CRÔNICA | Pedro Guerra 17/01/2025 - 11:16

A última obra

 

O funcionário olhou para o documento várias vezes. Era ele mesmo: o Jérson escrito com “j” não deixa dúvidas. O único Jérson com “j” – e acento agudo no “e”. Por fim, chegou o dia em que certamente o maior contista paranaense, provavelmente o maior contista brasileiro, possivelmente o maior contista do mundo havia feito a passagem. Jérson, com “j” mesmo.

Ele já havia antecipado esse momento, desde o dia em que foi aprovado no concurso público para a prefeitura, lotado na Secretaria de Meio Ambiente, mais precisamente no Serviço Funerário Municipal de Curitiba. Não o momento em que teria que cadastrar o número do FAF do seu pai ou o da sua querida mãezinha, os quais, aliás, vão muito bem. Ele anteviu primeiro, antes de tudo, o momento em que publicaria a nota de óbito dele, do autor de monumentais e, ironia das ironias, imorríveis clássicos da literatura na sua forma mais breve. Quantas páginas de sua obra havia lido com os olhos secos de alumbramento? Todas, indo e voltando. Uma vida devotada a admirar aquelas letras como se fossem filamentos de uma aurora boreal a costurar amores, manias, taras e perversões curitibanas no tecido da eternidade. E por antecipar há tempos esse momento, ele já havia se preparado para ele.

Nenhuma palavra haveria de ser oficializada nos registros da prefeitura. O destino do gênio, tão conhecido pela sua genialidade quanto pela sua aversão a holofotes e flashes, pela sua vida reclusa e misteriosa, deveria permanecer coberto pelo plúmbeo manto do silêncio. Como poderia ser diferente? E as gentes assomando à porta da sua casa? Ele morreu? Ele morreu? Oh, ele morreu! Ele morreu! Tragédia, tragédia! O gênio morreu! Seu nome frequentando as bocas de toda a cidade. As redes sociais em alvoroço! O prefeito, o governador, o presidente!

Os discursos, as homenagens. As colunas nos jornais se refestelando. Os repórteres tocando a campainha, as matérias na tevê. A sua vida mais uma vez violada, manchada pela lama que escorre das canetas! O funcionário nunca poderia deixar isso acontecer. E não deixarei, pode apostar, completou em voz alta. O gênio não precisa de homenagens. O gênio apenas oferece a sua obra, e em troca só exige paz. Uma troca, ou melhor, um presente mais do que justo para quem completaria um século de vida em poucos meses.

E então um clique aconteceu na cabeça do funcionário, como o exato momento em que a chave entra no buraco da fechadura e seus dentes se encaixam perfeitamente no mecanismo do tambor. Clique. Cem anos... É claro. Cem anos, meu Deus! Oh, que terríveis as celebrações! Que hediondas as comemorações! Ele está vivo? Ele está vivo? Sim, ele está vivo! Glória! Glória! O gênio está vivíssimo! Os pedidos de entrevistas, os documentários, as matérias cheias de anedotas e invencionices, sua vida – aí, sim – devassada, aviltada! As entediantes quermesses literárias e suas enfadonhas mesas sobre as malditas cem circunvoluções ao redor do Sol! O horror! O horror!

E então, após um instante, o funcionário sorriu.

E sorriu mais ainda.

E sorriu até gargalhar.

Como o funcionário poderia ser tão ingênuo? É claro: o gênio iria escrever pelas mãos do próprio funcionário a sua última obra, seu mais exato e perfeito conto, sua nota de óbito, sua irrevogável carta de alforria. Era isso! Sim! Só podia ser isso! E daquele ponto final em diante, só os seus livros importariam, apenas e tão somente suas obras. E ele finalmente viveria para sempre, como um bom vampiro, e, até que enfim, em paz.

 

 

Pedro Guerra nasceu em Fortaleza (CE). Formou-se em Jornalismo pela Universidade Federal do Ceará e estudou Propaganda na Escola Superior de Propaganda e Marketing, em São Paulo (SP). Em 2003 mudou-se definitivamente para São Paulo onde consolidou sua carreira de redator publicitário. Lançou o seu primeiro livro, Avenida Molotov (Quelônio, 2008), e depois O maior ser humano vivo (Record, 2024).