Capa | Olga Tokarczuk 25/05/2020 - 11:33

Que mundo é esse?

O jornalista e tradutor Irinêo Baptista Netto apresenta a trajetória da polonesa Olga Tokarczuk — vencedora do mais recente Nobel de Literatura — e analisa o romance Sobre os Ossos dos Mortos, seu único título disponível no Brasil

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Ilustração: FP Rodrigues

 

A Polônia, no mapa da Europa, lembra um hexágono desenhado por um péssimo artista. Ela faz fronteira com Rússia, Ucrânia e mais cinco países. Um dos lados é banhado pelo Mar Báltico. Na parte sul-sudoeste do hexágono-todo-tremido, fica a região da Silésia, que vaza um pouquinho para os territórios da Alemanha e da República Tcheca. Isso significa que existem alemães, poloneses e tchecos que são também silesianos.

A parte polonesa da Silésia abriga a agitada Breslávia, uma cidade com 650 mil habitantes, e a tranquila Krajanów, de apenas 160, mais ao sul, na divisa com a República Tcheca. Esses dois lugares são importantes porque servem de residência para a escritora Olga Tokarczuk, a polonesa vencedora do Nobel de Literatura 2018.

A Europa é mais complexa do que suas fronteiras dão a entender. E do que alguns políticos, em geral conservadores, estão dispostos a aceitar. “Tocártchuk” (a pronúncia é mais ou menos assim), por exemplo, diz ser primeiro silesiana, depois polonesa e, por fim, europeia. Apesar disso, ela é sempre identificada como polonesa.

Um perfil publicado pela revista americana The New Yorker, traduzido no Brasil pela Piauí em novembro do ano passado, explica como a família da escritora deixou a Galícia (uma região no Leste Europeu entre a Polônia e a Ucrânia, que fez parte do Império Austro-Húngaro, e não tem nada a ver com a Galícia espanhola, no noroeste da Península Ibérica) para viver na Baixa Silésia, na fronteira com a República Tcheca, pouco depois da Segunda Guerra Mundial. Uma parte da Galícia continuou sendo polonesa e outra parte deu origem à Ucrânia, e foi para debaixo do guarda-chuva da União Soviética. Ao se referir à Galícia, Tokarczuk diz: “Você não pode falar sobre essa área [a Silésia] sem falar dos ucranianos, porque 3 milhões de poloneses que vivem lá ainda têm raízes na Ucrânia”. Ou, para ser mais específico, no que hoje chamamos de Ucrânia. “Essa distinção — quem é polonês e quem é ucraniano — para mim é muito artificial”, disse a escritora.

Entender a geografia e a geopolítica da Polônia e, especificamente, da Silésia, não é requisito para ler a obra de Tokarczuk, mas pode ajudar você a se situar na leitura de Sobre os Ossos dos Mortos, o único livro dela disponível no Brasil. Os Vagantes, editado pela Tinta Negra em 2014, está fora de catálogo.

Também não é preciso conhecer o cenário político polonês, mas, só para constar: a Polônia também foi engolida pela onda conservadora, representada lá pelo partido Lei e Justiça. E pode-se dizer que os conservadores não são fãs de Tokarczuk, muito por causa de sua obra mais recente, Księgi Jakubowe (“Os Livros de Jacó”, de 2014, ainda sem tradução para o português), um romance histórico sobre o líder religioso Jacob Frank (1726-1791), que conseguiu desagradar judeus, muçulmanos e católicos depois de experimentar cada uma das religiões como convertido, desprezá-las todas e abraçar a ideia da “purificação por meio da transgressão”. O homem gostava de uma sacanagem (ou de “práticas sexuais proibidas”, como diz a página sobre ele na Wikipédia).

Os Livros de Jacó tem quase mil páginas e venceu o prêmio Nike em 2015, um equivalente ao Jabuti na Polônia. Por argumentar, em entrevistas feitas no embalo da premiação, que os poloneses devem lidar com as barbaridades que cometeram no passado, inclusive como colonizadores, Tokarczuk foi acusada de traição e recebeu ameaças de morte — teve até de andar com guarda-costas por um tempo (o que costuma melhorar as vendas de um livro).

Em uma entrevista para a rede alemã Deutsche Welle (DW), Tokarczuk disse: “Meus livros não são ‘políticos’. Não faço exigências políticas. Eles, na verdade, descrevem a vida. Mas, quando olhamos para a vida humana, a política permeia tudo…”.

Quando diz que seus livros não são “políticos” — numa entonação que justifique as aspas —, a escritora parece estar se referindo a um sentido estrito: ela não escreve livros que devem ser lidos como libelos políticos, conservadores ou liberais, de direita ou de esquerda. Ela fala aqui da política como arte de governar. Porém, quando afirma que a política não pode ser dissociada da vida humana, talvez caiba um outro significado, o de política como a habilidade de se relacionar com os outros para obter resultados desejados. Daí dizerem que o ser humano é um ser político.

Há escritores (e leitores) que abominam e se entediam com perguntas clássicas como “Por que você escreve?”, ou “Para que serve a literatura?”. Porém, às vezes, quando você tem sorte de pegar a entrevistada em um bom dia, uma pergunta preguiçosa acaba ganhando uma resposta boa. É o caso da entrevista de Tokarczuk para a DW. A conversa foi com o editor Michal Gostkiewicz e a autora diz que escreve livros para abrir a cabeça das pessoas. “Para apresentar novas perspectivas, para fazer as pessoas se darem conta de que aquilo que elas consideram óbvio não é óbvio, de que você pode olhar para uma situação banal de um ponto de vista diferente e revelar outras camadas e significados. É para isso que serve a literatura — para expandir nossa compreensão, a habilidade de interpretar nossas vidas e o que está acontecendo com a gente”.

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A escritora polonesa Olga Tokarczuk venceu o mais recente Nobel de Literatura. Foto: Divulgação

 

Vida pessoal
Olga tem 58 anos, completos no dia 29 de janeiro. Ela usa o cabelo em dreadlocks enrolados como um turbante (ou uma coroa), no alto da cabeça. O cabelo é escuro, quase preto, com algumas tranças em um tom de castanho claro. Ela não é rastafári e ficou satisfeita de ter adotado os dreadlocks quando soube que eles eram usados também por poloneses na Idade Média. Uma franja cobre um terço da testa larga e as sobrancelhas são levemente arqueadas, de modo que ela parece sempre um pouco triste, sofrida. Os olhos claros não parecem ter uma cor definida, mas têm um brilho que reforça a ideia de tristeza dada pelas sobrancelhas. Na voz calma e segura de Olga, o polonês soa como uma língua que sibila. Quando fala ou ri, os dentes inferiores aparecem mais do que os superiores, mas ela não sorri com facilidade. Suas roupas são quase sempre pretas e ela curte adereços — quando foi receber o Nobel, enfeitou a coroa de dreadlocks com presilhas brilhantes e, na hora de ler o discurso de agradecimento, sacou um par de óculos redondos enormes, numa armação elegante que parecia de madeira.

Tokarczuk é formada em Psicologia — foi adepta da psicologia analítica de Carl Jung — e chegou a clinicar durante anos antes de se dedicar à literatura, área de sua mãe, que dava aulas sobre o tema. Pouco traduzida fora da Europa — uma situação que deve mudar depois do Nobel —, ela tem uma carreira de 30 anos que começou com um livro de poesia, publicado em 1989, e soma 15 obras, entre romances, coletâneas de contos e de poemas. Hoje, existem dois livros dela em inglês e um terceiro a caminho, editados no Reino Unido, muito por causa do empenho de sua tradutora, Jennifer Croft, que não sossegou até arranjar uma editora disposta a bancar uma escritora polonesa interessada em misturar gêneros literários e criar obras difíceis de serem classificadas. Uma casa britânica com o nome ótimo de Fitzcarraldo (uma referência ao filme homônimo de Werner Herzog) decidiu apostar em Tokarczuk e a ousadia foi recompensada: Flights, a edição inglesa de Os Vagantes, venceu o prêmio Man Booker International, o mais importante da coroa britânica, em 2018. Para se ter ideia do quanto a Fitzcarraldo é alternativa, ela não se preocupa em fazer edições elaboradas nem luxuosas — seus livros têm capa lisa, na cor azul clássico, com o título e o nome da autora em Times New Roman, tudo do mesmo tamanho, no alto do retângulo. Depois da vitória no prêmio Man Booker, deram um jeito de colar um adesivo pequeno dando a informação.

Antes de ferir a sensibilidade dos conservadores com seus comentários sobre a herança histórica da Polônia (“Sentimos um tipo de dor fantasma em relação à perda de territórios multiétnicos”), ela já tinha sido acusada de anticristã e de terrorista ecológica — seja lá o que isso signifique — por causa do livro Sobre os Ossos dos Mortos, publicado originalmente em 2009 e somente em outubro de 2019 no Brasil, pouco depois do anúncio do Nobel, pela Todavia, que vai editar também uma nova tradução de Os Vagantes com o título Viagens.

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Comida e literatura
Olga Tokarczuk é vegetariana e isso, mais do que uma escolha pessoal, é para ela um posicionamento político (porque a política permeia tudo). Assim como outro escritor famoso e famosamente vegetariano, J. M. Coetzee, o sul-africano autor de Desonra que venceu o Nobel em 2003, a silesiana da Polônia decidiu tratar do assunto em um de seus livros.

Coetzee deu duas palestras em Princeton sobre a relação do homem com os animais e, mais tarde, transformou o material no livro A Vida dos Animais (1999), incluindo no mesmo volume réplicas escritas por estudiosos de filosofia, história, literatura, primatologia e religião. Ele fez sua defesa dos animais em forma de narrativa e não como ensaio, criando uma história protagonizada pela personagem Elizabeth Costello. Na história, Costello, que funciona como um alter ego do autor, é chamada para um evento semelhante ao de Princeton e usa a oportunidade para expor seu ponto de vista.

Sobre os Ossos dos Mortos é mais sutil. Tokarczuk cria um romance policial em que os animais são os principais suspeitos nos assassinatos que acontecem na história. Tudo indica que eles estão se vingando dos homens que os caçam por esporte.

Como a publicação de autoras polonesas contemporâneas não é comum no mercado editorial do Brasil, é perdoável que o leitor encare o livro como algo mais ou menos exótico. Tão exótico quanto seria, talvez, o livro de uma autora brasileira contemporânea para um leitor polonês.

Essa atmosfera estranha é reforçada logo no início da história. Trata-se de uma terra estrangeira. É um lugar ermo, frio e branco, habitado por pouquíssimas pessoas que têm nomes malucos como Pé Grande, Esquisito e Boas Novas.

Nas primeiras páginas, preciso admitir, imaginava que esses personagens não eram nem sequer humanos. Achava que eram… criaturas? Ou seres mágicos do tipo que você encontra em literatura fantástica. (Nesse aspecto, ter lido que Olga desafia classificações e mistura gêneros literários aumentou muito os caminhos possíveis de leitura.)

Aos poucos, as coisas vão ficando mais claras. Não tem nada a ver com literatura fantástica. Os personagens são pessoas comuns que habitam um povoado perto da fronteira com os tchecos. O vale e o condado se chamam Klodzko, e fazem parte do território da Baixa Silésia — embora o livro não cite o nome da região em momento algum.

Janina Dusheiko, a narradora e protagonista do romance, odeia ser chamada de Janina. Ela tem o costume de fazer mapas astrais para todas as pessoas que conhece e tem uma fé exagerada nos astros. “É bom ter confiança plena em algo”, diz ela. Mesmo que você não se interesse por astrologia (o que é o meu caso), o entusiasmo da Sra. Dusheiko contamina a narrativa e tudo parece ganhar um propósito quase mágico. Ela crê que tudo tem uma explicação. “Tudo está interligado com tudo, e todos permanecemos numa rede de diversas correspondências.” Mas, antes de essa história de astrologia sair do controle, começam a surgir pistas de que Dusheiko exagera na fé (ela chega a analisar os pontos de contato entre a programação de tevê e a configuração dos planetas), sem mencionar que é conhecida como a velha louca do povoado. Ainda assim, muitas famílias não se incomodam de pagar a velha louca para cuidar de suas casas durante o inverno, quando todo mundo prefere escapar para Breslávia.

 

Vingança dos animais
A história começa com Esquisito batendo na porta de Dusheiko. (Os nomes malucos são apelidos que ela dá para as pessoas de sua convivência.) Algo sério aconteceu. O vizinho deles, que a narradora chama de Pé Grande, está morto. E Esquisito pede ajuda para deixar o corpo apresentável antes de a polícia chegar — é uma ideia torta, mais tarde criticada pela polícia, mas a intenção de Esquisito era boa, e não ruim. Aparentemente, Pé Grande se engasgou com um pedaço de osso de corça. Contrariando as leis, ele tinha caçado o animal fora da temporada e preparado a carne para a janta.

Quando Dusheiko e Esquisito chegam à casa de Pé Grande, percebem algumas corças ao redor dela. Esse fato basta para que Dusheiko comece a espalhar uma narrativa de vingança dos animais contra os caçadores do povoado. Uma teoria que ganha força à medida que outras mortes ocorrem. Dusheiko toma as dores dos animais e sofre porque suas duas cadelas, que ela chama de “meninas”, desapareceram. Ela desconfia que os caçadores tenham matado as meninas.

“Que mundo é esse?”, diz Dusheiko. “O corpo de um ser transformado em sapatos, almôndegas, salsichas, num tapete junto à cama, num caldo preparado à base dos ossos de um outro ser… Sapatos, sofás, uma bolsa feita da barriga de um ser, aquecer-se com a pele alheia, alimentar-se com o corpo de outro, cortá-lo em pedaços e fritar em óleo… Será que é possível que esses procedimentos macabros aconteçam de verdade? Essa grande matança cruel, insensível, mecânica, sem nenhum remorso, sem nenhuma pausa para pensar, embora muito pensamento esteja implicado a filosofias e teologias engenhosas. Que mundo é esse onde matar e causar dor é tudo como algo normal? O que diabo acontece com a gente?”

As aspas da personagem, na tradução de Olga Bagińska-Shinzato, poderiam ser de Tokarczuk. A certa altura, Dusheiko diz: “Os animais mostram a verdade sobre um país. A atitude em relação aos animais. Se as pessoas tratarem os animais com crueldade, não adiantará de nada a democracia ou qualquer outra coisa”. Essa afirmação remete aos argumentos defendidos por Coetzee.

Dusheiko é uma professora de inglês aposentada que mantém amizade com um ex-aluno e os dois juntos tentam traduzir a poesia de William Blake (1757-1827), que aparece em alguns pontos do livro. Como na página 71: “Every night & every morn / Some to misery are born / Every morn & every night / Some are born to sweet delight, / Some are born to endless night”. No livro, os versos de “Augúrios de Inocência”, o poema mais famoso de Blake, não estão traduzidos, mas o blog Escamandro traz uma tradução de Matheus Mavericco: “Toda noite & toda manhã / A existência de alguns é vã / Toda manhã & toda noite / Alguns nasceram pro deleite / Alguns nasceram pro deleite / Outros pro infinito da noite”. O título de Sobre os Ossos dos Mortos foi tirado de um verso de Blake.

O livro, ao contrário do romance policial costumeiro, não tem um clímax, nem um momento em que o mistério da história é enfim respondido de maneira espetacular. Talvez porque não tenha um detetive. Existem policiais cuidando do caso, mas eles são coadjuvantes.

Para um romance que gira em torno de um crime, a trama é fundamental. É ela que dita o ritmo da história e determina o interesse do leitor, que segue lendo para saber o desfecho e conhecer o culpado. Na obra de Tokarczuk, a trama não é o mais importante e, por consequência, o desfecho também não; mas sim o percurso que fazemos ao longo da história. Se você é leitor de romances policiais, talvez fique procurando soluções para o que está acontecendo, pistas verdadeiras e falsas, e um responsável pelas mortes. Mas é difícil descartar as evidências que dizem: os animais são os culpados. Nesse caso, a pergunta é então: como? Que tipo de consciência esses animais têm para conseguir se vingar? Surgem outras desconfianças pelo caminho, mas há um clima estranho, quase sobrenatural, sobre os eventos narrados. E essa é a maior arma de Tokarczuk: estamos dentro do mundo da Sra. Dusheiko, dentro de sua cabeça. “Tudo o que podemos imaginar constitui algum tipo de verdade”, diz a personagem.

Tudo o que podemos imaginar constitui algum tipo de verdade.

 

        Olga Tokarczuk em números

  • É autora de 15 livros, entre romances, antologias de contos e de poemas, publicados ao longo de 30 anos de carreira
  • Tem dois livros traduzidos para o inglês (e um terceiro a caminho)
  • Tem dois livros traduzidos no Brasil: Os Vagantes (Tinta Negra, fora de catálogo) e Sobre os Ossos dos Mortos (Todavia)
  • Suas histórias inspiraram seis produções para o cinema e ela mesma assina o roteiro de dois desses filmes: The Vanishing (2011) e Rastros (2017, inspirado no romance Sobre os Ossos dos Mortos)
  • Seu 1º livro, de poesia, foi publicado em 1989
  • Ela tem 58 anos e nasceu em 29 de janeiro de 1962
  • Em 2018, ganhou o Man Booker International, o prêmio mais importantes do Reino Unido, pelo livro Os Vagantes, traduzido por Jennifer Croft, que dividiu o prêmio com a autora
  • Em 2019, a Academia Sueca anunciou o Nobel de Literatura para Tokarczuk. Seu Nobel, no entanto, é de 2018 e só foi anunciado no ano passado porque o prêmio tinha sido suspenso por causa de uma denúncia de abuso sexual

 

Leia aqui um artigo sobre a natureza do Prêmio Nobel de Literatura

 

IRINÊO BAPTISTA NETTO é jornalista, tradutor e doutor em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná. Escreveu para os jornais Folha de S.Paulo e Gazeta do Povo.