ESPECIAL | Fantasmas na poltrona 31/01/2024 - 14:21

Biógrafos de personagens como Carmen Miranda, Samuel Wainer e Vinicius de Moraes relatam seus processo de escrita e o assombro com a biografia

 

Francisco Camolezi

 

O sujeito desliga a TV, levanta do sofá e vai para a cozinha. Lá, serve-se de um copo d’água e caminha até o quarto enquanto desliga as luzes que ficaram acesas pela casa. No quarto, coloca os pijamas, deita na cama, encaixa o braço embaixo do travesseiro e, em busca da posição ideal, vira o corpo de lado. Por um instante, seus olhos esbarram em uma figura de formato humano sentada na poltrona que fica entre a janela e o guarda-roupas. Esse ser fantasmagórico parece demasiadamente confortável, e só ameaça sair dali para se infiltrar em seus sonhos. Com a maior naturalidade do mundo, o sujeito vira para o outro lado e volta à procura da postura perfeita porque, a esse ponto, a sensação esquizofrênica de escutar vozes e imaginar pessoas é nada mais nada menos que os ossos do ofício.

Que fique claro: o sujeito em questão é um biógrafo. O fantasma na poltrona pode ser Carmen Miranda, Vinicius de Moraes ou Samuel Wainer, como foi para Ruy Castro, José Castello e Karla Monteiro, respectivamente. Biografia é um trabalho que leva tempo. Anos, no mínimo. E o tempo leva ao íntimo. O biógrafo precisa se aventurar pelos submundos mais inacessíveis da vida do biografado. Ele veste o escafandro e vasculha cada canto e recanto da sua trajetória, e o resultado é, geralmente, o mesmo, um passeio pelas margens da sanidade. De acordo com Ruy Castro, algumas de suas biografias renderam mais de mil entrevistas, com pelo menos 200 pessoas diferentes e, mesmo assim, se refizesse esses trabalhos hoje, "tentaria ouvir ainda mais gente e mais vezes". É impossível circular por aí sem flertar com a paranoia.

É verdade que o texto final será responsável por esclarecer e trazer a público suas polêmicas mal resolvidas, deslizes irreversíveis e acertos que passaram em branco, no entanto, essa é uma leitura um tanto ingênua da biografia. Para José Castello, a biografia não explica nada. Ela apresenta novas perspectivas e olhares que ajudam a interpretar o biografado, mesmo sem decifrá-lo. "As biografias ajudam a desmanchar essa nuvem de distorções e de enganos, nos ajudam a observar os escritores de uma maneira mais direta e verdadeira", diz.

Para Karla Monteiro, a biografia é parte de algo maior. O personagem serve como uma porta para o contexto em que está inserido. A ideia é retratar não só a vida do biografado, mas o seu espaço e tempo. A jornalista, biógrafa de Samuel Wainer, que o diga. Seu livro, Samuel Wainer: O Homem que Estava Lá (2020), conta a história da imprensa e da política brasileira entre os anos 1930 e 1980, tendo como personagem central o jornalista.

 

Karla Monteiro
Karla Monteiro. Foto: Marcia Charnizon

 

Samuel foi um ícone da história da imprensa brasileira. Fundador do Última Hora, Wainer deu luz a um jornal trabalhista, popular, nacionalista e de altíssima qualidade. Uma das primeiras redações a implementar as técnicas do jornalismo americano — lead e copidesque — no país. A ideia de escrever sobre Wainer, conta Karla, se deu em uma viagem a trabalho com João Wainer, cinegrafista, neto de Samuel. Era 2015, recém-passadas as manifestações de junho de 2013, e, para Karla, o impeachment de Dilma Rousseff parecia uma pauta comprada sem muito debate por parte da imprensa. Em um paralelo com o jornalismo contemporâneo, Karla acreditava que Wainer cumpria um papel parecido com os blogs de mídia independente, alinhados à esquerda. Ambos remaram contra a maré da hegemonia. Escrever sobre Wainer, então, era apresentar não só a vida agitada que levou o jornalista, mas também o que já foi, poderia ser e, de certa forma, ainda é, por mais que em outra roupagem, a imprensa brasileira.

A essa questão, Ruy Castro acrescenta que a biografia trabalha com o fato. Para Ruy, análises e interpretações complexas "ficam por conta dos ensaístas". Não há, na biografia, espaço para literatices — descrições de cenas românticas e reconstruções de diálogos supostos. O biógrafo, no entanto, é um narrador, que, mesmo sem apelar para o descompromisso com a verdade, constrói e edita a história a partir da própria leitura, visível desde o momento da escolha do personagem, como foi para Karla e Samuel. Para Castello, “entre o leitor e o biografado, estão sempre presentes o olhar particular de cada biógrafo, seu estilo, seus valores, suas qualidades, mas também seus defeitos e limitações”.

 

O método

 

Alguns debates metodológicos circundam a escrita da biografia que, de acordo com Myrian del Vecchio, professora do Departamento de Comunicação da Universidade Federal e pesquisadora do Jornalismo Literário, vêm da História. A tradição da biografia está muito ligada ao método científico historiográfico, mas ela ganha outros aspectos quando apropriada pelo Jornalismo, com métodos mais flexíveis quando comparados aos propostos dos historiadores. Há quem diga que, para ser uma biografia, é preciso, primeiro, que o biografado esteja morto. As razões são várias. Primeiramente, práticas: evita dores de cabeça ao passo que ajuda a garantir a independência do texto. Castello acredita que, com o biografado em vida, os entrevistados teriam receio de dar declarações que pudessem aborrecê-lo, fazendo da biografia de um personagem vivo "um grande risco". Karla Monteiro é mais incisiva. Para ela, a biografia clássica exige um personagem morto.

 

josé castello
José Castello. Foto: Cristovão Tezza

 

O motivo, digamos, "filosófico", que sustenta a impossibilidade de se biografar pessoas vivas, é uma questão semântica. Se a biografia é o registro de uma vida, ela precisa contemplar essa vida do início ao fim. Por mais ideal que pareça, essa problemática apresenta efeitos materiais. A biografia de Woody Allen, escrita por Eric Lax e publicada em 1991, poucas semanas antes de seus escândalos sexuais e românticos virem a público — que foram escondidos pelo cineasta durante a apuração de Lax — , é o exemplo por excelência. Castello não considera o seu livro João Cabral, o Homem Sem Alma (1996) uma "biografia clássica", tendo em vista que foi escrito apenas em consulta com o autor em vida, sem entrevistas complementares e pesquisa em arquivos.

Se a biografia precisa ser escrita a partir de um biografado morto, então, a autobiografia é impossível. Castello acredita que, na verdade, autobiografias são viáveis. Basta “aceitar as características e limitações do gênero”. Mesmo assim, a “autobiografia não se interessa pela verdade, mas de nossos sentimentos a respeito da verdade”. Ruy diverge: “Já reparou que o autor de uma biografia é um biógrafo, mas o de uma autobiografia não é um ‘autobiógrafo’? Talvez porque essa categoria não exista, assim como o gênero”. Karla, por sua vez, é enfática: “Adoro livros de memória, mas não os leio como autobiografia”, diz a escritora. Para ela, o ser humano se enxerga em um espelho e se descreve em um vitral. Em A Vida por Escrito: Ciência e Arte da Biografia (2022), Ruy Castro aponta que um dos gêneros erroneamente chamado de biografia é, justamente, o livro de memórias.

Quanto à forma de contar a história, em suas biografias, todos os três autores, Karla Monteiro, José Castello e Ruy Castro, apostaram na ordem cronológica. No entanto, enquanto Castello é mais permissivo em relação à subversão da cronologia, Ruy e Karla tendem a ver a escolha como vaidosa. Uma tentativa do autor de demonstrar dotes literários que não necessariamente combinam com o gênero ou com o ritmo de leitura da biografia.

 

Biografia, gênero assombrado

 

Dados os encontros e desencontros, Karla, Castello e Ruy são uníssonos em um ponto: biografia é um gênero híbrido. Transita, especialmente, entre o Jornalismo e a Literatura. A crítica tende a classificar a biografia como um romance de não ficção, gênero estabelecido por Truman Capote em A Sangue Frio (1966). Não é, exatamente, jornalismo, apesar do apego pela verdade, do envolvimento de técnicas de reportagem e apuração e das raízes do gênero no Jornalismo Literário. Isso porque a biografia, mesmo avessa às literatices, mantém um diálogo direto com o romance.

Myrian del Vecchio não considera a biografia como romance de não ficção. Não, pelo menos, nos moldes de Capote, propostos pelo Novo Jornalismo americano, devido à sua precisão e ausência de licenciosidades literárias. Embora reconheça que o sabor da biografia, especialmente as escritas por jornalistas, possa provocar no leitor a sensação de parecida com a leitura de um romance.

Existe uma diferença sutil entre Jornalismo e Literatura: a pragmática. Enquanto a Literatura geralmente goza de total liberdade estética, interesses variados e propostas igualmente diversas, o Jornalismo tende a um certo funcionalismo. Por não terem finalidades óbvias, crônicas literárias, perfis, e as próprias biografias consistem em respiros à lógica de funcionamento do jornal. Irônico, José Castello diz que biografias são partes de "um projeto onipotente, que guarda o desejo louco de ressuscitar um morto". E é esse o romantismo assombroso que faz a biografia pular as cercas do jornalismo. Existe, aí, um enigma e um autor. É preciso decifrar as intenções da biografia, as histórias ocultas e as intersecções entre biógrafo e biografado. O texto dá pistas, o resto é com o leitor. Além disso, o tempo que leva uma biografia para ser escrita e publicada é incompatível com o Jornalismo. Para escrever O Poeta da Paixão (1994), biografia de Vinicius de Moraes, Castello levou quatro anos. Em Carmen (2005), Ruy precisou de cinco.

Castello, que escreveu a biografia de Vinicius de Moraes a pedido de Luiz Schwarcz, editor da Companhia das Letras, conclui que “escrever uma biografia é aventurar-se através da vida de um outro. É uma grande e perigosa viagem que deve ser feita com muita humildade, delicadeza e temor”. Karla, que está prestes a publicar a biografia de Leonel Brizola, conta as histórias de um espaço e tempo por meio da vida de um personagem. Segue a máxima de Adelmo Genro, grande teórico do Jornalismo brasileiro: do singular, o sujeito; para o universal, a história. Ruy, cansado das grandes articulações e análises conceituais da Faculdade Nacional de Filosofia, atraiu-se pela biografia por conta do concreto, o fato. Cada um à sua moda serão sempre entusiastas das boas conversas com os fantasmas na poltrona.