Romance | Manuel Jorge Marmelo

Justina

Lanlan Bessoni


O mais difícil de tudo é saber por onde encetar a desembaraçada história do nosso indecoroso trisavô, tantos e tão pícaros são os episódios que compõem a difusa lenda dele. Como em outras situações semelhantes, o mais indicado será, também neste caso, que se comece pelo princípio: não no dia em que Alberto, ainda mal saído das entranhas de Setembrina, a nossa tetravó, viu a luz da Açoreira filtrando-se entre as vides, mas na exacta tarde em que se inaugurou o primeiro fascículo das suas movimentadas aventuras sexuais. A rapariga chamava-se Justina e nenhum dos dois há-de ter podido gabar-se de terem feito coisa boa, tão ineptos eram ambos nos aspectos práticos da fornicação.

Alberto ainda não tinha nenhuma alcunha nesse dia, nem foi então que a ganhou. Devia ter, eu sei lá, os seus treze ou catorze anos e andava a vadiar pelas quelhas, de fisga em punho e sem nada em que se ocupasse, quando viu que a filha do moleiro vinha pelo carreiro na sua direcção. Era Primavera, os estorninhos piavam no ar e as bordas dos lameiros estavam carregadas de florzinhas de cores festivas. A moça era o seu quê mais espigada do que ele, já quase uma mulher, e vinha descalça com um braçado de folhas de milho para ir deitar às vacas. Detiveram-se um diante do outro, olhando-se e medindo-se, sem saberem bem que a turbação que estavam sentindo não era outra coisa senão a vontade de praticar um no outro aquilo que os porcos fazem às porcas. Justina, ainda assim, deu um passo à direita para se desviar do caminho do rapaz, mas ele imitou-a como a imagem de um espelho e cortou-lhe a fuga.

Deixa-me ir que se faz tarde para ir pensar a Bonita.

Ela espera, que remédio. Não tem quereres.

Desafiador, Alberto deitou-lhe a mão à forragem, espalhando-a na terra semeada de feijão. Ela empurrou-o com malícia, pondo-lhe a mão no peito. Ele segurou-lhe no braço e puxou-a para si. Num instante estavam enleados e derrubados sobre a cama de talos de milho — ele por cima dela, olfatando-se como bichos e tirando com atrapalhação as roupas que lhes tolhiam os ímpetos. Naquilo em que a técnica os não favorecia, valeu-lhes a natureza, que é a maior das mestras: pelo que no corpo lhes latejava foram capazes de encontrar-se, sôfregos ambos, e desajeitados. E depois voltaram cada qual à sua vida pelo rumo que traziam antes, corados e sorrindo como parece que acontece desde que o mundo é mundo, mesmo entre os bichos que não são capazes de rir. Riem-se para dentro e, se calhar, é o melhor que fazem.

Daquele dia em diante, Justina e Alberto foram, por assim dizer, uma espécie de namorados. Não passeavam de mãos dadas nem tinham muito que dizer um ao outro, mas inventavam ocasiões em que pudessem esbarrar-se pelos caminhos, aprendendo gestos que antes não conheciam nem sabiam que pudessem existir. Ir buscar água à bica, recolher o gado, apanhar milho ou batatas — tudo se tornou pretexto para se encontrarem e voltarem a sentir a urgência da primeira vez. E bem depressa o nosso trisavô se deixou afeiçoar pela adoração de tudo o que compõe o corpo da mulher, os seus líquidos e os seus cheiros, a macieza das coxas e o volume dos seios. Curioso como era, bem depressa passou a reparar também nos encantos de outras mulheres, avaliando-as como podia e pondo-se a imaginar que mistérios e delícias ocultavam sob as roupas simples e, às vezes, sujas. Olhava-as e media-as com a fineza de um milhafre voando em círculos por cima da presa, rondando antes do voo picado e rapace, implacável. Uma após outra, várias moças e damas sucumbiram à amorosa rapina de Alberto, entregando-se-lhe afogueadas e seduzidas pelo sorriso desafiador e bonito que o Cricas devia ter, e pelas palavras que há-de ter aprendido a sussurrar, certeiras e definitivas como fisgadas de um cupido rústico.

Ainda não tinha dezasseis anos e já o nosso trisavô contava um número significativo de triunfos amorosos, dos quais se gabava quanto podia, contando-os nos ajuntamentos de rapazes no adro da capela ou quando iam a pé para a feira, provocando-se e guerreando como lobos juvenis. Fascinava-os com a descrição pormenorizada das suas torpezas e com a certeza das suas sentenças, garantindo que as mulheres se queriam assim ou assado: que as mais roliças eram de estalo por terem mais que apertar, que as magrinhas como gravetos se revelavam surpreendentemente habilidosas, mas, em todo o caso, que não havia nada como uma crica pentelhudinha, como a da Farinhota da Copada — e por aí adiante. Tanto presumia de já ter empernado com esta e com aquela que, certo dia, um dos rapazes lhe chamou Cricas, mais por inveja do que como elogio, e se calhar já farto de tanta bazófia e gabarolice. O nosso trisavô, porém, não desgostou daquilo. Arrimou-se a um muro esgravatando a terra com o pau que usava como cajado e para se defender de algum improvável meliante, e declarou com a solenidade possível a um fedelho de quinze anos:

Gosto de cricas e não nego. Quem não gosta que ponha na beira do prato. Mais fica.

E foi quanto bastou para que, pelos anos vindouros, aquele viesse a ser o seu distintivo. Usava-o com certa vaidade e orgulho, e, fosse como fosse, nunca se cansou de gostar da pardaleca. Era um apelido que lhe ia a matar.

No dia em que fez dezasseis, o irmão de uma moça a quem tinha feito mal apanhou-o sozinho e agarrou-o pelo gorgomilo. Ameaçou-o e disse-lhe que havia de arrepender-se de andar a bulir com quem não devia, fazendo menção de lhe aviar um sopapo. Alberto esquivou-se, acertou um biqueiro na canela do outro e, tendo ganho distância, atirou uma paulada na cachola do desonrado, deixando-o prostrado no chão.

Só me arrependo das cricas que não conheço, disse. A da tua irmã é bem boa, mas não lha escangalhei nem nada.

E deitou a correr pelo caminho, não fosse o outro refazer-se da pancada e ter ainda disposição para tirar teimas.

Manuel Jorge Marmelo é autor, entre outros, do livro de contos Oito cidade e uma carta de amor (2003), e dos romance As mulheres deviam vir com livro de instruções (2005) e Uma mentira mil vezes repetida (2011). O texto publicado pelo Cândido é parte do romance inédito A roda do mundo. Marmelo foi jornalista por 23 anos e mora no Porto, em Portugal.

Ilustração: Lanlan Bessani