ESPECIAL CAPA | Catatau 50 anos ou a psicodelia cartesiana de Paulo Leminski 12/08/2025 - 17:12

Por Isa Honório

 

"A lucidez é feita de muitas coisas obscuras: para quem não enxerga, só resta o clarão", escreveu Paulo Leminski no seu Catatau, publicado em 1975. É justamen­te nessa lucidez, misturada com maluquez, que surge esse romance-ideia que tem quebrado cabeças há 50 anos. O livro foi produzido, ou melhor, mastigado, deglutido e vomitado ao longo de oito anos, até que 2 mil cópias – dificílimas de se encontrar hoje em dia – foram impressas pela editora curitibana Grafipar.

Menos pop e mais cult que as poesias e composições de Leminski, o Catatau – termo usado para se referir a livros muito volumosos – reúne em suas 224 pá­ginas outro tipo de volume, não físico, mas de conteú­do. A premissa da narrativa é quase anedótica: o autor imagina a vinda do filósofo francês René Descartes (em sua versão latinizada, Renatus Cartesius), ao Nordeste brasileiro, com a expedição do conde Maurício de Nassau, no século 17. Dignos de um poeta obcecado pelos haikais, menos é mais, muito mais, no Catatau. E a viagem não acaba por aí. 

Entre folhas, bichos, nativos e um "cachimbo de nar­cóticos", a leminskíada começa com o choque entre o mundo aristotélico-cartesiano de um europeu colonizador e a natureza encantadora da terra brasilis inexplorada. São referências aos tropicalistas, concretos, mo­dernos, clássicos, escolásticos, James Joyce e Guimarães Rosa; organizadas em português, latim, inglês, alemão, espanhol, tupi, holandês, francês, grego e japonês; em forma de neologismos, rimas, onomatopeias e efeitos poéticos. Uma nova linguagem, que com­bine com o Novo Mundo. São 50 anos de Catatau, o li­vro no qual cabem os 500 de Brasil. 

Tão grandiosa quanto banal, a ideia surgiu em 1967, enquanto Leminski dava uma aula de História para em um cursinho pré-vestibular – ambiente menos criativo possível. Daí veio o conto "Descartes com Lentes", que serviu de base para a obra final. Esta primeira versão, na qual a história – e o estilo – já estavam esboçados, rendeu o posto de finalista do I Concurso Nacional de Contos do Paraná. O nosso samurai malan­dro não venceu, mas foi guerreiro e continuou a traba­lhar no livro até 1974, carregando os rascunhos e pági­nas soltas debaixo do braço para todo canto. 

 

1
Imagem: Acervo Biblioteca Pública | Edição: Cândido

 

Aos vinte e poucos, Paulo embarcou em sua própria viagem literária experimental, e em sentidos de ino­vação e linguagem, colocou o Catatau ao lado de o­bras como Finnegans Wake (1939), de James Joyce; Gran­de Sertão: Veredas (1956), de Guimarães Rosa; e Galá­xias (1984), de Haroldo de Campos, este escrito na mes­ma época, porém lançado posteriormente. Enquanto Cartesius contempla o desconhe­cido, Leminski guia o leitor através do universo de seu intelecto, utilizando seu conhecimento em Filosofia, His­tória, Ciência e Literatura. A obra até contém, de acordo com o próprio autor, "o primeiro personagem pura­mente semiótico da ficção brasileira", Occam, o mons­tro desorganizador de texto. 

Já foi discutido, criticado, venerado, incompreendido, reeditado e adaptado para o teatro e cinema. Recepção digna da obra-prima de Paulo Leminski, que a­cumulou os títulos de tradutor, biógrafo, judoca, publi­citário e músico. Apesar de ser seu primeiro romance, concluído antes de completar 30 anos de idade, no Catatau o escritor abre espaço para expressar um pouco de cada lado seu, emprestando ideias e formatos aqui e ali. O resultado? Um romance-ideia vanguardista, antropofágico, psicodélico, tropicalista, semiótico e caótico – só para começar. 

 

A viagem: primeiras impressões

 

2
Capa e contracapa da 1ª edição do Catatau, da editora Grafipar, por Miran e Paulo Leminski

 

A capa da primeira edição, com projeto gráfico de Miran – mantida na versão de 2010 pela editora Iluminuras, e que inspira o Cândido nº163 – representa o efeito do livro no leitor. São cenas de luta retiradas da necrópole de Beni Hasan, no Egito, que datam cerca de 2.000 a.C. Quem abre o livro entra em uma batalha consigo mesmo, no estilo missão kamiquase. Esqueça todas as convenções e se jogue de cabeça. Não há linha do tempo ou um sentido explícito. "Para um leitor comum, é um desafio muitas vezes insuperável. Ele começa a ler e desiste porque ele vai a­trás de compreensão, e não tem. O Catatau vai em um desencontro com toda uma tradição de leitura e isso é o extraordinário do livro", explica Marta Morais da Costa, professora de literatura que já atuou na Universidade Federal do Paraná (UFPR) e na Pontifícia Universida­de Católica do Paraná (PUCPR). 

Entre os apreciadores da obra, é comum encontrar aqueles que não conseguiram encarar o desafio de pri­meira. Pedro , um caro leitor, conta que mesmo já sendo fã das poesias e ensaios do Leminski, foi preciso insistência para ler o Catatau: "Eu tentei ler algumas vezes mas não conseguia. No inverno de 2015, jus­tamente nos 40 anos do livro, vi a peça 'Catatau: A jus­ta Razão aqui delira' e me empenhei em ler. Eu comecei e fui trocando ideia com um amigo. Nós íamos lendo e debatendo, e realmente foi uma leitura difícil e demorada. Tem que ter uma enciclopédia, um dicionário, tem que buscar referências e traduzir os textos. É preciso ter paciência".

A linguagem é quem assusta logo de cara. Os "latinismos macarrônicos" abrem a narrativa, e logo na primeira página o leitor já se depara com recursos linguísticos que dificultam o estabelecimento de um ritmo de leitura – agora você é Descartes, pisando em ter­ritório desconhecido. "É um livro que exige muito do leitor. Temos a tendência de gostar de coisas mais simples e objetivas, e o texto do Catatau é justamente o oposto disso, ele é uma selva. O uso criativo da linguagem é muito bacana, mas pode tornar difícil a aproximação com o texto", conta Maurício Arruda Mendonça, poeta e dramaturgo, que adotou o romance-ideia como tema de sua dissertação de mestrado. 

"O propósito principal é o espanto. O Leminski pro­curou esse tipo de efeito", comenta Marta Morais. Diferente de Artyschewsky – o personagem responsável por encontrar Cartesius e lhe explicar o que está acontecendo, mas chega bêbado demais para conseguir aju­dar –, Marta realmente consegue oferecer uma luz ao leitor confuso. A professora foi responsável pela coordenação da edição crítica do livro, lançada em 2004 pe­la Travessa dos Editores. 

 

5
A edição crítica do Catatau (Travessa dos Editores, 2004) traz notas de rodapé, glossário, biografia atualizada, fortuna crítica e uma seleção de fotografias do autor

 

A falta de linearidade da narrativa e a suspensão da passagem do tempo dentro do livro também dificultam a desbravar essa floresta leminskiana. O texto é fragmentado – a segunda página não é consequência da primeira. Sem os tradicionais começo, meio e fim, a leitura se torna uma tarefa interminável, no estilo Sísifo empurrando a pedra montanha acima. Nesse caso, pensar como o filósofo francês Albert Camus ajuda: "É preciso imaginar Sísifo feliz". Marta explica: "O leitor pre­cisa entrar no livro sem preconceitos, sem parâmetros definidos e com a cabeça aberta. Aproveite, curta, sinta o Catatau como uma imensa novidade, é o único jeito". 

Os leitores atestam: o esforço vale a pena. É o caso do doutor em Estudos Literários pela UFPR, Ivan Jus­ten Santana, que também teve que insistir no livro pa­ra pegar gosto pela coisa. "Foi, como segue sendo, uma experiência muito variada. É uma experiência que com­bina satisfação de compreender algo, prazer puro pela beleza ou pelo estranhamento da linguagem, e também alguma frustração porque não é possível compreender tudo. Também me diverte muito ser possível abrir o livro em qualquer página e fruir a leitura de trechos, que sempre são provocativos", diz. 

Enfrentar a leitura é enfrentar a si mesmo, o que só é possível quando o leitor deixa a costumeira posição de passividade e assume um papel participativo. As necessidades do livro refletem a personalidade de seu autor: é preciso ser dedicado, insistente e com bom repertório, mas ao mesmo tempo, não se levar a sério demais. É abrir o livro e se deixar levar, como Leminski escreve: "considero o tempo e contemplo o astral, melhor deixar a constelação Descartes para um aquijaz mais oportuno". 

 

Perdido na selva  

 

6
Com cores pálidas e bichos-preguiça fora das árvores, Frans Post pinta a selva brasileira com estranheza em "Vista de Olinda" (1662)

 

Se fosse um bicho? Preguiça. Se fosse um filme? "Como era Gostoso Meu Francês" (dir. Nelson Pereira dos Santos, 1971). Se fosse um quadro? "Vista de Olinda" (Frans Post, 1662). Quem faz referência à famosa pintura do artista holandês é Pedro, formado em Gravura pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná: "Post veio com a expedição holandesa e fez essa pintura quan­­do estava de volta aos Países Baixos. Ele pinta as coisas que ele viu no Brasil, mas a estrutura do quadro não condiz com a paisagem do Nordeste. Ele colocou os animais ali de forma muito estranha, e os tons também. Não são as cores cálidas e vibrantes da natureza como nós conhecemos, parece mais próximo das paisagens frias europeias. O que se via aqui não cabia nas percepções de lá". 

Diante do choque entre realidades, resta a Cartesius desconstruir o pensamento racionalista, como quando pensa: "Duvido se existo, quem sou eu se este ta­manduá existe?". Já para Leminski, resta a antropofagia. No romance, o autor reúne todo o seu conhecimento adquirido – desde que entrou para o Mosteiro de São Bento, aos 12 anos –, e se entrega ao ato de deglutir: processar para devolver ao leitor em uma nova forma. "Do ponto de vista filosófico, é uma das mais perfeitas aplicações da antropofagia do Oswald de Andrade. No Manifesto Antropófago (1928), o Oswald vai pensar que assim como os europeus nos colonizaram, nós pegamos referenciais europeus e deglutimos para criar outra coisa", comenta Maurício, comparando a obra leminskiana com seus contemporâneos tropicalistas da música, Caetano Veloso e Tom Zé. 

"Isso chama a atenção porque o Catatau poderia ser considerado o primeiro romance decolonial. Ele desconstrói a filosofia europeia, que é a matriz do colonialismo, e a discute sob uma perspectiva filosófica. A grande piada é inviabilizar as construções óbvias que formam o entendimento da realidade", complementa o dramaturgo. Para alcançar esse efeito, o caminho escolhido por Leminski é o questionamento do "ser" e do "eu", inclusive, de si mesmo. 

Rompendo o véu que esconde as justificativas filosóficas da colonização, o autor expõe a própria formação do seu pensamento, utilizando Cartesius, por vezes, como uma representação de si. É o que defende Ivan, citando partes do livro: "Tem também o trecho que começa com a frase 'Cultivei meu ser, fiz-me pouco a pouco: constituí-me'. Sei que eu e vários amigos meus gos­­tamos especialmente dessa passagem, que é muito bo­nita, na qual Descartes descreve sua formação educa­cional e cultural. É como o próprio Leminski descreven­do isso, porque o personagem funciona como um al­ter-ego". 

 

10
Imagem: Como era gostoso meu Francês (dir.: Nelson Pereira dos Santos, 1971)

 

Esse processo de formação mental do protagonista foi um dos aspectos que atraíram o cineasta Cao Gui­marães ao Catatau. O diretor produziu o filme "Ex-isto" (2010), inspirado no romance de Leminski. O longa segue a lógica libertária do livro – muita ideia e pou­co roteiro. Para isto, convidou o ator João Miguel (que pro­tagonizou o longa curitibano "Estômago", de 2007) pa­ra interpretar Descartes, e iniciou as gravações no esti­lo on the road, viajando pelo país e selecionando as par­tes do livro que pareciam combinar com as paisagens.  "O Leminski falava muito da 'pororoca': essa questão do lugar dele ser entre o mundo erudito e o popular. Eu gostei muito dessa palavra e fui filmar a 'po­roroca' no Amapá, com o João Miguel vestido de René Descartes", lembra Cao. 

Por se tratar, de acordo com o diretor, de um livro muito "mental", com pouca ação cinematográfica, o cli­­ma se criava em cena a partir dos cenários. O contraste entre a racionalidade e a força da natureza é repre­sentado nas cenas gravadas na Amazônia e em Bra­sília. "É um filme muito intuitivo. É quase impossível fa­zer uma adaptação cinematográfica do Catatau, a não ser que seja, como dizem os concretos, uma 'transcriação'. É como eu acho que o Leminski gostaria de ter o seu livro passado para o cinema: de uma forma livre", conta o diretor.

Lançado pelo Itaú Cultural, "Ex-isto" enfrentou diferentes reações dos espectadores. Cao conta que no Brasil, apesar da complexidade temática afastar um pouco os desavisados, a recepção foi calorosa. Mas como já se poderia esperar, a "pororoca" foi difícil de engolir em terras estrangeiras. Além da dificuldade de tra­duzir a obra criada em uma linguagem essencialmente brasileira, outra barreira surgiu quando o filme foi exibido na Europa. O cineasta recorda: "Não tinha essa compreensão exata. Por se tratar de René Descartes, os europeus ficaram meio com o pé atrás, por que­rer mexer com os ícones deles, e não entenderam di­reito". Assim como Leminski poderia imaginar. 

 

Enfim, a iluminação 

 

8
"Ex-Isto" (2010) é parte do projeto Iconoclássicos, do Itaú Cultural, e traduz o romance-ideia de Leminski para a linguagem cinematográfica

 

50 anos após seu lançamento, Catatau segue fisgando leitores aqui e ali – sejam estudiosos interessados nas discussões e recursos que o livro tem a ofere­cer, ou fãs da literatura Leminski que desejam dar um passo além. A obra oferece possibilidades de leitura e interpretação quase inesgotáveis, depois de aberto, é difícil fechar. "Acho que estamos na primeira fase de compreensão do Catatau", opina Maurício. O dramaturgo acredita que essa complexidade fazia parte da intenção do autor ao conceber o livro: "O 'romance-ideia' é um conceito próprio do Leminski para chamar seu romance filosófico. É um romance que parte de uma ideia platônica da imagem de um livro possível, uma hipótese. Eu atribuo isso a uma ousadia filosófica dele".

Marta também sente que, mesmo em meio século, o mundo ainda não absorveu o Catatau por completo: "Talvez ele venha a ser deglutido daqui há muitos anos". Por vezes abandonado nas prateleiras após uma experiência frustrante ou a última escolha de leitura entre os apreciadores do autor, "O Catatau tem muito mais achados do que toda a poesia do Leminski, em termos de trabalho linguístico", complementa a professora. Esse trabalho, apelidado por Ivan Justen Santana de "linguagem onívora", é o que a edição crítica organizada por Marta Morais tenta decifrar, e entregar ao leitor de forma mais palatável. Proposta pelo poeta e amigo de Leminski, Décio Pignatari (1927-2012), a publicação reúne o texto original, prefácio, notas de rodapé, fortuna crítica e biografia atualizada. 

Para vencer o enigma, foram necessárias, além de Marta, três alunas de graduação e pós-graduação. Claudia Maria Millek, Márcia Letícia Deá e Tainá Cristina Peres toparam o desafio antes mesmo de ler o livro – ou qualquer outra obra do autor. O grupo de pesquisa se reuniu durante dois anos para estudar as três versões do texto, incluindo a sua primeira versão dátilo-escrita, fornecida pela família Leminski. A partir daí, foi feita uma leitura simultânea e coletiva, em voz alta, para esmiuçar cada detalhe, buscar sentidos e elaborar um glossário. A edição da Travessa dos Editores foi a escolhida por Pedro, que se divertiu com a possibilidade de explorar as referências deixadas pelo autor e explicadas pelos editores: "Tem muita informa­ção, mas não é de graça. Tudo que está ali funciona como um ponto de partida para você buscar mais".

Marta conta que, 21 anos após a conclusão do trabalho, que resultou em mais de 100 páginas de conteúdo complementar, ainda resta a dúvida: "Não sei se o Leminski teria gostado, mas espero que sim. Não sei se ele via com bons olhos isso de fazer uma edição com­parativa. Porque é preciso ser um pouco conservador no caso de uma edição crítica, no sentido de respeitar o texto, a pontuação, a grafia das palavras, a ordem das páginas. E como ele era uma pessoa de se desafiar, contradizer, como o personagem faz, de 'desracionalizar' a realidade, não sei. Quando eu chegar no céu, se eu chegar, e se ele estiver lá, eu pergunto".

 

9
Marta Morais da Costa | Imagem: Isa Honório

 

Mas mesmo o autor não é o senhor absoluto do texto – ele é tanto do leitor quanto de si mesmo. O texto, como supõe Marta, dispõe de certa independência do escritor, dominando o fluxo de consciência durante a escrita e influenciando o resultado final. Ela explica: "Por mais que o escritor tenha uma intenção, tem horas que a escrita o domina. Intencionalidade na literatura é uma palavra que tem limites. Por mais que o Leminski quisesse criar esse mundo anti-razão, pode ter momentos em que ele escolhe as palavras pela visualidade, escolhe as que começam com a mesma sílaba, consoante ou vogal. E daí nesse momento a intenção fica em segundo plano, o que vale é o imaginário poético do escritor". 

Entendida essa "dialética de três pontas", entre autor, leitor e texto, e se livrando da expectativa por uma intenção fechada, o aproveitamento da leitura do Catatau fica um pouco mais fácil. Foi a partir destes princípios que Cao Guimarães escolheu fazer "Ex-Isto": "Eu fiz um filme através e a partir do Catatau, mas não com pretensões de compreender a sua universalidade e toda a sua potência. É a minha visão sobre essa obra maravilhosa. O que eu pude demonstrar no filme é como ele me afetou". O mesmo vale para o final do livro – aberto, é mais um convite do que uma resposta; mais um "até logo" do que uma despedida. 

"Em um país onde ainda não se sabe qual é, efetivamente, a norma culta, em um país de tantos falares, a palavra escrita na literatura parece não acompanhar essa inquietude. Aí vem à memória Galáxias, de Haroldo de Campos; e Catatau, de Paulo Leminski", escreveu Décio Pignatari em um depoimento sobre o livro. Cin­quen­ta anos após seu lançamento, o Catatau segue em seu lento processo de deglutir e ser deglutido. Apetitoso, mas difícil de engolir, talvez em mais 50 anos a profecia de Oswald de Andrade se torne realidade: "Um dia a massa ainda comerá o biscoito fino que eu fabrico". 

 

Dicas para o leitor de primeira viagem

 

7
A antropofagia, nos moldes modernistas de Oswald de Andrade, é um dos elementos mais presentes no Catatau

 

Para quem deseja desbravar a selva do Catatau, se preparar não faz mal. Assim como os bichos e plantas que fascinam Cartesius, a língua e a estrutura tomam conta da paisagem durante a leitura, distraindo o leitor e o deixando cair na maior emboscada: não conseguir aproveitar a experiência e abandonar a expedição. Para ajudar o leitor de primeira viagem a mergulhar de cabeça nas maravilhas do "Novo Mundo de Leminski", veja algumas dicas para ler o Catatau:

 

Maurício Arruda Mendonça – O Catatau exige uma leitura diferente, que é a leitura do instante. Porque você não vai, ao longo das páginas, chegar em uma conclusão óbvia sobre algo. Você tem que ler calmamente, pegar um trocadilho ou alguma outra coisa. Isso para que você tenha uma fruição, se é que há fruição, porque esse processo é meio torturante. Você também pode ser meio descomprometido com ele. Vai lá, toma uma cerveja, abre o livro, lê umas páginas e se diverte. O Catatau é um livro meio oráculo. Você pode abrir em qualquer parte e pegar algo que serve para o seu dia a dia.

 

Ivan Justen Santana – Leia os livros Metaformose e Vida, do Leminski, integralmente, antes de se decidir a enfrentar uma leitura do Catatau de cabo a rabo. Tam­bém procure e leia o livro Nº 2 da Série Paranaenses, da editora da UFPR. Leia o livro Descartes com lentes, que é o conto-embrião que gerou o Catatau. Para­le­­lamente, use o Catatau para fazer bibliomancia, sem qualquer compromisso a não ser a pura diversão com o que o livro tem de surpreendente.

 

Pedro  – Como o próprio Leminski sugere no Repugnatio benevolentiae, "virem-se", pois, se parece difícil, primeiro paciência, e dicionários, não é por que nunca vista que a palavra não existe; enciclopédias, pelas incontáveis referências; e dicionários/tradutores, pelos estrangeirismos; ou, hoje em dia, o "gúgou", que sugere respostas para quase tudo. Isso considerando que o conteúdo do Catatau vai muito além do que contêm, à primeira vista, suas páginas.

 

Marta Morais da Costa – Primeiro, leia a edição crítica [risos]. Acho que um leitor que está mais acostumado com narrativas lineares e temáticas, precisa de uma ajuda – um mediador que explique para ele como esse texto funciona. Neste aspecto, a fortuna crítica ajuda muito a entender. Entrar sozinho e desavisado é quase como cair em uma cratera de um vulcão. Você tem que ter o conhecimento do terreno, uma bússola. E isso você consegue com as pessoas que já leram e escreveram sobre. Depende muito do leitor. Se for um leitor que não está acostumado com literatura de vanguarda é interessante que ele leia esses textos sobre o Catatau para ter algumas iluminações, para poder caminhar sem nenhum problema (apesar de sempre ter algum problema). 

 

Cao Guimarães – Quando cansava de ler o Catatau, eu ficava em pé e lia em voz alta andando em uma varanda pra lá e pra cá. A força melopeica do Catatau é fascinante, é quase música, e às vezes o sentido passa a ser secundário.

 

 

Isa Honório (São José dos Campos/SP, 2002) é formada em Jorna­lismo pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Repórter do jornal Cândido, também é escritora e compositora. Na literatura, curte dos beatniks ao jornalismo gonzo. Na música, rock' n' roll à cumbia.

GALERIA DE IMAGENS