ESPECIAL | Prateleira leminskiana 11/08/2025 - 12:42

Por Estrela Leminski 

 

Meu pai tinha uma biblioteca gigantesca, com cerca de 5 mil livros. Era uma verdadeira selva literária, com uma organização peculiar que só ele entendia, on­de não apenas se aventurava, mas fazia expedições constantes, principalmente atrás dos dicionários. Esses eram quase sua coleção de armas secretas: usava-os para dissecar línguas, aprender novas, aperfeiçoar outras e, claro, cometer eventuais excessos verbais.

Impossível não falar da poesia concreta: os irmãos Campos (Haroldo e Augusto) e Décio Pignatari. Já na po­esia em geral, ele lia os clássicos com aquela mistura de devoção e irreverência: Drummond, Mário Quintana, Fernando Pessoa, Maiakovski, Ezra Pound. Por is­so, foi uma tarefa difícil elencar apenas cinco livros. Meu critério foram obras bastante citadas por ele em palestras, ensaios ou entrevistas, ou que reverberaram claramente em sua própria escrita.
 

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Imagem: Divulgação/ Culturix

ABC da literatura (1934), por Ezra Pound


O ABC da literatura é um clássico modernista em que Ezra Pound propõe ensinar, de forma direta, o bê-á-bá da literatura. Ele apresenta três critérios essenciais para julgar um texto: melodia, imagem e pensamento. A ideia é que qualquer leitor, atento aos elementos certos, pode reconhecer a boa literatura. Para exem­plificar, ele convoca Homero, Dante, Confúcio, Shakespeare — sempre os clássicos. Uma de suas frases marcantes deste livro, "A grande literatura é simplesmente linguagem carregada com o máximo grau possível de significado”, reaparece em frases do meu pai, quando ele se refere à poesia como "o máximo de conteúdo no mínimo espaço" ou "Ultrabytes de informação".
 

 

Poética – Como fazer versos (1926), por Vladimir Maiakóvski

 

Poética – Como fazer versos é muito mais que um manual; é um manifesto apaixonado de Maiakovski sobre a criação poética. Ele fala, com seu estilo direto e intenso, sobre técnica, a função social da poesia, a linguagem como matéria-prima e a necessidade de sinceridade. O livro é um convite para pensar a poesia não como um adorno, mas como uma força vital, uma ferramenta transformadora, sempre com clareza e intensidade. A paixão do meu pai pela obra de Maiakovski, e a reflexão sobre a poesia com engajamento político, aparecem e re­verberam na biografia que ele escreveu sobre Trotsky (A paixão segundo a revolução), presente no livro Vida (2013), publicado pela Companhia das Letras.

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Imagem: Divulgação/ Editora Global

 

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Imagem: Divulgação/ Cosac & Naify

O arco e a lira (1956), por Octavio Paz


Em O arco e a lira, Octavio Paz investiga o que é a poesia, como funciona e qual seu papel na experiência humana. O arco representa a tensão criativa, o impulso; a lira, a harmonia, a forma. Ele distingue a poesia como modo de ser, uma abertura para o mistério – do poema – que é sua concretização. Defende ainda que há muita poesia em outros fazeres artísticos, para além da literatura. "A poesia não é um ornamento: é um modo de ser." Sua frase emblemática dialoga com o pensamento leminskia­no de que a poesia não é uma "excrescência ornamental"; ela é necessidade essencial do ser humano e da sociedade.
 

 

Sol e aço (1968), por Yukio Mishima


O ensaio autobiográfico de Mishima, Sol e aço, reflete sobre a união entre corpo e espírito, pa­lavra e ação. O "sol" simboliza a vitalidade e a experiência física; o "aço", a disciplina, a força e a dureza do corpo transformado em arma e obra de arte. Mishima defende que só através da disciplina corporal extrema se alcança a verdadeira unidade entre pensamento e ação. Meu pai, além de estudante do idioma japonês e um expoente do haicai no Brasil, também cul­tivou as artes marciais, especialmente o ju­dô, e traduziu Sol e aço para o português (Editora Brasiliense, 1986). No Jornal de Vanguar­da, ele fez uma performance reproduzindo o ritual de harakiri (suicídio em nome da honra, com a espada katana no ventre) com um texto em off lindíssimo em homenagem a Mishima.
 

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Imagem: Divulgação/ Brasiliense

 

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Imagem: Divulgação/ Iluminuras

Finnegans Wake (1939), por James Joyce

 

Finnegans Wake é uma das obras mais inventivas da literatura ocidental. Joyce rompe com a narrativa tradicional para criar uma linguagem onírica e poliglota, feita de "portmanteau", a­quelas palavras-malas que condensam múltiplos sentidos. O livro é um mergulho no fluxo do inconsciente, mais próximo da música e do sonho do que da prosa convencional. O paralelo com Catatau (1975) é inevitável: ambos são experiências radicais de linguagem, brincam com o delírio filosófico e desafiam qualquer leitura fácil. Neste caso, enquanto Joyce abriu o terreno da linguagem, em Catatau meu pai mergulha nos trópicos, na história do Brasil, no questionamento do sentido, imaginando René Descartes vindo na comitiva de Mau­rício de Nassau, e reinventando o português brasileiro como laboratório criativo e poético.

 

Estrela Ruiz Leminski (Curitiba, 1981) é escritora e compositora brasileira. Formada em Música e especialista em MPB pela Unespar, é mestre em Música (UFPR e Universidad Valladolid-Espanha). Tem dois livros de poesia lançados e quatro discos. Em 2014, gravou um CD duplo de composições de Paulo Leminski e organizou seu songbook, mostrando o aspecto de compositor do poeta. É uma das curadoras das exposições Multiplo Leminski, Poeta Alice e Meu coração de polaco voltou. Seu livro Poesia é Não foi contemplado pelo programa PNBE e adotado pelas escolas do país. Integrou antologias de poetas organizados e ilustrados por Adriana Calcanhoto, lançados pela editora Companhia das Letras. Em 2024, lançou seu primeiro romance Quando a Inocência Morreu, pela editora Iluminuras.

Estrela Leminski
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