Para gostar de ler: Ler para estar no mundo

José Carlos Fernandes
Como pessoas que tiveram pouco acesso ao ensino formal se tornaram, pelos mais improváveis caminhos, leitores dedicados



Marcio Renato dos Santos


O olhar de José Carlos Fernandes capta mais sinais entre o céu e a terra do que podem supor analistas e estatísticos. O jornalista da Gazeta do Povo costuma encontrar sutilezas em linhas e entrelinhas, e saiu da leitura da pesquisa “Retratos da Leitura no Brasil”, publicada pelo Instituto Pró-Livro em 2008, com mais inquietações do que certezas. Naquele levantamento, o não leitor representava nada menos que 48% de todo o estudo — ou 77 milhões de brasileiros. Na aferição mais recente, divulgada neste ano, o número salta para 50%, o que representa 88 milhões de pessoas.

Os números têm potencial para provocar insônia contínua — afinal, sinalizam que quase metade da população de 190 milhões de brasileiros são não leitores.

A inquietação, no caso de Fernandes, se traduziu em pesquisa, entrevistas, análises e leitura. Entre 2007 e 2011, ele acompanhou 12 pessoas que, pelos mais improváveis caminhos, se tornaram leitores. A empreitada tem a finalidade de dar substância ao projeto de doutorado que ele vai defender, em breve, na Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Os 12 leitores — da pesquisa de Fernandes — desafiam as estatísticas: deixaram a escola e, apesar disso, seguiram com a leitura. “Ler, para eles, é uma forma de tornar presente aquele prazer de descoberta do período escolar que, em alguma medida, lhes foi tirado”, diz o doutorando, que procurou encontrar as razões que levaram essas pessoas às páginas de livros, jornais e revistas.

Inevitável metamorfose
Quando ainda usava calça curta, Aldo de Brito Lima foi morar na Casa do Pequeno Jornaleiro, em Curitiba. Durante o dia, vendia revistas e jornais. À noite, estudava e, nos intervalos, passava os olhos nos produtos que o ajudavam a fazer um pé-de-meia.
Desde então, lê de tudo. Essa liberdade para fruir de Paulo Coelho a Dostoiévski sem culpa, nem medo de patrulha, chamou a atenção do jornalista e pesquisador da Gazeta do Povo. “Esses leitores, como Lima e os outros que acompanhei, leem de tudo e não se enquadram na máxima, segundo a qual o sujeito que lê vai 'melhorando' e se torna mais seleto. Eles não. Leem sem escrúpulos”, analisa Fernandes.

Após deixar a Casa do Pequeno Jornaleiro, quando tinha 18 anos, Lima trabalhou, entre outras atividades, comercializando seguros e imóveis — e, em meio ao cotidiano e todos inesperados, sempre leu. “A leitura é uma maneira de viajar, sair da realidade”, comenta o catarinense de Canoinhas, hoje com 76 anos. Ele, inclusive, diz que, a partir do que encontrou nas páginas de muitos livros, conseguiu fazer uma interpretação do próprio percurso: “Fui ou acabei me tornando um tímido. E acredito que, devido a essa característica, dessa vocação para o mundo interior, me transformei em leitor.”

Presente que abre o futuro
Aldo de Brito Lima

A leitura é uma maneira de viajar,
sair da realidade
”,
Aldo de Brito Lima, aposentado.
  
As estradas que levam ao universo da leitura são as mais variadas, e receber livros de presente pode funcionar como passaporte para entrar nesse admirável mundo de letras, enredos e símbolos. O italiano radicado em Curitiba , hoje com 76 anos, foi presenteado, ainda ragazzo, com romances e outras brochuras, e se tornou leitor — diferentemente dos 87% entrevistados pelo Instituto Pró-Livro, na pesquisa divulgada em 2012, que são não leitores e nunca receberam um livro de presente. Coincidência? José Carlos Fernandes não considera mero acaso.

O jornalista avalia que, no caso de Busani e dos outros 11 leitores que ele acompanhou, o fato de ganhar um livro pode ser o que fez a diferença entre, de fato, ler ou não ler. “Para eles, o livro, em algum momento, veio como presente, representando algo com valor, que inclusive pode e deve ser guardado embaixo do colchão.”

A leitura, e o Brasil, estavam no caminho de Busani. O pai dele veio fazer a América, ou melhor, implantar uma fábrica de máquinas de costura em Jundiaí, no interior de São Paulo. Aos 16 anos, ele tinha apego à namorada, ao cachorro e aos amigos daquele contexto, na Itália. Mas sofreu apenas na partida, e se adaptou desde o primeiro dia — lá se vão 60 anos de Brasil.

Aprendeu o português a partir de sua curiosidade — da mesma maneira que descobriu o idioma italiano perguntado, principalmente para a sua mãe, Ida, o que estava escrito nas placas de sinalização. O ziguezague da vida fez com que o técnico industrial, com formação equivalente ao atual ensino médio, viesse para a capital paranaense, onde foi admitido em uma empresa e passou por diversos cargos até ser nomeado gerente de planejamento. Ele acredita que, entre outros fatores, sua experiência de leitor o auxiliou, e muito, no percurso. “A leitura me deu tudo o que consegui na vida. O que me preparou para eu ocupar os postos nos quais estive foi o volume de livros que li. Aprendi muito lendo, inclusive com as obras de ficção”, afirma Busani.

Ilumina até a madrugada
Durante as aulas que leciona para os alunos do curso de Jornalismo, na Universidade Federal do Paraná (UFPR) e na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), Fernandes costuma citar Terezina Nicola Hubie como exemplo de alguém que se potencializou para a vida por meio da leitura. “Um leitor tende a desenvolver uma relação rica com a realidade, passando a emitir opiniões e se desviando, por exemplo, da ideia-força do fatalismo e da alienação”, teoriza o jornalista.

De fato, a paranaense nascida em Porto Amazonas nunca se contentou apenas com o que estava pronto diante de seu campo de visão, como o trecho navegável do Rio Iguaçu e a mata de Araucaria angustifolia. No Grupo Escolar Rocha Pombo, onde estudou até os 13 anos, ela começou a perceber que os livros podem viabilizar algo parecido com super-poderes. A professora de geografia falava sobre a escravidão no Brasil, citava Gabriel García Márquez e comentava clássicos do cinema norte-americano, como o longa-metragem Casablanca. Terezinha também sentia vontade de conhecer aqueles assuntos, e falar a respeito de tudo aquilo. “Aquela professora estudava, lia, procurava saber. Segui o exemplo”, conta. Nascia, naquele momento, uma leitora.

A roda-viva gira. Até os 19 anos, ela — após deixar a escola — trabalha em uma loja e depois no escritório de uma serraria. Então, casa com Arthur Hubie e, a partir de 1952, atua na área do turismo. São 60 anos na capital paranaense e, apesar de contratempos, encontra tempo para ler. “A leitura é a melhor hora do dia”, confessa.

A leitora de 81 anos diz reparar que as crianças deveriam ler mais, incluindo os seus dez netos. “Quem lê, percebe tudo com mais clareza e não se deixa enganar facilmente”, afirma a mulher que acompanha o Programa do Jô, lê jornais, livros de Fernando Sabino e Carlos Drummond de Andrade e tem repertório para comentar a crise europeia, a pertinência da lanchonete popular do Aeroporto Afonso Pena e a sina do Coritiba em ser vice-campeão.

Fernandes faz os últimos ajustes no texto da tese e, um tanto aliviado, diz que cumpriu o seu objetivo inicial, de apresentar o perfil de 12 leitores — conteúdo que pode dar pistas de como é possível, apesar de pedras no caminho, se tornar leitor. “Sem o aval da escola, eles prosseguiram na leitura, têm vida pública, são reconhecidos e respeitados em seus grupos, e agem sobre o mundo”, reflete o jornalista e futuro doutor.

 

Ler, verbalizar e agir

Leia trecho da tese de doutorado sobre leitura e leitores que o jornalista José Carlos Fernandes vai defender na Universidade Federal do Paraná

A primeira marca está nas vias da memória: os 12 leitores se lembram, como se fosse um capítulo de uma saga, o momento em que a escola lhes foi tirada, apontando a cada um deles um destino diferente. O lugar que, como diziam os pais e parentes, lhes garantiria o futuro, não fazia mais parte da vida deles. Teriam de trabalhar ou cuidar de marido e de filhos ou mesmo dos parentes envelhecidos. Nesse momento, foi como se desaparecessem na multidão dos brasileiros que têm suas vidas demarcadas pelas obrigações com trabalho.

Como previram sociólogos aqui estudados — Simmel, Park e Elias —, no entanto, nem todos se entregam às engrenagens da sociedade industrial, fazendo vingar uma identidade própria em meio às imposições do concreto e do óleo diesel. É quando aparece a segunda marca. Apartadas da escola, essas pessoas aqui acompanhadas — o que pode se estender por analogia a quem quer mais que eles representam — ficaram órfãos do melhor indicativo que poderia haver para se tornarem leitores, profissionais e cidadãos, mas não perderam de vista as experiências gratificantes vivenciadas com os livros. Ler se tornou uma distinção em meio à realidade na qual foram lançados. A escola, de alguma maneira, permaneceu neles, ainda que não mais com eles.

Vingaram como leitores, e a seu modo. São únicos — pouco hierárquicos, instintivos, nada preconceituosos, versáteis e falantes. Falar é parte de sua condição de leitor, reafirmando a máxima de Bachelard de que “o sujeito falante é todo o sujeito”, o que indica que realizam a vida no espírito prevista pela prática dos livros. O ler e o verbalizar fazem parte de sua estratégia de retomada de um lugar no mundo — um mundo que, sem o auxílio da escola, lhes chegava como um desígnio pesado e sem cor. 
 

Busani


A leitura me deu tudo o que consegui na vida.
O que me preparou para eu ocupar os postos nos
quais estive foi o volume de livros que li
”,
Mirco Busani, técnico industrial.