Revista Helena: Lembranças do Norte 18/12/2012 - 13:50

Laurentino Gomes reflete sobre os impasses da economia paranaense da década de 1960 a partir da experiência de sua própria família

Eu me lembro de uma noite gelada e do ronco monótono do motor de um caminhão no distante ano da graça de 1966. Na carroceria, cinco homens — eu, meu pai e meus três irmãos menores. A mãe viajava na cabine, lugar mais confortável para uma mulher vencer o incessante sacolejo de uma estrada de terra esburacada e traiçoeira do interior do Paraná. Fazíamos a mudança de Água Boa, distrito rural de Paiçandu, na região de Maringá, para Pérola do Oeste, entre Umuarama e Guaíra.

Para trás ficavam os nossos primeiros anos de infância, o barro e a poeira da terra roxa. Pela frente, muita areia e o futuro incerto em uma região nova, recém desbravada. Antes de partir, nosso pai organizara em cima do caminhão um abrigo de colchões de palha, lençóis de algodão cru, cobertas de lã e travesseiros de pena. Vestíamos pijamas de flanela e viajávamos acomodados entre a mobília amarrada por cordas, sob o toldo de uma lona encardida pelos muitos anos de uso no terreirão de café. Apesar da noite fria lá fora, ali debaixo da lona era quente e aconchegante.

Mais velho de quatro irmãos, eu acabara de fazer dez anos. Depois vinham Sérgio, com oito, Jaime, com seis, e Edno, o mais novo, com apenas quatro. Nosso pai, João Inácio, era mineiro de Brasópolis. Chegara ao Paraná com a família na década de 1940, morando primeiro em Cambará, no chamado norte pioneiro, depois em Mandaguari e Maringá, cidades de cuja fundação participara meu avô, Inácio Tertuliano. Nossa mãe, Maria Ascensão, paulista de Presidente Prudente, era neta de imigrantes italianos trazidos ao Brasil no final do século XIX para substituir a mão de obra escrava nas fazendas de café do interior de São Paulo.

A mudança naquela madrugada de 1966 era para mim e meus irmãos uma grande aventura. Nunca tínhamos ido tão longe em nossos ainda escassos anos de vida. Iríamos percorrer pouco mais de duzentos quilômetros de estrada, mas parecia que viajávamos para a Lua. Com exceção de algumas poucas e rápidas visitas à casa dos avós maternos, em Mandaguari, jamais tínhamos atravessado uma noite fora de casa — menos ainda na carroceria de um caminhão.

De repente, um posto de gasolina. Lugar ermo e desabitado, na beira de um grande rio, o Ivaí. O pipocar fantasmagórico de um motor a diesel alimentava uma lâmpada indecisa, a única existente num raio de muitos quilômetros. Em volta, tudo breu, escuridão absoluta. O motorista parou para reabastecer e tomar um café requentado.

— Quem quer fazer xixi?, perguntou nosso pai.

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Queríamos, sim, mas como sair daquele ninho provisório e confortável? Como enfrentar o frio lá fora descalços, sem lanterna para mostrar o caminho? Em silêncio, nosso pai levantou-se, foi até a amurada da carroceria e dali mesmo começou a urinar na areia fofa da estrada deserta. Seguimos seu exemplo de imediato. Foi a nossa primeira demonstração coletiva de virilidade em família: cinco Gomes fazendo xixi de cima de um caminhão numa noite escura do norte paranaense no ano de 1966.

Lembro-me de ter erguido a cabeça e visto o céu estrelado. Uma infinidade de pontos luminosos preenchia o firmamento acompanhando os contornos da Via Láctea. Bem no meio do rastro luminoso, Vênus, a Estrela da Manhã, brilhava com todo o seu fulgor de uma madrugada de inverno no hemisfério sul.

A mudança de Água Boa para Pérola era parte de um fenômeno que afetava milhões de paranaenses do Norte naqueles anos. A fronteira agrícola se movia para o oeste. O café, que fizera a prosperidade de Londrina e Maringá nas décadas anteriores, começava a dar lugar à soja. Não haveria terras suficientes para todos. Era preciso ir adiante.

Nasci em Maringá, na casa do meu avô paterno, mas passei toda a infância em Água Boa. Vida simples, distante de tudo, pautava pelo trabalho árduo na roça e pelas missas, terços e procissões aos domingos e Dias Santos. As notícias chegavam pelo rádio à pilha na voz de Heron Domingues, o Repórter Esso, minutos antes de começar A Voz do Brasil. Foi pelo Repórter Esso que soubemos do lançamento do satélite artificial Sputnik, em 1957, cujo formato serviria de inspiração para a catedral de Maringá, idealizada pelo bispo Dom Jaime Luiz Coelho e projetada pelo arquiteto José Augusto Bellucci. Quatro anos mais tarde, Yuri Gagarin, primeiro ser humano a entrar em órbita, anunciaria que a terra, vista do espaço, era azul. Também pelo Repórter Esso tomamos conhecimento da conquista dos primeiros títulos mundiais pela seleção brasileira de futebol, em 1958 e 1962, da renúncia de Jânio Quadros à Presidência da República, em 1961, e do assassinato de John Kennedy, em 1963.

Meu pai, congregado mariano, carregara na lapela a vassourinha prateada da campanha eleitoral de Jânio cujo jingle dizia:

“Varre, varre, varre, varre vassourinha!

Varre, varre a bandalheira!

Que o povo já tá cansado

De sofrer dessa maneira!”

A renúncia de Jânio, menos de sete meses depois da posse, deixara meu pai abatido. Ao pé do rádio o vi muitas vezes, noite adentro, acompanhando a Rede da Legalidade de Leonel Brizola. João Goulart, o vice-presidente, voltava de uma visita à China comunista. Os militares queriam impedir que assumisse a presidência. Temia-se que o seu avião fosse derrubado ao entrar em território nacional. Graças à Rede da Legalidade, Jango tomou posse, mas nos três anos seguintes o Brasil seria varrido não pela vassourinha moralista da campanha de Jânio, mas pelo furacão que levaria ao golpe de 1964.

Em Água Boa, povoado de apenas 3 mil habitantes, quase todos católicos e conservadores até a medula, havia um agente do Partidão, o Partido Comunista Brasileiro. Chamava-se Pedro Riguette e pregava a reforma agrária e a distribuição das terras para agricultores pobres. Riguette repetia um discurso que faria todo sentido em outras regiões do país dominadas pelo latifúndio, como a Zona da Mata pernambucana, nessa mesma época agitada pelas Ligas Camponesas de Francisco Julião. Era, no entanto, uma ideia difícil de entender naquele pedaço do Norte do Paraná, área de pequenos agricultores, cujas terras haviam sido compradas com imensos sacrifícios.

Meu pai sequer tinha terra. Cultivava um pequeno sítio de propriedade do meu avô. Ainda assim, assustava-se com o que dizia ser a ameaça comunista. Nos sermões, bispos e padres convocavam os católicos para a Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Afirmavam que, caso o Brasil se tornasse comunista, não só as terras seriam tomadas dos agricultores, mas também seus filhos, levados para serem reeducados em escolas do Estado.

Ao amanhecer de 1º de abril de 1964, Pedro Riguette foi preso pelo delegado local. Nunca mais se teve notícia dele, mas um boato dizia que, na cadeia, haviam-lhe enchido a boca de terra como paga pela reforma agrária que tanto defendera.

Nos anos seguintes, a reforma agrária viria às avessas e por outros meios. A substituição da cafeicultura pela soja levaria a uma acelerada e brutal concentração da propriedade. Milhões de pequenos agricultores deixariam suas lavouras no maior fluxo migratório de toda a história brasileira. Era esse o fenômeno que nos lançara na estrada naquela escura e fria madrugada de 1966.

Em Pérola, meu pai conseguira, finalmente, comprar uma pequena propriedade, de dez hectares, onde plantou café. As geadas e a terra arenosa, pouco produtiva, o fizeram voltar para trás quatro anos mais tarde, desta vez para Maringá, onde fui jardineiro, sapateiro, office-boy, mecânico, cartorário e bancário — sempre estudando à noite, em escola pública, e trabalhando durante o dia para ajudar nas despesas da casa. Dos nossos vizinhos e colegas de infância em Água Boa, muitos foram ainda mais longe, para Mato Grosso e Rondônia. Alguns, por lá ficaram vítimas da malária e da violência endêmica que assolava colonos e posseiros na nova fronteira agrícola. Outros acabaram no cinturão de pobreza de São Paulo, Curitiba e outras metrópoles inchadas pelo êxodo rural.

Hoje, como muitas pequenas cidades do interior paranaense, Água Boa é um vilarejo despovoado e congelado no tempo. O trem de passageiros, que até lá chegava na época do café, deixou de circular há muitos anos. Trilhos e estações de embarque foram tomados pelo matagal. Onde antes havia festas e procissões, casas de comércio, pomares, colônias de agricultores e escolas rurais, agora predomina a paisagem monótona da soja. Algum tempo atrás, descobriu-se na região um aquífero subterrâneo, profundo e de propriedades químicas raras. A água mineral ali produzida é uma das melhores do Brasil, fazendo justiça ao nome do lugar. A nova riqueza, no entanto, não precisa de gente para ser engarrafa. Máquinas fazem tudo sozinhas.

O mineiro Carlos Drummond de Andrade dizia que a Itabira de sua infância era apenas uma fotografia na parede. “Mas como dói!”, queixava-se o poeta. No meu caso, nem retrato há na parede. E, ainda assim, dói.


Laurentino Gomes é autor dos livros 1808, sobre a fuga da corte de D. João para o Rio de Janeiro, e 1822, sobre a Independência do Brasil. Ganhou quatro vezes o Prêmio Jabuti, concedido pela Câmara Brasileira do Livro. É membro titular do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo e da Academia Paranaense de Letras. O texto foi publicado na revista Helena.

Ilustração: José Marconi

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