Um Escritor na Biblioteca | Lira Neto

Da redação

Dedicando-se a biografar assuntos e personalidades importantes da cultura brasileira desde o final dos anos 1990, o cearense Lira Neto fez uma síntese de sua trajetória como escritor na edição de setembro do projeto “Um Escritor na Biblioteca”. O bate-papo contou com a mediação do jornalista Ricardo Sabbag.

Nascido em Fortaleza (CE), em 1963, Lira Neto é formado em Letras e Filosofia, mas fez carreira no jornalismo, atuando como repórter, editor de cultura e chefe de redação na imprensa cearense. No começo dos anos 2000, largou o cotidiano das redações para se dedicar à escrita de biografias. A primeira que escreveu, O poder e a peste — A vida de Rodolfo Teófilo (1999), relata a trajetória de um sanitarista que viveu em Fortaleza na virada do século XIX e teve ótima aceitação. “Foi quando pedi demissão do jornal para escrever livros”, diz Lira.

A partir daí, o escritor deu início a uma sequência de livros que ganharam repercussão nacional, entre eles Padre Cícero — poder, fé e guerra no sertão (2009), Castello: a marcha para a ditadura (2004) e Maysa: só numa multidão de amores (2007). “Quando comecei a escrever o segundo livro, disse a mim mesmo que iria fazer uma grande reportagem, histórica, com rigor na apuração e no trato com as fontes. Não ia fazer literatura”, explica.

Lira também falou sobre o que, para ele, é essencial em uma boa biografia, como a escolha do personagem (“Tem que ter solavancos, altos e baixos”) e a pesquisa bibliográfica sobre o assunto (“Tem que dar conta de tudo que de relevante se escreveu sobre a figura escolhida”). “Monto esqueletos sempre que estou iniciando um trabalho, mas é claro que isso é flexível, vai se alterando de acordo com os rumos que a pesquisa manda”, completa.

Entre 2012 e 2014, o escritor publicou os três volumes que compõem a elogiada biografia de Getúlio Vargas. Projeto que lhe custou cinco anos de trabalho com dedicação exclusiva. O esforço valeu a pena: a trilogia virou best-seller e ganhou prêmios.

Acostumado a desafios, atualmente o escritor trabalha nos dois últimos volumes de uma série que conta o percurso do samba por meio das trajetórias de seus principais compositores e intérpretes. O primeiro tomo, Uma história do samba — as origens, foi lançado no primeiro semestre de 2017.

A seguir o biógrafo fala um pouco mais sobre os complexos personagens e temas que deram origem aos seus instigantes livros.

   Fotos: Higor Oratz
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Terror da criançada
Não tenho uma história muito bonitinha com biblioteca. A primeira que frequentei, da escola onde fiz o então primário, hoje ensino fundamental, numa pequena cidade do Ceará chamada Caucaia, era o lugar para onde se mandavam os alunos mal comportados. Quando o professor não estava conseguindo dominar a situação, dizia: “Vai para a biblioteca!”. Então a biblioteca era o terror da criançada.

Sarampo e Lobato
Quando eu tinha 8 ou 9 anos, peguei sarampo e fiquei de cama. Quer dizer, como bom cearense, eu não fiquei de cama, fiquei de rede. Minha irmã mais velha levou para mim um livro que pegou na biblioteca da escola, para que eu lesse nos dias em que eu estava deitado na rede sem poder fazer nada. E esse livro mudou completamente a minha percepção do mundo. Era uma obra do Monteiro Lobato chamada A chave do tamanho, que ele escreveu durante a Segunda Guerra Mundial. Aí fiquei bom do sarampo e, para espanto dos meus colegas de turma, nos recreios, em vez de jogar bola, eu ia para a biblioteca. E eles ficavam intrigados: “O que você fez para ir para a biblioteca?”. Eu dizia: “Não fiz nada. Lá tem um tesouro”. E que tesouro era esse? Era a obra infantil do Lobato. Depois fui ler Júlio Verne, Os três mosqueteiros, tudo logicamente em versões adaptadas para criança. Ali me descobri como leitor.

Influência
Minha mãe escrevia muito bem, era professora, depois passou a ser funcionária pública. Eu queria imitar o estilo de minha mãe. Meu grande sonho era escrever igual ela escrevia. De vez em quando eu pedia para ela escrever minhas redações do colégio — e ficavam fantásticas, sempre ganhava 10. Mas eu não tinha uma perspectiva, não sonhava que ia ser escritor nem jornalista.

Jornalismo
Até o jornalismo chegou em minha vida de forma tardia. Embora na minha juventude, no final dos anos 1970, começo dos anos 1980, eu tenha me arriscado a cometer alguns poemas, o que não é nenhum mérito, porque naquela época todo mundo era poeta marginal — na geração seguinte todo mundo era videomaker e hoje todo mundo é multimídia. Confesso que cometi uns poeminhas. Inclusive, um dia desses, um amigo de faculdade descobriu um desses livretos que eu publicava, xerocados, e me mandou uma ameaça, dizendo que se eu não o tratasse muito bem, ele divulgaria meus poemas de juventude. Fiquei muito tenso. Mas eu não sabia que ia ser jornalista. Para se ter uma ideia, no ensino médio eu me formei em topografia, sou topógrafo profissional.

Sem remorso
Sempre abandonei muitas coisas na minha vida. Quando as coisas não me satisfazem, eu abandono mesmo e não tenho pudor nem remorso. Abandonei duas faculdades, estou no meu terceiro casamento. Ou seja, para mim, se a coisa não está dando certo, parto para outra. E aí, nesse meio tempo, fui técnico de raio-X, fritei hambúrguer num trailer que montei com meu irmão — hoje em dia tá na moda, é food truck. Vendi artesanato em uma praça lá de Fortaleza, artesanato meio ripongo, bicho-grilo. Fiz um monte de coisa. Mas aí, a certa altura, surgiu uma vaga na revisão de um jornal em Fortaleza, o Diário do Nordeste. Fui e me submeti ao teste. Passei e foi lá, no setor de revisão, que descobri que ia ser jornalista. Mas, estando lá, percebi que não queria fazer revisão, mas sim trabalhar na redação.

Virando escritor
Passei 10 anos na redação, não mais no Diário, mas em um jornal concorrente, O Povo. E eu me lembro exatamente o dia em que pensei em escrever um livro. Foi quando senti que o jornalismo cotidiano não me satisfazia. Estava pensando em abandonar o jornalismo. Como eu disse: não tenho apego por essas coisas. Até o dia em que um colega de redação saiu para fazer uma matéria boba, sobre o saneamento básico da cidade. Naquele momento, Fortaleza estava passando por um processo de obras de saneamento, e esse repórter, que tinha saído para cobrir essa coisa absolutamente sem graça, chegou dizendo que tinha a matéria de capa do dia seguinte. Ao revelar as imagens que o fotógrafo tinha feito, todos ficaram perplexos: as fotos eram inacreditáveis, remetiam imediatamente às cenas dos campos de concentração nazista, das valas comuns em que os judeus eram enterrados. Cadáveres sobre cadáveres, pilhas de cadáveres, no caso já esqueletos. Milhares de esqueletos encontrados quando os operários da obra de saneamento escavaram o solo.

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Primeiro livro
O jornal passou três dias batendo cabeça para saber o que era aquilo. Até que o presidente do Instituto Histórico do Ceará ligou para nos dar uma sonora bronca. Ele explicou que aqueles esqueletos eram das vítimas de uma terrível epidemia de varíola, que matou um quinto da população de Fortaleza. Um episódio ocorrido há mais de 100 anos. Aquela história não saiu da minha cabeça. Aí pensei que o assunto poderia dar uma série de grandes reportagens. Foi quando resolvi pesquisar essa história e escrevi o meu primeiro trabalho de fôlego, que se chama O poder e a peste — A vida de Rodolfo Teófilo. Trata-se da biografia de um sanitarista que enfrentou essa varíola, essa epidemia sozinho, inclusive encontrando resistência governamental, que não queria que ele tomasse para si essa tarefa, porque, indiretamente, ele estava mostrando a incompetência do poder público para enfrentar o problema.

Boa repercussão
O livro foi publicado em Fortaleza, em 1998, e, para meu espanto, repercutiu além das fronteiras da cidade. A Folha de S.Paulo dedicou a capa da “Ilustrada” para a obra. Naquela época, o Jô Soares apresentava o “Jô Soares Onze e Meia” e me chamou para dar entrevista. O Jornal do Brasil deu uma bela matéria. Então, finalmente, havia achado uma coisa que me agradava. E me deu muito prazer fazer aquele livro. Foi quando pedi demissão do jornal para escrever livros.

Desafio da linguagem
É claro que o primeiro livro é cheio de imperfeições, de dificuldades naturais de um cara que está entendendo ainda como vai construir um método de trabalho. Era uma tentativa meio frustrada e meio vã de aproximar o texto jornalístico do texto literário, vamos dizer assim, na falta de outro termo. E eu fui depurando isso. Nos livros posteriores, já a partir do Castello — A marcha para a ditadura, eu me permito muito pouco, bem menos do que me permiti na estreia. No primeiro livro faço quase — vamos dizer, uma expressão que eu detesto, que causa urticária hoje — uma espécie de biografia romanceada. Em que me dei o direito de criar determinadas circunstâncias e determinados períodos, parágrafos, a partir da minha imaginação, nitidamente para suprir uma deficiência de apuração. O que eu não conseguia desvendar nos documentos, eu dizia: “Não, mas se não é assim, poderia ter sido”. E aí, logicamente, isso é péssimo jornalismo. Mas eu ainda o acho um livro bem escrito.

Castello Branco
Logo depois dessa primeira experiência, quando me comprometi a escrever o segundo livro, a história do Castello Branco, pensei comigo que precisava fazer jornalismo. Disse a mim mesmo que iria fazer uma grande reportagem, histórica, com rigor na apuração, com rigor no trato com as fontes. Não ia fazer literatura. O texto precisava ser límpido, muito bem escrito, com algo de estético, no sentido de burilar a palavra, mas jamais cair na tentação de fazer literatura. Fazer bom jornalismo, isso sim. Errei no primeiro livro, e foi bom que eu tenha errado, porque me vacinei nos livros seguintes. Aí meu compromisso foi cada vez maior com o rigor da informação, unindo a isso um texto absolutamente translúcido, que não deixe os andaimes evidentes para o leitor.

Boa biografia
A primeira coisa é escolher um bom personagem. O que é um bom personagem para um biógrafo? É alguém que tenha tido uma vida edificante? Não. Às vezes, muito pelo contrário. Um personagem que sempre deu certo na vida, que fez tudo certo, dará uma péssima biografia. O personagem tem que ter solavancos, altos e baixos. Para usar um clichê: sua vida tem que ser uma montanha-russa existencial. Esse é o primeiro passo.

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Pesquisa
Uma vez decidido quem é o personagem, a segunda coisa é tentar dar conta de tudo que de relevante se escreveu sobre a figura escolhida. No caso de Getúlio Vargas, no primeiro volume, por exemplo, quase 100 páginas são de referências às fontes: bibliográficas, arquivísticas e tudo mais. Então, nesse caso, era uma avalanche de coisas para serem lidas. Agora, nesse caso específico, o trabalho foi facilitado em muito por dois motivos: primeiro, porque boa parte do que se escreveu sobre Getúlio padecia do pecado original de dizer que ele era um santo, que nunca tinha cometido um deslize, e, por outro lado, livros que afirmavam que era exatamente o contrário, um ditador sanguinário, etc. Então, esses dois tipos de literatura se excluíam pelo sinal contrário. E eu não queria seguir nessa linha. Não queria fazer nem mais um libelo contra o Getúlio, nem mais uma hagiografia. Queria escrever um livro que mostrasse uma pessoa complexa nas suas contradições.

Vargas
Getúlio era um sujeito obsessivo: tudo que escrevia, podia ser um simples bilhete, arquivava. O arquivo do Getúlio, que está à disposição de qualquer pesquisador na Fundação Getúlio Vargas, lá no Rio de Janeiro, é assombroso. Então tive que dar conta desse material. Mas foi uma tarefa difícil e ao mesmo tempo saborosa. Porque esses documentos foram escritos no calor da hora, ou seja, era a história sendo contada no momento em que ela estava sendo produzida. E, no caso do Getúlio, eu tinha que dar conta também, além dos arquivos privados, dos arquivos públicos. Então, no caso de um presidente que passou 18 anos no poder, entre idas e vindas, pode-se imaginar o tamanho da maçaroca. Sem falar no material diplomático, por exemplo. A pesquisa para fazer os três livros do Getúlio se estendeu além do Brasil para outros países. Tive que contratar pesquisadores assistentes em Nova York, Washington, Londres, Berlim, Buenos Aires e Montevidéu.

O mais importante
Concordo com o professor Boris Fausto, historiador que assina a quarta capa do primeiro volume da biografia do Vargas, que diz: para bem e para o mal, Getúlio é o personagem mais importante da história do Brasil. Com todos os erros e acertos. Com todos os defeitos e vícios. E aí me deparei com um grande problema, né? Depois de Getúlio, eu iria biografar quem?

Samba
Na minha idiotice abissal, pensei que depois de ter biografado Getúlio, qualquer outro assunto era refresco. Terminei o terceiro volume do Getúlio exausto, física e mentalmente. Estava arrasado, aos frangalhos. Foram cinco anos e meio de trabalho em regime de dedicação exclusiva, começando a trabalhar às 8h e terminando por vezes às 22h. Todos os dias. Não foi fácil. Quando entreguei os originais do terceiro e último volume, o Luiz Schwarcz fez a pergunta que todo editor tem que fazer: qual é o próximo? Uma pergunta sádica, mas necessária. Aí eu disse a ele que estava muito cansado e queria me divertir um pouco, brincar, dançar, sambar. Aí o Luiz, com a sensibilidade que lhe é peculiar, disse: “Você quer sambar? Por que você não escreve uma história do samba?" E pela primeira vez um editor me pautou.

Tema leve
Eu jamais tinha imaginado escrever uma história do samba. No primeiro momento, achei legal, pois achava que seria um tema leve. Assinamos o contrato. Mas aí começo a pesquisar e me dar conta do monstro que tinha nas mãos. Percebo que não é uma história deliciosa, é uma história terrível. É uma história de injustiça, de preconceito, de racismo. Eu achando que ia falar do Noel Rosa perambulando pelos cabarés da Lapa, de Ismael Silva aprontando as dele... Mas não foi assim. E nesse primeiro volume, Uma história do samba: as origens, isso está muito claro. Inclusive, é bom a gente entender o título e o subtítulo do livro. Não é “a história do samba”, é “uma história do samba”, uma das possíveis histórias do samba. E não é “a origem”, são “as origens”, porque eu parto do pressuposto que não existe uma única origem, então não caio na bobagem de entrar naquela briga de bar, de boteco, e dizer que o samba nasceu na Bahia ou no Rio. Escolher se é do morro ou do asfalto. Dizer que “Pelo telefone” é ou não o primeiro samba. Gente, parem com isso! Não tem centenário de samba coisa nenhuma. Não tem cem anos de samba. Nenhum gênero musical tem certidão de nascimento. O samba é amálgama. O samba é mescla. O samba é a rítmica, a pulsação da rítmica africana em diálogo com o sistema tonal europeu, com o fandango, com a habanera, com a polca, com os ritmos ameríndios. O samba é tudo isso junto. Isso não tira protagonismo de ninguém, ao contrário do que muita gente insinuou.

Maysa
No caso da Maysa, tive acesso aos diários dela. Assim como Getúlio, Maysa anotava coisas sobre a própria vida. Ela começou a fazer isso a partir dos 15 anos de idade — a última anotação foi feita um mês antes da morte da cantora. Então é a história da Maysa contada pela própria Maysa, com todos os filtros que você tem que ter com relação a isso, porque descobri que, em várias oportunidades, ela mentia para os próprios diários. Inventava histórias. Ela dizia: no dia tal, estive aqui. Eu ia conferir e ela estava em outro lugar fazendo um show. Maysa viveu como alvo constante de uma nascente imprensa de escândalo, e ela se retroalimentava disso, usava essa imprensa a seu favor e sofria com isso. Fiz cerca de 200 entrevistas com pessoas que conviveram com Maysa: professores da escola, ex-maridos, produtores, músicos, compositores. Foi muito divertido, nesse aspecto. Mas é também muito cansativo. Uma biografia tem que dar conta do universo de uma vida e tentar, o que acho mais interessante, ordenar algo que é naturalmente caótico, que é a existência de um indivíduo. A nossa vida não é linear.

Método de trabalho
Só começo a escrever depois que tenho um mapa. Por exemplo: quando fui escrever a biografia do Getúlio, a primeira coisa que combinei com o meu editor, Luiz Schwarcz, era que iria publicar a biografia em três volumes. Ele topou na hora, correu um risco editorial grande, porque se o primeiro volume naufragasse em vendas, estaria com dois cadáveres nas mãos. Aí defini o que cada volume iria abranger: período, no caso, cronológico. E o que iria dentro de cada volume, quantos capítulos iriam ter, o tema de cada capítulo, etc. Monto esqueletos sempre que estou iniciando um trabalho, mas é claro que isso é flexível, vai se alterando de acordo com os rumos que a pesquisa manda. Você não se perde desde que crie esse norte.

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Fla X Flu
Quando saiu a biografia do Getúlio Vargas, li uma crônica de um blogueiro do espectro político conservador, em que dizia textualmente que o livro tinha sido escrito por um “petralha”. Três semanas depois, um blogueiro de esquerda, quer dizer, que se diz de esquerda, porque não é de esquerda, o Paulo Henrique Amorim, escreveu: “Cuidado com essa biografia do Getúlio, porque é uma biografia tucano-udenista”. Vai entender. Um me chama de “petralha”, o outro de tucano-udenista. Deve ser porque eu fiz um trabalho bem feito. Dei um nó na cabeça deles. No segundo volume da biografia, na quarta capa do livro, tem dois pequenos textos de dois ex-presidentes que leram o primeiro volume e recomendam a leitura. Um assinado pelo Fernando Henrique Cardoso e outro pelo Luiz Inácio Lula da Silva. E aí as pessoas ficam te chamando de “isentão”. Ou seja, aquele sujeito que tentar ver as coisas com um pouco mais de complexidade, que não cai nessa dicotomia do pensamento binário. Então eu acho que quando você faz um trabalho em que busca essa polifonia, talvez provoque esse tipo de reação no leitor.

Universo do biografado
Meu tempo é hoje. Com todos os problemas, eu não queria ter vivido em outra época. Não sou saudosista. Acho que o saudosismo é um sentimento absolutamente imobilista. Mas, quando estou pesquisando, me transporto para a época, faço questão de visitar os lugares onde o personagem viveu, onde ele morou. A primeira coisa que fiz quando decidi que ia biografar Getúlio Vargas, foi ir para São Borja. Não tinha pesquisado uma linha ainda, mas queria saber qual era a cor da terra de São Borja, que cheiro tinha, como era o céu, o relevo, a topografia do lugar. Visitei apartamentos que a Maysa morou. Às vezes isso dá meia linha, mas é o que me transporta e é o que me leva à transportar o leitor ao universo do personagem.

Biografar vivos
Jamais faria a biografaria de uma pessoa viva. O Ruy Castro tem uma frase que acho emblemática: “Biografado bom é biografado morto”. Porque não vai te dar problema depois. Não acredito em biografias autorizadas, essa eu jamais farei. Quando fui biografar a Maysa, o Jayme Monjardim, filho da cantora e diretor de cinema e televisão, me forneceu muita coisa, tudo que ele tinha, abriu portas para que eu pudesse conversar com muita gente. Mas só leu o livro depois de publicado. E detestou a biografia, odiou tanto que se tornou meu inimigo. Disse que eu o apunhalei pelas costas, fiz um livro absolutamente para denegrir a imagem da Maysa. Então, se lidar com herdeiro já é complicado, imagina com o próprio biografado.

Compromisso com o personagem
Um outro amigo biógrafo, Fernando Morais, diz o seguinte: “Quando você se compromete a biografar alguém, amarra uma bola de ferro na própria perna e é condenado a arrastar essa bola até terminar o livro”. Aliás, acho que isso é para sempre, porque até hoje estou falando sobre Maysa, Padre Cícero, Getúlio, etc. São coisas que nunca mais vão sair da minha vida, porque quando você escolhe um tema, tem que estar muito certo de que esse tema te mobiliza, mobiliza suas energias, interesses, forças, etc. Porque você vai conviver com esse personagem diariamente, durante anos de sua vida. Você vai escarafunchar a vida dele, então não tem como abandonar. Casamento a gente abandona, biografia não.