Um Escritor na Biblioteca | Daniel Galera

Da Redação

Nascido em São Paulo, em 1979, Daniel Galera cresceu em Porto Alegre, em uma família de leitores. Isso, segundo ele, foi determinante para que se tornasse escritor. “Lembro de ver meus pais lendo com frequência, comentando livros comigo”, diz o autor gaúcho, que encerrou a temporada 2017 do projeto Um Escritor na Biblioteca. 

Galera estreou na ficção com o livro de contos Dentes guardados (2001), publicado pelo selo independente Livros do Mal, que criou com Daniel Pellizzari e Guilherme Pilla. Desde então, escreveu cinco romances: Até o dia em que o cão morreu (2003), Mãos de cavalo (2006), Cordilheira (2008), Barba ensopada de sangue (2012) e Meia-noite e vinte (2016).

O livro mais recente resgata episódios conhecidos da trajetória do autor, sendo o principal deles a experiência que teve com o fanzine digital Cardoso Online, que marcou a internet brasileira no final dos anos 1990. Apesar das passagens inspiradas na própria biografia, Galera não vê o romance como o mais “pessoal” que tenha escrito, refutando assim o rótulo de autoficção. “Não tento esconder essas semelhanças. Elas estão escancaradas. O livro é, biograficamente, bastante próximo dessa etapa da minha vida, mas eu não o acho um romance pessoal, porque as histórias desses personagens são bastante diferentes da minha.” 

Meia-noite e vinte é o primeiro livro de Galera após o sucesso de Barba ensopada de sangue, romance que o escritor considera, em muitos sentidos, “o mais íntimo” que já escreveu. Durante a conversa, ele falou sobre o processo criativo do livro, quando foi morar em Garopaba, no litoral catarinense, como forma de imergir no cenário da trama. “Viver em Garopaba era estar pesquisando para o Barba ensopada de sangue, quase tudo que eu vivia era potencialmente pesquisa.” O projeto foi exitoso. Considerado o melhor livro autor, Barba venceu o prêmio São Paulo de Literatura 2013 e teve vendas acima da média para a ficção nacional.

No bate-papo mediado pelo jornalista e tradutor Christian Schwartz, o autor também fala sobre adaptações cinematográficas de seus livros (“Sempre me coloco à disposição para conversar com o diretor”), influências literárias (“David Foster Wallace é um dos autores mais importantes para mim nos últimos tempos”) e método de trabalho (“Costumo fazer bastante pesquisa para todos os meus livros”). Confira os principais trechos da conversa.

     Foto: Kraw Penas
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Formação
A biblioteca mais importante para mim, sem dúvida, não foi do colégio nem da universidade, mas sim a biblioteca dos meus pais, em casa. Tive a sorte de, quando criança e adolescente, viver em uma casa com pais que eram leitores frequentes. Nenhum deles é da área de literatura, jornalismo, nada assim, mas leem bastante. Então, desde que sou pequeno, lembro das estantes, das prateleiras de livros cheias. Lembro de ver meus pais lendo com frequência, comentando livros comigo. Se sou escritor hoje, é por causa desse envolvimento bem inicial, na minha vida, com livros.

Experiências de vida
Li na adolescente alguns autores que me marcaram, como João Gilberto Noll e Philip Roth. Esses livros eram dos meus pais. Desde pequeno aprendi a ver os livros como um portal de acesso a não só o conhecimento, mas também a experiências e vivências. Meu interesse por livros está totalmente vinculado a isso. Essa biblioteca familiar, digamos assim, foi a mais importante para mim.

Influências
Antes mesmo de começar a escrever, aos 17 anos, fui bastante influenciado pela literatura anglo-saxã. Quando comecei, minha matriz narrativa eram autores como Philip Roth e Ian McEwan. No Brasil, Luiz Vilela e o Sérgio Faraco eram dois autores que eu admirava muito, pois apresentavam uma narrativa realista, seca, com diálogos muito bons. Digamos que, no início, aderi a esse realismo de matriz anglo-saxã. E isso acabou influenciando tudo que escrevi ao longo da minha carreira. Mas é evidente que eu gostava de ler outras coisas também. Sempre gostei de ler literatura policial, literatura de horror, alguma coisa de ficção científica, gêneros menos realistas. Ou que usam um estilo realista para tratar de situações irreais, inverossímeis. 

Gestor
Tive uma passagem, muito breve, atuando como Coordenador do Livro na Secretaria de Cultura de Porto Alegre. Fiquei só 4 ou 5 meses no cargo. A sede da Coordenação do Livro fica na Biblioteca Pública Josué Guimarães. Embora não tenha tido tempo de fazer muita coisa, conheci um pouco como a biblioteca funcionava. A limitação da verba foi uma coisa que senti na pele naquele momento, porque entrei cheio de sonhos, pensando em renovar o acervo, comprar livros novos, etc. E aí vi a absurda dificuldade de sequer fazer uma compra de livros. E como livro é caro e não existia dinheiro, não consegui comprar nada nesses meses em que eu estava lá. Ali vi o drama que é manter um acervo atualizado. Isso me mostrou como é importante a doação de livros. Doar não só livros velhos, mas às vezes um livro novo que você leu e não sente necessidade de guardar.

Meia-noite e vinte
São quatro personagens fictícios que estão atuando e ocupando papéis que equivalem àquilo que eu e amigos meus fazíamos na Porto Alegre do final dos anos 1990. A jogada é um pouco essa. O livro é bastante ancorado no ambiente cultural, de festas e fanzines eletrônicos da capital gaúcha, que era o meu ecossistema na época. São personagens que estudavam em cursos de comunicação, eram escritores, enfim... Não tento esconder essas semelhanças. Elas estão escancaradas. Eles escreviam um fanzine eletrônico chamado Orangotango, que é claramente uma cópia ficcional do Cardoso Online, do qual participei. Mas eles são inventados. O livro é, biograficamente, bastante próximo dessa etapa da minha vida, mas eu não o acho um livro pessoal, porque as histórias desses personagens são bastante diferentes da minha. Meu interesse era fazer uma espécie de análise de como as expectativas, sonhos e ideais da minha geração bateram de frente com a passagem do tempo até o momento recente. Mas fazer isso através de personagens que foram inventados, e de uma história que é majoritariamente fictícia. É um livro em que poucas coisas que são narradas de fato aconteceram. Por outro lado, Barba ensopada de sangue, que se passa em uma cidade onde morei pouco tempo, com um personagem bastante diferente de mim, é um romance muito mais íntimo e pessoal, em vários sentidos, do que Meia-noite e vinte.  

     Foto: Kraw Penas
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Pesquisa
Costumo fazer bastante pesquisa para todos os meus livros. Cada um exige uma quantidade e um tipo diferente de pesquisa. É uma etapa do trabalho que me interessa, em que me divirto e sinto prazer. Não faço muita pesquisa bibliográfica ou histórica, até porque o tipo de livro que escrevo acaba não pedindo isso. Mas procuro me informar sobre tudo que vai entrar na história, de uma maneira ou outra, coisas que sinto não dominar, ou não saber o suficiente. É o exercício da curiosidade saudável e necessária para poder escrever ficção.

Barba ensopada
No caso do Barba ensopada de sangue, não morei muito tempo em Garopaba [no litoral catarinense], apenas um ano e meio, mas foi uma vivência bem específica; porque assim como o personagem do livro, eu era um forasteiro. Já havia visitado o lugar como turista algumas vezes, mas fui morar lá sem nenhum motivo específico fora o desejo de ter uma experiência diferente. Cheguei lá sem conhecer ninguém, não tinha nenhum amigo na cidade, não tinha onde morar. Então foi muito intenso. E a invenção do livro se confundiu com minha experiência de viver e ter experiências na cidade. Viver em Garopaba era estar pesquisando para o Barba ensopada de sangue, quase tudo que eu vivia era potencialmente pesquisa. E nessa época eu estava numa espécie de período sabático: não tinha um trabalho que me tomava muito tempo. Fiz algumas traduções, escrevia algumas coisas, mas basicamente estava com o tempo livre. Tinha muito tempo para ficar lendo e pensando no romance que queria escrever.  

Cordilheira
A história da pesquisa para o Cordilheira é bem diferente. O projeto Amores Expressos enviou autores para diversas cidades do mundo. O convite já veio com a cidade e acabei indo para Buenos Aires. Não gostei muito, porque Buenos Aires não é tão diferente de Porto Alegre. Enfim, eu desejaria ir pra um lugar em que teria uma experiência de vida diferente culturalmente da minha. Não conhecia Buenos Aires, na verdade, nunca tinha ido. E fui passar esse mês lá. Eu já estava começando a pensar em escrever o livro que se tornaria o Cordilheira, já tinha as linhas básicas do romance, uma ideia esboçada, sabia quem era o protagonista, etc. Então comecei a imaginar aqueles personagens, aquelas situações que já estavam esboçadas, em Buenos Aires. E tudo acabou se encaixando. Algumas coisas eu já levei prontas, outras acabaram entrando no livro por causa do meu mês vivido na cidade. Mas a minha experiência lá foi bem esquisita. Não foi um lugar que escolhi ir. Curiosamente, apesar de eu ter uma proximidade com a cultura da cidade por ser de Porto Alegre, não me senti entrosado com Buenos Aires, que não me despertou nenhuma paixão ou curiosidade específica. Me senti pressionado para me encantar com o lugar. Foi uma coisa que me preocupou e comecei a ficar um pouco ansioso. Acho que isso transparece um pouco no romance. Fiz o possível para viver experiências variadas lá, para conhecer tudo que pudesse. Mas esse período na Argentina foi um dos meses menos felizes da minha vida, com certeza. Foi um mês bastante enfadonho e tenso.

Voz feminina
Até a experiência do Cordilheira, escrever sob a perspectiva de um personagem homem ou mulher não era uma questão muito importante para mim. Mas nesse livro decidi que a personagem seria uma mulher, então já fiquei um pouco atento para ver se haveria algo diferente a ser praticado. E no início, a narrativa era em terceira pessoa. A terceira pessoa já permite um distanciamento um pouco maior do personagem. Mas o livro não estava funcionando em terceira, e só quando eu arrisquei reiniciar ele em primeira pessoa é que a escrita deslanchou. Aí vi que o livro teria que ser escrito em primeira pessoa do ponto de vista da Anita, a personagem principal. Isso requer que a gente esteja constantemente entrando na cabeça do personagem, expondo o que ela está pensando. A terceira pessoa te permite driblar isso. Então ali eu fiquei atento. Pensei: bom, aqui talvez eu tenha um desafio que ainda não enfrentei de fato. No início isso me assustou, tive dificuldades, achando que não estava dando certo. Mas o meu insight na época foi que não era para ser difícil. E escrever do ponto de vista de uma mulher é praticar um exercício de imaginação, de alteridade que não é diferente, em essência, de escrever sobre qualquer outro personagem que é diferente de mim. Seja um homem de outra classe social ou com uma história de vida muito diferente da minha.

     Foto: Higor Oratz
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Reações
Esse livro, por várias razões, divide os leitores. É o meu romance que mais tem detratores. Já ouvi de tudo a respeito dele, de leitores homens e mulheres. Pessoas dizendo que é absurdamente inverossímil e odioso. Mas também mulheres já me falaram que o livro é perfeito. Então, que instrumento eu tenho para decidir qual desses leitores está certo? Não existe isso. Acho interessante que ele crie essas reações muito diferentes, essas divisões. No fim, é por isso que eu gosto do livro hoje em dia. Gosto de ter feito essas pequenas experiências, ter corrido alguns riscos e ver a reação que isso acaba causando nos leitores.

Relação indireta
Os autores que me influenciaram não têm, necessariamente, uma escrita parecida com a minha. Essa relação muitas vezes é indireta. Por exemplo, no Brasil o João Gilberto Noll e a Hilda Hilst são, possivelmente, meus autores favoritos, junto com Graciliano Ramos, Guimarães Rosa e o Luiz Vilela. Mas foram autores que li em certo momento e depois parei de ler. O que escrevo tem pouco a ver, à primeira vista, com o que a Hilda Hilst escreveu. Acho que o Noll até me influenciou um pouco mais. No romance Até o dia em que o cão morreu dá pra ver um pouco, talvez, a visão e a postura dos personagens do Noll. Talvez. Mas a linguagem do Noll é muito diferente da minha, e no entanto ele é até hoje um dos autores brasileiros que mais leio e releio. Então, às vezes é isso: os autores que a gente mais gosta não se relacionam diretamente com que a gente escreve.  

Wallace e McCarthy
O David Foster Wallace é um dos autores mais importantes para mim nos últimos tempos. O Cormac McCarthy, que é um outro escritor americano — que não é exatamente realista; ele é um autor cujo realismo transborda numa coisa fantasiosa, gótica, ultraviolenta, que não tem nada de realista — é um autor que me fascina profundamente. Li tudo o que ele escreveu, cada palavra, todos os livros, as peças de teatro, roteiros de cinema. É um autor que me encanta profundamente, influenciou bastante a narrativa do Barba ensopada de sangue

Cinema
Não me envolvo muito quando um livro meu está sendo adaptado para o cinema. Sempre me coloco à disposição para conversar com o diretor. No caso de Até o dia em que o cão morreu, a gente fez até uma leitura coletiva do livro — o diretor, roteiristas e eu. Mas isso vai até um certo ponto, porque o diretor é um autor também. Não é uma pessoa que eu contratei para fazer uma versão fiel do meu livro para o cinema. Não é essa a dinâmica de uma adaptação cinematográfica. A dinâmica é que alguém leu meu livro e, junto com outros profissionais, começam a imaginar uma história audiovisual, em forma de longa, de curta, seja o que for. É a leitura deles do livro, é a imaginação deles. A visão de mundo, experiência e linguagem deles vai ser acoplada à essa história que inicialmente era minha. E a adaptação não é minha. Então eu não tento me envolver nos projetos como se a minha opinião, ou a minha posição, importasse mais do que ela realmente importa. Com base nos projetos que já foram concretizados, minha experiência é justamente essa: os diretores gostam de conversar comigo, às vezes mandam um tratamento qualquer do roteiro, eu vou lá, leio, faço todas minhas observações, elogio o que eu acho legal, dou sugestão no que acho ruim. Eles escutam, dizem “ah, beleza”, mas no fim minha opinião é uma das últimas que importa. O que eu reclamo nunca é levado em conta, o que eu acho legal é mudado depois. 

Foto: Kraw Penas
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Adaptação do Barba
No caso do Barba ensopada de sangue, acho que tem tudo pra ser um filme muito bom. Conheço o trabalho do Aly Muritiba [que vai dirigir o longa] e acho muito bom. Eu o achei um sujeito interessante. As conversas que tivemos foram ótimas. E sei que ele é apaixonado pelo material. Mas é isso. Como vai ser o filme? Não sei. Então essas perguntas de como essa adaptação pode ficar, como ela deveria ser feita, elas devem ser dirigidas a ele. E não a mim.

Cardoso Online
O contexto em que aconteceu o Cardoso Online e outros fanzines digitais daquela época — e a própria editora Livros do Mal — era bem específico. O principal acontecimento é que a internet era uma coisa nova. Esses projetos eram frutos de um mundo que estava conhecendo a internet, descobrindo o que fazer com ela. E mais que isso: era outra internet. Era muito diferente do que a internet é hoje. Isso é uma coisa que é comentada em Meia-noite e vinte pelos personagens. Hoje a gente tem uma miríade de pequenas editoras que são muito legais. Tem também algum tipo de produção de narrativa digital. Mas o impulso da experiência de coisas novas com esses meios não é uma coisa tão forte agora quanto era naquela época. Talvez isso volte em algum momento. Hoje as editoras estão dando ênfase a outros aspectos, como escolha de papel, capa, distribuição, projetos gráficos. E com muita criatividade, inclusive às vezes voltando atrás e investindo em técnicas mais artesanais. Isso é uma coisa deste momento, esse retorno a coisas artesanais que a gente vê na cultura como um todo também pega um pouco o objeto livro. É algo mais forte hoje do que na época da Livros do Mal, por exemplo. Naquele período a discussão era “o que a internet está fazendo com as narrativas, com a cabeça das pessoas?” Hoje em dia isso já não e discutido, pois a internet já não serve muito para publicar. Pouca gente almeja fazer um projeto para publicar na internet. As pessoas usam as redes sociais para divulgar o que fazem, publicam um texto aqui, outro ali, algumas revistas digitais importantes ainda existem, mas não é mais aquele campo aberto de experimentação que as pessoas estão tentando alargar para ver o que sai. Acho que nisso deu uma regredida. A internet e o meio editorial hoje são um pouco mais conservadores nesse sentido, mas, por outro lado, são mais exploradores em outros aspectos.