíada, Menelau inicia a Guerra de Tróia para vingar uma humilhação pública: a infidelidade de Helena é um insulto à moral daquela sociedade.”

A especialista explica que o ciúme é entendido em termos de imperativos morais, honra e adesão ao seu papel social. Shakespeare, pelo contrário, retrata o ciúme e a suposta infidelidade de modo inteiramente diferente, muito mais próximo da nossa compreensão contemporânea do ciúme. “Hoje não priorizamos mais a ligação entre honra e ciúme (ciúme ligado à preservação da honra e integridade da família, socialmente sancionado como resposta à infidelidade). Hoje o ciúme é um sintoma de imaturidade, possessividade, neurose, instabilidade, insegurança”, diz.

 

série hbo
Roteiro shakespeariano é um dos destaques de Succession, série da HBO. Imagem: Divulgação

 

Outro tema que aparece na obra de Shakespeare é a política, principalmente em peças históricas como Henrique VI (partes I, II e III), Ricardo III e Ricardo II, Vida e Morte do Rei João, Rei Lear (que ganhou uma adaptação poética na premiada série da HBO Succession, principalmente no que diz respeito aos embates acalorados entre pai e filho) e Hamlet (inspiração total para a uma das animações de maior sucesso da Disney, O Rei Leão). Todas essas peças narram, pode-se dizer, a história política da Inglaterra. Então podemos ver ali deposições de reis, derrotas em campo de batalha e coroações que vão desde os anos 1300 até 1485.

Geralmente, as tramas políticas têm como pano de fundo a guerra. Vale ressaltar que o período em que o Bardo viveu era constantemente marcado por elas, então nada mais natural que Shakespeare fosse influenciado pelo tema, mesmo quando escreve comédias (A Comédia dos Erros, Noite de Reis e Sonho de uma Noite de Verão).

“Essas peças nos fornecem toda a gama de reações possíveis à guerra. Retrata o heroísmo e também a futilidade da guerra. Permite-nos indagar sobre quem se beneficia em deixar a guerra acontecer, quais grupos sofrem mais ou menos, quem lucra com a vitória ou a derrota — essas são questões políticas”, salienta Liana.

Shakespeare é um desses autores que, quanto mais se estuda, novos caminhos de interpretações são descobertos. Ele explorou a alma humana com clareza e beleza, revelando e inventando o homem moderno (como apontou Bloom). Quando morreu, aos 51 anos, em 1616, já era conhecido em seu país, fez parte da companhia de teatro da corte e comandou alguns teatros londrinos. Em sua lápide, há um pedido: “Pelo amor de Jesus, abstenha-se de cavar a poeira aqui encerrada. Abençoado seja o homem que poupar essas pedras, e maldito seja aquele que remover meus ossos”.

 

Shakespeare para iniciantes

As organizadoras do livro O que Você Precisa Saber Sobre Shakespeare Antes que o Mundo Acabe indicam as melhores peças para adentrar no universo shakespeariano.

Liana Leão — “Indico alguns livros de Barbara Heliodora, pois foi quem mais publicou obras que falam aos leitores em geral: Falando de Shakespeare (Perpectiva, 2007) e O Teatro Explicado aos Meus Filhos (Agir, 2008).”

Fernanda Medeiros — “Sempre acho que Romeu e Julieta é um ótimo começo. É uma peça riquíssima, sobre o indivíduo, sobre a política, sobre a guerra… No outro extremo, Rei Lear também é um bom começo, apesar de sua qualidade tão dolorosa. Mas o tema da família, do poder, da política e do dinheiro estão amalgamados nessa peça de um modo espetacular.”