Capa | Medo e Delírio em Las Vegas 28/04/2021 - 14:08
Viagem sem volta
Lançado há 50 anos, Medo e Delírio em Las Vegas, de Hunter Thompson, embaralhou os limites entre jornalismo e literatura
Eduardo Ritter
Março de 1971. Dois malucos partem em um carro lotado de drogas de Los Angeles rumo a Las Vegas. No porta-malas: dois sacos de maconha, 75 bolinhas de mescalina, cinco folhas de ácido de alta concentração, um saleiro com cocaína além de pílulas multicoloridas, estimulantes, tranquilizantes, berrantes e gargalhantes, mais tequila, rum, cerveja, meio litro de éter puro e duas dúzias de amilas. No volante: um jornalista bêbado e alucinado. No banco do carona: um advogado mexicano com mais de 120 quilos e cabelos ao vento de um conversível vermelho rodando a 140 por hora nas estradas com retas infinitas do deserto americano. O resultado disso tudo: quartos de hotéis e carros alugados destruídos, polícia, perseguição, sequestro, monstros imaginários, expulsões de cassinos, armas, paranoia, loucura, medo, delírio e uma reportagem que mudaria a história do jornalismo e da literatura.
Nas páginas de Medo e Delírio em Las Vegas, Hunter Thompson deu um chute na linha imaginária que separa jornalismo e literatura. Ele simplesmente rasgou, jogou fora, mandou para a puta que pariu os manuais de jornalismo, as leis americanas, os bons costumes e toda a hipocrisia que vem embutida nesse pacote há séculos. É como se Thompson, ou Raoul Duke, pseudônimo do autor no texto, fizesse canudos para cheirar cocaína com o manual do bom jornalismo da Time, enrolasse seu baseado com a constituição americana ou limpasse o seu sagrado rabo com as páginas da Bíblia. Muito mais do que isso, Hunter Thompson criou há cinco décadas um estilo de jornalismo que ficaria imortalizado como jornalismo gonzo, com um tipo de texto que até hoje atrai milhões de fãs e admiradores ao redor do globo.
É impossível tentar entender o que é jornalismo gonzo sem ler Medo e Delírio em Las Vegas. Para tanto, é preciso estar com Raoul Duke no momento em que toca o telefone no bar do hotel em Beverly Hills, em Los Angeles, e enquanto ele conversa com seu amigo e advogado mexicano Oscar Acosta, que no livro parece como o samoano Dr. Gonzo. Você atende o telefone junto com ele e embarca em uma sucessão de acontecimentos improváveis e inimagináveis, até mesmo para a Las Vegas do início dos anos 1970: vai até um escritório onde recebe antecipados US$ 300 para cobrir o Mint 400, um rally no meio do deserto de Nevada. Gasta tudo comprando drogas e bebidas nas quebradas de Los Angeles. Viaja alto pelo álcool e pelos alucinógenos. Enxerga morcegos mutantes. Provoca seu advogado que, com ácido na cabeça, puxa uma arma. Xinga ele de charlatão e putinha. Dá carona para um jovem com estilo hippie e assusta o sujeito até que ele resolve abandonar o carro, desesperado. Vai para o hotel do evento sem conseguir formular palavras simples para a recepcionista e começa a enxergar répteis gigantes que comem pessoas em um chão banhado de sangue. Surta com seu advogado que, chapado, pede para que você coloque o rádio ligado na tomada na banheira — e você joga uma bateria gigante apenas para assustá-lo. Cobre a corrida para a principal revista esportiva do país, sem ter ideia do resultado. Foge do hotel sem pagar a conta, é perseguido pela polícia na estrada de volta para Los Angeles, mas recebe uma proposta de retornar para Vegas para cobrir uma conferência de profissionais da segurança para combater a cultura das drogas nos Estados Unidos. Chega ao quarto do hotel Flamingo e descobre que seu advogado deu drogas e sequestrou uma jovem com possíveis problemas mentais de uma família religiosa e conservadora do interior americano. Vai cobrir a conferência chapado e, por fim, destrói o quarto de hotel e devolve o Cadillac, segundo carro alugado desde o início da jornada, totalmente demolido. Tudo isso com uma linguagem completamente agressiva e sincera, tão frenética quanto a sucessão de acontecimentos. Eis um breve mostruário do que é o texto e a saga de Thompson e Acosta em Las Vagas.
No entanto, a essa altura, tendo lido ou não a obra, você deve estar se perguntando: como esses dois malucos foram parar em Las Vegas? E ainda: todas essas aventuras absurdas realmente aconteceram ou foi puramente criação literária e ficcional? A partir dessas duas perguntas, nas próximas linhas, tento contar um pouco mais dessa história que foi registrada há exatamente 50 anos.
Viajando no tempo: o nascimento do Gonzo
Antes de chegarmos a Las Vegas com Thompson e Acosta, ou Raoul Duke e Dr. Gonzo, vamos fazer uma breve viagem no tempo. Louisville, Kentucky, 1937. Esse foi o local e ano em que nasceu Hunter Thompson. Ao longo de 67 anos de vida (Thompson cometeu suicídio em 2005), o jornalista e escritor publicou 11 livros e centenas de reportagens e textos em jornais e revistas. Em praticamente todos, Thompson levou a sua formação e biografia para as narrativas. E como sua personalidade foi formada? Conforme diversas biografias escritas sobre o escritor, como Outlaw Journalist, de William McKeen, Thompson teve uma infância e adolescência turbulentas, sendo que para muitos a literatura e o jornalismo fizeram com que ele não se tornasse apenas mais um pequeno delinquente que futuramente acabaria cumprindo pena nos presídios federais americanos. No entanto, a sua inconformidade com regras e leis não era gratuita: ao longo dos anos ele desenvolveu a consciência de que a sociedade e o sistema eram injustos, especialmente para os mais fracos.
Um fato marcante nesses primeiros anos de vida foi quando ele e um grupo de amigos foram presos dias antes da formatura da escola por roubarem cigarros de outros jovens. Enquanto seus amigos foram liberados por serem filhos de pessoas importantes da sociedade, como políticos e advogados, Thompson perdeu a solenidade de colação. Foi o único que passou alguns dias detido pelo crime cometido. Isso o fez perceber que a mesma lei tem pesos diferentes para as pessoas. No julgamento, o juiz apresentou duas alternativas: ou seguiria preso, cumprindo pena, ou teria que ingressar nas Forças Armadas. Assim, Hunter Thompson entrou para o serviço militar americano. Primeiro, ele foi para a Força Aérea no estado de Illinois. Depois, foi transferido para a Flórida, onde passou a estudar literatura na Florida State University ao mesmo tempo em que iniciou a sua trajetória como repórter esportivo trabalhando para o jornal das Forças Armadas. Nesse jornal, ele começou a apresentar o seu caráter rebelde e irreverente. Como, por exemplo, quando escreve o seguinte trecho na sua última contribuição antes de deixar o exército: “Em um ato iconoclasta aparentemente incontrolável, Thompson recebeu alta hoje depois de apresentar uma das carreiras mais agitadas e incomuns da história recente da Força Aérea”.
Após passar por outros veículos de comunicação, que incluem uma temporada de mais de um ano como correspondente internacional do Wall Street Journal na América Latina (com passagem pelo Brasil) e outra temporada em Porto Rico, de onde surgiria a inspiração para a produção de seu único romance ficcional (publicado no Brasil como Rum: Diário de Um Jornalista Bêbado), Thompson passa a viver de trabalho freelancer, enquanto já está casado com a primeira esposa, Sandy Thompson, e tem o seu único filho: Juan Thompson.
Mesmo com mulher e filho, Thompson embarca para San Francisco em 1965, onde tem a oportunidade de colocar em prática a ideia para o seu primeiro grande sucesso: Hell’s Angeles. Durante um ano, o jornalista se integra à gangue de motociclistas mais famosa e temida dos Estados Unidos da época e dessa experiência publica um livro-reportagem, com características ainda próximas da grande reportagem tradicional: imersão nos acontecimentos, narração em primeira pessoa, descrição, entrevistas e análises críticas-sociológicas. Apesar dessa narrativa estar classificada no que chamo de fase “pré-gonzo”, ele já fazia parte da pauta a ser investigada, que nesse caso incluiu duas surras aplicadas ao jornalista pelos motoqueiros.
O estilo gonzo, no entanto, nasce um pouco antes da produção e publicação de Medo e Delírio em Las Vegas. Em 1970 a revista Scalan’s Monthly contrata Thompson para escrever uma reportagem sobre a maior corrida de turfe dos Estados Unidos, o Kentucky Derby, que até hoje acontece anualmente em Louisville, cidade natal do escritor. Para fazer a cobertura, a revista prefere substituir a figura do fotógrafo por um ilustrador, e assim surge a dupla Hunter Thompson e Ralph Steadman, que seguiria até o fim da vida do jornalista. O britânico Steadman nunca tinha usado drogas até então, e nesse primeiro encontro Thompson já lhe apresenta a mescalina. Ao final do evento, Thompson escreve um texto completamente informal narrando as aventuras da dupla pelo Kentucky Derby e sequer cita quem foi o vencedor da corrida. Ao invés de passar ao leitor informações sobre o evento, Thompson apresenta um texto caricatural do público e deles mesmos, como é possível observar no trecho a seguir: “A essa altura Ralph não conseguia nem pedir café. Ficava pedindo mais água. ‘Das coisas que eles têm, é a única adequada para consumo humano’, explicou. [...] Suas mãos tremiam tanto que ele tinha dificuldade para segurar o papel, e minha visão estava tão desfocada que eu mal enxergava o que ele tinha desenhado. ‘Merda’, praguejei. ‘Nós dois parecemos bem piores do que qualquer coisa que você desenhou aqui’”.
O texto sobre o Kentucky Derby marcaria uma das principais características do jornalismo gonzo: a narrativa em que o jornalista não foca na pauta, mas sim em como ele está tentando cobrir a pauta. O que no caso de Hunter Thompson inclui o uso de drogas, bebida, palavrões e outros impropérios. E por que “gonzo”? Resumidamente, “Gonzo” era uma música instrumental do pianista James Booker. Segundo o amigo de Thompson e repórter do Boston Globe, Bill Cardoso, em certa ocasião Hunter apresentou essa música em uma fita cassete e repetiu tantas vezes a mesma faixa que Cardoso passou a lhe chamar de Gonzo. Assim, quando a matéria foi publicada pela Sacalan’s Montly, Bil Cardoso escreveu em sua crítica que aquela era uma reportagem Gonzo. Nascia, assim, o jornalismo gonzo.
Após a publicação da reportagem “O Kentucky Derby é Decadente e Depravado”, porém, Thompson voltou para o jornalismo mais tradicional. Quando surge o telefonema da revista Sports lllustrated com a proposta para a cobertura do Mint 400 em Las Vegas, Thompson estava trabalhando em uma reportagem investigativa sobre o assassinato do jornalista Ruben Salazar pela polícia de Los Angeles. Acosta, advogado e amigo do jornalista que lhe auxiliou quando ele concorreu ao cargo de xerife de Aspen, no Colorado, anos antes, estava atuando nesse caso e é por isso que os dois estavam juntos no Polo Longe, hotel em Beverly Hills. Na ocasião, a revista queria apenas um texto de 250 palavras sobre o tradicional rally. Assim, Thompson julgou que essa seria uma boa oportunidade para descansar da reportagem investigativa, viajando para Las Vegas com tudo pago pela revista. “Parecia uma boa desculpa para sair de Los Angeles por alguns dias. Se eu levasse o Oscar comigo, isso também nos daria tempo para conversar e entender melhor a realidade cruel da matéria do assassinato de Salazar”, escreveu Thompson mais tarde.
Eis, então, como se deu a ordem dos acontecimentos. Hunter Thompson estava escrevendo uma reportagem séria sobre o assassinato de um jornalista pela polícia em que Oscar Acosta estava atuando como advogado. Os dois estão sentados no bar do hotel em Beverly Hills discutindo essa cobertura quando a revista Sports Illustrated telefonou para Thompson solicitando a cobertura do Mint 400, que aconteceria no sábado do dia 20 de março de 1971, em Las Vegas, com um texto de 250 palavras e com tudo pago. Thompson conclui que um final de semana em Vegas com o advogado era uma boa pedida para dar um tempo na reportagem investigativa e repor as energias. Assim, ambos partem de Los Angeles para Las Vegas. Entretanto, o texto ficaria meses parado. Primeiro ele foi rejeitado pela Sports Illustrated e só mais tarde foi publicado em duas edições da revista Rolling Stone: a primeira no dia 11 e a segunda no dia 23 de novembro daquele ano de 1971. Um ano depois, a reportagem que se tornou símbolo do jornalismo gonzo seria publicada pela primeira vez no formato de livro, pela Random House.
Jornalismo de ficção na Rolling Stone
Medo e Delírio em Las Vegas é uma obra de ficção ou uma reportagem sobre a realidade? Já ouvi todos os tipos de argumentos sobre defensores de uma ou outra alternativa (a grande maioria apostando todas as suas fichas na ficção). No entanto, considero essa uma narrativa híbrida, muito mais associada à coluna da realidade do que da ficção. Tenho um argumento que nos remete à produção jornalística para justificar a minha resposta. Primeiro, o texto nasce a partir da encomenda de uma pauta por parte de uma revista de esportes e, depois, de uma revista focada em cultura e entretenimento. Segundo, nas correspondências de Thompson publicadas em livros como Fear and Loathing in America há registros suficientes para comprovar isso, bem como há os áudios gravados durante a viagem que aparecem no documentário Fear and Loathing on the Road to Hollywood, de Nigel Finch, de 1978. Por fim, a primeira publicação do material foi na Revista Rolling Stone, não sendo apresentada aos leitores como um texto ficcional. Obviamente que há os exageros, hipérboles e as falsas lembranças de uma mente comprometida pelo álcool e pelas drogas, mas o texto em si foi escrito como uma reportagem gonzo, e não como um romance ficcional. Já a mudança dos nomes de Hunter Thompson para Raoul Duke e de Oscar Acosta para Dr. Gonzo foi justificada pelo autor como uma forma de não prejudicar Acosta nos trabalhos dele como advogado — o que foi inútil, devido ao sucesso da obra.
Em outro texto escrito por Thompson, publicado mais tarde em A Grande Caçada aos Tubarões, o autor explica que a ideia principal do jornalismo gonzo é escrever o texto enquanto a pauta está se desenrolando. No entanto, após a recusa da Sports Illustrated, Thompson ficou meses trabalhando no texto até a versão final ser publicada pela Rolling Stone. Em correspondência, ele admite ter reescrito quatro vezes a reportagem completa. Em outra carta, o autor comenta que não foi o precursor desse tipo de texto autobiográfico que mescla realidade e ficção, citando o clássico beat On the Road, de Jack Kerouac. Na mesma carta, Hunter classifica o texto de Kerouac como uma peça de jornalismo pessoal, que “foi chamada de ‘ficção’ porque se eles chamassem de ‘jornalismo’ nenhum crítico literário pegaria o livro nas mãos”.
Esse estilo pessoal aparece desde o primeiro parágrafo, quando Thompson descreve a viagem que depois seria adaptada para as telas de cinema no filme que teve o seu amigo Johnny Depp interpretando o personagem principal: “Estávamos em algum lugar perto de Barstow, à beira do deserto, quando as drogas começaram a fazer efeito. Lembro que falei algo como ‘estou meio tonto; acho melhor você dirigir...’ E de repente fomos cercados por um rugido terrível, e o céu se encheu de algo que pareciam morcegos imensos, descendo, guinchando e mergulhando ao redor do carro, que avançava até Las Vegas a uns 160 por hora, com a capota abaixada. E uma voz gritava: Jesus Santíssimo! Que diabos são esses bichos?”.
Obviamente que não havia morcegos gigantes atacando o carro, mas isso não quer dizer que, sob o efeito das drogas, Thompson não tenha tido tais alucinações que foram transcritas no texto da reportagem. É a ficção da mente indo diretamente para as páginas jornalísticas de uma revista de circulação internacional. Além disso, o texto de Thompson também foi, possivelmente, a maior reportagem já escrita sobre a cultura das drogas dos anos 1960/70, pois ele é um usuário de longa data, com experiência e um poder de descrição incrível, como no seguinte trecho: “Só o éter me preocupava de verdade. Nada neste mundo é mais inútil, irresponsável e depravado que um homem completamente chapado de éter”.
E onde ficaram as pautas principais nessa história toda? Ora, ficaram em segundo, terceiro, quarto ou até mesmo em último plano. A pauta do rally ocupa apenas o capítulo 5 da versão publicada em livro, com o título: “Cobrindo a Matéria... Um Gostinho da Imprensa em Ação... Horror & Fracasso”, com um texto de apenas seis páginas. Mesmo quando está tentando cobrir a pauta, o jornalista é o personagem principal da narrativa. Assim como na matéria do Kentucky Derby, no rally de Las Vegas o jornalista não transmite nenhuma informação sobre a corrida no deserto, mas sim, narra como ele está tentando acompanhar tudo: “Senti que havia chegado o momento de fazer uma Reavaliação Dolorosa de toda aquela situação. Sem dúvida a corrida estava acontecendo. Eu havia testemunhado a largada; disso tinha certeza. Mas e agora, o que eu podia fazer? Alugar um helicóptero? Entrar de novo naquela caminhonete? Zanzar pelo maldito deserto assistindo àqueles idiotas passando a mil pelos pontos de controle, um a cada treze minutos?”.
Após o termino da corrida, Thompson e Acosta vão para o quarto de hotel, onde ficam completamente alucinados usando drogas. De lá, eles partem para o cassino Circus Circus. Já na segunda parte do livro, o jornalista vai para o hotel Flamingo e, após devolver o conversível vermelho, apelidado de Tubarão Vermelho, ele aluga um Cadillac branco. Ele e o advogado ficam para participar da Conferência dos Promotores Públicos, que discutiriam como resolver o problema das drogas nos Estados Unidos. Essa pauta havia sido encomendada pela revista Rolling Stone. Ao contrário da cobertura da Mint 400, em que estar bêbado e drogado não era nada estranho em meio aos demais participantes, dessa vez a simples presença de Hunter e Acosta já era algo incomum. “Éramos a ameaça — usuários descarados de drogas, sem disfarce, com intenções nítidas de ir até o fim em seu plano de armar algo muito demente”. Ao longo das páginas seguintes, novamente são relatadas diversas cenas e situações cômicas, além da constatação de que a grande parte dos agentes de segurança não tinha nenhuma ideia do que estavam falando. “Foi muito fácil ficar ali sentado com a cabeça cheia de mescalina, ouvindo horas e horas de bobagens irrelevantes [...]. Aqueles pobres coitados não sabiam a diferença entre mescalina e macarrão”. O cinismo e a ironia se misturam às narrativas alucinadas que envolvem a dupla Duke & Dr. Gonzo. Ao final, muitas histórias para contar vividas em poucos dias na cidade mais badalada dos Estados Unidos.
Por fim, como foi escrita a obra? Antes mesmo de sair de Las Vegas, Hunter Thompson escreve o rascunho da primeira parte do que viria a se tornar o livro. Porém, esse material estava sendo escrito como uma reportagem para a Sports Illustrated e, para concluir, ele viaja para São Francisco, onde termina o texto na casa do seu amigo e proprietário da Rolling Stone, Jann Wenner, que declarou em entrevista como se sentiu ao ler as primeiras páginas: “Eu me lembro dele me mostrando as primeiras dez páginas, me perguntando se valia a pena continuar. Aquilo era uma coisa brilhante, saindo pela tangente — apenas uma lista surpreendente do que estava no porta-malas do Cadilac”. Essa proximidade do autor com o proprietário da revista foi, possivelmente, um elemento facilitador para que o texto, após ser rejeitado pela Sports, fosse publicado, mais tarde, pela Rolling Stone.
Já enquanto a história toda acontecia em Las Vegas, Wenner tentou persuadir Thompson a desistir de alugar um Cadillac para a cobertura da convenção sobre narcóticos. A cena é descrita pelo próprio proprietário da Rolling Stone: “Então estávamos discutindo sobre despesas. A revista estava em um momento de aperto, e eu tinha que dizer ‘Não, você não pode alugar um Cadillac’. A Rolling Stone era menor do que é hoje; nós estávamos ainda em nosso terceiro ano. Se as pessoas estavam fazendo U$ 125 por semana, isso era muito. A ideia de que ele alugasse um Cadilac estava fora de questão. Foi então que surgiu sua famosa frase: ‘Você não pode cobrir o sonho americano em uma porra dum Volkswagen’”.
Apesar desses episódios, quando os editores da Rolling Stone tiveram acesso ao primeiro capítulo de Medo e Delírio em Las Vegas não tiveram dúvidas de publicá-lo, como conta Tim Ferris, que era chefe de gabinete da revista em Nova York. “Eu fui para o meu escritório para ler, e comecei a uivar quando os morcegos começaram a sair do céu, e quando terminei de ler, estava batendo na minha mesa e não conseguia parar de rir. Fui até o escritório de Grover, e ele estava debruçado sobre a mesa ofegante. Eu pensei, ‘merda, ele está tendo uma convulsão!’. Ele se virou e havia lágrimas em seus olhos de tanto rir”.
O que os editores da Rolling Stone sentiram ao ler o manuscrito é o que os leitores sentiram na época do lançamento da revista e, posteriormente, a sensação que pessoas do mundo inteiro têm ao pegar o texto em formato de livro, meio século depois. A sinceridade e a quebra de normas e regras por parte de Thompson, tão evidentes em Medo e Delírio em Las Vegas, seguiram acompanhando a trajetória de Thompson e seu jornalismo gonzo. Após a publicação do livro, o jornalista partiu para Washington, onde cobriu a eleição presidencial daquele ano. Dessa experiência, ele escreveu Fear and Loathing on the Campaign Trail’72" (Medo e Delírio na Campanha de 72), em que expõe, com o mesmo estilo gonzo, todo o ódio que sentia pelo que Richard Nixon (espécie de Donald Trump da época) representava. Até o final da sua vida, em 2005, Thompson se manteve ativo, ora produzindo reportagens, ora escrevendo colunas de opinião, especialmente sobre política e esportes. No entanto, o que ficou marcado na história do jornalismo e da literatura foi aquela viagem para Vegas, de poucos dias, 50 anos atrás. Uma viagem sem volta. Uma viagem eterna.
Eduardo Ritter é professor adjunto do Centro de Letras e Comunicação da Univesidade Federal de Pelotas. Graduado em Jornalismo, é doutor em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, com estágio doutoral na New York University. Publicou os livros Jornalismo Gonzo: Mentiras Sinceras e Outras Verdades (Insular, 2018) e A Tribo Jornalística de Erico Verissimo (Unijuí, 2016). Atuou em jornais, emissoras de rádio e assessorias de imprensa do Rio Grande do Sul e atualmente mantém uma do jornal Diário Popular (Pelotas).