ESPECIAL CAPA | A literatura em último volume 20/01/2025 - 13:13
por Fernanda Maldonado
A América Latina é sempre repleta de personagens da vida real cujas trajetórias poderiam facilmente ser narradas como literatura. Arrisco dizer que Andrés Caicedo, por exemplo, seria perfeitamente um dos detetives selvagens de Roberto Bolaño. Colombiano de Cali, a capital da salsa, foi um intelectual precoce e ativo crítico de cinema, intimamente conectado com as efervescentes cenas artísticas caleñas da década de 1970. “Un muchacho nada acartonado", define Pilar Caicedo, apontando para a personalidade autêntica e expressiva do irmão, que segundo contou em entrevista para o jornal colombiano El Tiempo, não era um bom dançarino – o que em Cali pode significar quase uma tragédia.
A vida de Andrés Caicedo, aliás, foi de fato interrompida por uma tragédia, na perspectiva de algumas leituras. Ou, quem sabe, por uma decisão consciente do rapaz que acreditava e escrevia – com constância e disciplina – que “viver depois dos 25 anos é uma desonestidade". No dia 4 de março de 1977, justamente aos 25, ele se suicidou tomando dezenas de comprimidos sedativos. Naquele mesmo dia, havia recebido as cópias do seu segundo romance, o mais importante publicado em vida, ¡Que viva la música!.
A obra atravessou algumas gerações e aos poucos tem se tornado mais um emblema para a literatura latinoamericana contemporânea, mesmo em total contrafluxo aos movimentos literários da sua época, já que se trata de uma construção narrativa apegada ao mais cru e concreto do cotidiano urbano. Para o escritor chileno Alberto Fuguet, Caicedo é, aliás, o “inimigo número um” de Macondo. Seus textos não carregam nenhuma conexão com o realismo fantástico que tornou famoso o ilustre conterrâneo Gabriel García Márquez.
Capa da edição brasileira de Viva a música (Rádio Londres, 2014) e da primeira edição colombiana de 1977
Cabe um parênteses em forma de parágrafo para contar que, no Brasil, o romance de Caicedo só foi publicado em 2014 pela extinta editora Rádio Londres, com tradução de Luis Reyes Gil. A editora foi atuante de forma independente por poucos anos e desapareceu do mercado sem deixar rastros em 2020. Ficaram apenas algumas excelentes publicações – hoje esgotadas – celebradas por leitores atentos à tradução de obras raras, especialidade do selo, e esquecidas pelo mercado editorial. Isso significa que mesmo já editado uma vez em português brasileiro, segue sendo um autor pouco conhecido e pouco difundido no Brasil. No contexto colombiano, o escritor tem um status de culto póstumo e um quê de underground.
O suicídio para Caicedo foi desejado com premeditação, e antes de março de 1977, houve duas tentativas prévias. Seu primeiro livro, El atravesado, teve publicação financiada por sua mãe em 1975, como tentativa de evitar novas investidas do filho em tirar a própria vida. Como qualquer autor que se mata, o suicídio se torna quase incontornável na sua biografia e não raro vira um buraco negro em torno do qual giram todos os demais fatos. Mas, ao menos aqui neste texto, o incontornável da questão não é a pulsão de morte, mas sim de vida, e podemos reconhecê-la em diversos momentos nos seus escritos e seus personagens, alguns construídos como alter egos.
Dedicatória de Caicedo na edição pirata de Atravesado, seu primeiro livro, em setembro de 1975
A leitura de ¡Que viva la música! dialoga com as reflexões e sensações da protagonista,de Ricardo Ray a Mick Jagger
Cali, salsa e rock'n'roll
A trajetória intelectual e o ativismo cultural de Andrés Caicedo estão profundamente marcados pela sua cidade natal, que, por sua vez, é absolutamente marcada pela música. Além da música, o autor era bastante conectado ao teatro e ao cinema, envolvido em coletivos, cineclubes e crítica cultural. Junto aos companheiros Luis Ospina, Carlos Mayolo, Hernando Guerrero e Ramiro Arbeláez, fundou o Cine Club de Cali, que em princípio operava no Teatro Experimental de Cali e depois foi para a Ciudad Solar até se instalar, por fim, no Teatro San Fernando. Todos esses foram espaços fundamentais para a agregação e dinâmica cultural daquele momento.
A interconexão dos interesses entre linguagens se materializava constantemente na atuação do grupo, em suas iniciativas de movimentação da cena cultural caleña. Uma passagem simbólica dessa história foi a produção de uma série de cartazes de protesto. Um deles ficou muito famoso na Colômbia e, até hoje, possui um simbolismo bastante cultuado, em que carrega uma mensagem de rechaço do coletivo de Caicedo ao chamado Sonido Paisa, um estilo particular de salsa que emergiu na região de Medelín entre os anos 1970 e 1980.
Diferente da salsa de Cali e de Nova York, (há pesquisas que indicam, inclusive, que a salsa nasceu mesmo nas comunidades latinas da Big Apple) que tinha forte influência cubana e porto-riquenha, o Sonido Paisa desenvolveu características próprias ao trabalhar com elementos simplificados, arranjos bem menos complexos, e ênfase nas melodias românticas e letras sentimentais. O movimento alcançou enorme sucesso*comercial e foi duramente criticado por alguns puristas como uma versão diluída do gênero.
Cartaz feito pelo Cine Club de Cali, reproduzido pelo coletivo de artes gráficas La Interna de Cali
Caicedo foi um intelectual precoce e ativo crítico de cinema, profundamente conectado com as efervescentes cenas artísticas caleñas da década de 1970
A salsa, ritmo típico de Cali, teve forte cena em Nova York na década de 1970
Em ¡Que viva la música!, a rica e loiríssima protagonista María del Carmen Huerta personifica essa fusão música-vida e escancara paradoxos e conflitos de classe tipicamente latinoamericanos. A narrativa é uma viagem sensorial da personagem por Cali, onde a divisão social da cidade é marcada também por fronteiras musicais. No norte, o rock anglo-saxão, símbolo de rebeldia e cosmopolitismo, e, no sul, a salsa, cadência visceral que embala os corpos e as paixões populares. Ler o livro é, de certo modo, escutar uma playlist cuidadosamente montada pelo autor, em que as letras das músicas dialogam com as reflexões e sensações da protagonista, de Ricardo Ray a Mick Jagger.
O próprio Caicedo, embora mais devoto ao rock setentista do que à salsa, entendia com nitidez a força cultural do gênero que tornou Cali famosa no mundo inteiro. Ele reconhecia na salsa uma música de resistência e celebração, uma expressão das ruas que, com seu frenesi, refletia as tensões sociais da Colômbia de seu tempo. Em alguns textos críticos e cartas, fica claro seu fascínio pelas letras que narram histórias de amor e desilusão, de sobrevivência e tragédia, tão próximas das tramas de suas histórias. A salsa era como um espelho da realidade caleña – apaixonada, contraditória, problemática, viva. O rock foi, no entanto, a trilha que definiu seu imaginário pessoal. Em crônicas, Caicedo explora ícones da contracultura ocidental, e sua escrita carrega uma energia crua, certa estética do colapso, sempre à beira de um abismo.
Em certo momento de ¡Que viva la música!, María declara: "Los Rolling Stones me pertenecen"; a afirmação sintetiza o ethos de uma geração que encontrou no rock a expressão máxima de liberdade. Me pergunto com uma curiosidade imensa o que pensaria Andrés Caicedo sobre o rock hoje: seria ele apegado ao simbolismo contracultural das últimas décadas do século XX, ou veria no rock clássico um anacronismo e até mesmo um conservadorismo mofado, que já não dialoga mais com as demandas levantadas pelas novas gerações?
Ele soube transformar a música em linguagem literária, fazendo com que a estrutura do texto ecoasse o ritmo acelerado de uma cidade em constante movimento. Cada passo de María, cada encontro e cada transformação são descritos como se fossem parte de uma coreografia urbana equilibrada entre o hedonismo e a autodestruição, sempre, sempre musical.
A relação entre literatura e música para Andrés Caicedo não é apenas temática, mas estrutural. Seus textos têm o ritmo e a urgência de uma canção tocada em volume máximo. E, como as melhores canções, sua obra carrega um impacto emocional que reverbera muito além do último acorde – ou, no caso, da última linha. Ler Caicedo é essa experiência frenética, arrebatadora e, ao mesmo tempo, profundamente melancólica.