Helena #4: Glória feita de memória 06/01/2014 - 09:30
Publicado entre 1959 e 1961 no jornal Diário do Paraná, o suplemento semanal “letras e/&artes” marcou a cena cultural paranaense com ousadia temática e visual. O cineasta Sylvio Back, então editor da página, conta um pouco dessa história
Por Sylvio Back
É v erdade. Aos 22 anos, eu era o editor do suplemento literário "letras e/& artes", cujos audazes colaboradores (*), todos irremediavelmente jovens, assinavam contos e poemas, ensaios e textos críticos, gravuras e desenhos, num arco de múltiplas angústias, criatividade e, por que não, de total impunidade intelectual. Sim, algo inédito naquela provinciana Curitiba do final dos anos 1950, prisioneira de beletristas militantes, do compadrio literário e de flagrante inércia cultural.
A cada semana, o suplemento trazia um repertório soberbo, que ressoa como algo, quem sabe, improvável de acontecer novamente. Um repertório que incluia Kafka, Orson Welles, Drummond, Kerouac, cinema brasileiro (Roberto Santos, Walter Hugo Khouri, P.E. Salles Gomes), jazz, Sartre/existencialismo, Teatro de Arena, Bradbury, Bashô, Genet, Bandeira, Camus, Chaplin, Neruda, Tati, Eisenstein, Hollywood, cinemas japonês e soviético, Shakespeare, Nelson Rodrigues, Nouvelle Vague, bossa nova, teatro popular e discussões sobre literatura engajada, além de estampas dos novos artistas paranaenses figurando ao lado de Goeldi, Lamônica, Mabe, Degas, Chagall, Portinari, Modigliani, Sabro Hasegawa, etc.
Trabalhava conosco um jornalista com nome abrasileirado do famoso escritor francês, Emílio Zola Florenzano. Conheci-o dois anos antes no CPOR, servindo na arma de Infantaria, quando ele fora encarregado de editar uma revista com textos dos futuros oficiais da reserva. Tive, inclusive, um conto publicado. O reencontro se deu em 1958, no Diário do Paraná, o melhor do estado, já então com seu visual gráfico no encalço da revolução provocada pelo Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro,
Entre uma e outra folga como diagramador, Zola, fascinado pelo arejamento espacial do matutino carioca, “brincava” em dar cara de JB àquelas páginas, ainda que “modernas” para a época, do nosso DP. Mas, perto do JB, dizia, “todos os outros se parecem com o Diário Oficial”.
Páginas, revistas e suplementos literários sempre foram verdadeiras usinas de talentos e uma saudável tradição da imprensa brasileira desde o século XIX. Existiam e subsistiram a duras penas em várias capitais (além do eixo Rio-São Paulo), como Fortaleza, Recife, Belo Horizonte, Curitiba, Florianópolis (da revista Sul, que líamos) e Porto Alegre, e em algumas cidades do interior (como Cataguases, em Minas Gerais, da revista Verde, lançada em 1928 e contemporânea ao cineasta Humberto Mauro). De lá, alavancavam as novidades poético-literárias regionais.
Em meados de 1959, três anos depois de ininterrupto sucesso do Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, o SDJB, num lance de ousadia, amadurecido com a cumplicidade de Zola, propus que se transformasse o conteúdo e a gráfica da página literária do Diário do Paraná. Para nossa surpresa, a ideia emplacou. Nessa época, o que se editava sobre poesia, teatro, literatura, música e cinema era desconectado da cultura curitibana e brasileira — e de olho viciado na Europa. Quando a direção do jornal deu sinal verde a que se pensasse numa nova página, incluindo a diagramação, fui indicado para, além de produzir um texto semanal, assumir a direção.
Nascia em 23 de agosto de 1959, o novo “letras e/& artes” (às vezes, a logomarca saía com “e”, outras, com “&”), cuja formatação e equipe de articulistas iam na contramão editorial do próprio Diário do Paraná. O que confundia a direção do matutino e os seus leitores era o tônus polêmico do “letras e/& artes”, sempre privilegiando a temperatura artística da capital e do estado. Criadores de todos os matizes tinham guarida para suas criaturas, o que, muitas vezes, conflagrava irremediavelmente o engessado e paroquial panorama cultural paranaense, máxime, o curitibano.
Pauta aberta
"letras e/& artes" girava em torno de uma pauta aberta e multifacetária, sem viés político ou ideológico, nem se perfilava a qualquer escola de artes plásticas ou era refém de autores e/ou de guetos artísticos e culturais. Não raro, o tônus dos textos provocava furibundas reações de parte da academia curitibana, quase toda ela de corte autofágico, incapaz de acreditar nos inventores à sua volta. Isso quando não pregava a extinção pura e simples do suplemento.
Essa independência é patente na replicação fac-similar do "letras e/& artes", lançada meio século depois, como um premonitório retrato libertário da década de ferro e brasa que se anunciava na cúspide dos anos 60. Havia nas colaborações uma "fúria do bem" até então nunca vista ou lida em Curitiba, tudo eivado de uma urgência e pertinência a toda prova.
Nem por isso a editoria foi censurada pela direção do Diário do Paraná, onde o suplemento era encartado aos domingos com uma plataforma gráfico visual que destoava do resto da diagramação pelos tipos enviesados, espaços em branco e macroilustrações. Jamais fui admoestado por ter dado passagem a algum texto polêmico, ou mesmo instado a cortar essa ou aquela matéria, ou a publicar artigo não solicitado. Tínhamos absoluta liberdade temática, de expressão e opinião, fato que estimulava os articulistas, de variados extratos artístico-culturais e políticos, a que "levantassem voo" em suas críticas e diatribes.
Também havia entre nós, editor e colaboradores (que chegaram a ser mais de 50), um princípio tácito: nada de tentar acertar contas com o passado ou com o pretérito recente de intelectuais, artistas ou instituições públicas e privadas. A meta da editoria consistia em motivar, incendiar e fazer valer a produção e as contradições do presente. Tudo pelo prazer de ficcionar e poetar, de instigar o debate e o dissenso, de espanar o déjà vu et lu e anunciar o belo e o eterno. Por isso, "letras e/& artes", com ambos os pés fincados tanto na tradição quanto no contemporâneo, acabou se constituindo num divisor de águas na vida artística e acadêmica do Paraná a partir de então.
Nesse diapasão, talvez a principal polêmica tenha ocorrido em torno das diversas concepções político ideológicas do existencialismo. E, justamente, coincidindo com o auge das controvérsias na Europa e com a histórica viagem de Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir ao Brasil (agosto de 1960), convidados pelo crítico e ensaísta, hoje membro da Academia Brasileira de Letras, Eduardo Portella, editor da antológica revista-livro Dimensões, que líamos e admirávamos. Alguns de nós tentamos trazer o casal a Curitiba, mas, por não ter sido a viagem planejada com antecedência, o projeto acabou não vingando.
Com essa amperagem, as edições do suplemento “letras e/& artes" eram avidamente lidas pelos colaboradores, claro, inclusive, por mim, que ficava lambendo a cria, ainda de madrugada, na boca da rotativa. Compartilhávamos da alegria dos gráficos que se dedicavam à página quase autoralmente, desde a transcrição e correção dos textos na linotipo até a sua impecável impressão. Com os dedos borrados de tinta fresca, as discussões começavam ali mesmo – na redação, nos bares e restaurantes da moda – e seguiam até o amanhecer do domingo, repercutindo depois na cidade pela semana a fora.
Morte prematura
Ironicamente, a prematura "morte" de "letras e/& artes" não ocorreu devido à sua vocação de irreverência e iconoclastia. Mas, sim, a uma inesperada demissão do Diário do Paraná, justamente por eu ser um dos líderes, com o escritor Valêncio Xavier (1933-2008), de uma greve por melhoria salarial na então TV Paraná, também dos Diários Associados. O golpe foi, pessoalmente, devastador, pois recém me iniciara como diretor de TV, então, meu batismo de fogo no audiovisual.
Durante 20 meses, ininterruptamente, 94 edições vieram a lume entre agosto de 1959 e março de 1961. Sua atual republicação ressoa como enfática rasteira no oblívio moral a que o suplemento ficou relegado, quando não esquecido, durante cinco décadas, pela Curitiba acadêmica, majoritariamente, de corte "chapa branca" e de tristes antolhos para o seu (nosso) passado.
É difícil hoje, meio século depois de sua contundente presença editorial na cidade e no estado, avaliar a influência e as consequências que "letras e/& artes" teve no porvir da cultura paranaense a partir de sua fulminante aparição, circulação e fruição. Muitos colaboradores embrenharam-se com sucesso no jornalismo, política, Direito, pintura, poesia, medicina, administração pública, teatro, academia, literatura, cinema (infelizmente, apenas eu!), etc., semeando um inexcedível testemunho de uma frenética busca pelo intangível que dava sentido às suas criações e à própria vida.
Quem sabe a edição fac-similar de nosso estro da juventude simbolize que a pátina do tempo não passa de uma miragem que jamais se desvanecerá, simplesmente, porque já é imortal.
Ilustração de Manoel Furtado para o suplemento
(*) Entre outros, compareciam com assiduidade, Adherbal Fortes de Sá Jr., Alberto Massuda, Antenor Pupo, Assad Amadeu, Carlos Varassin, Cecy Cabral Gomes, Celina Silveira Luz, Edésio Franco Passos, Ênnio Marques Ferreira, Ernani Reichmann, Erwin Hromada, Fernando Pessoa Ferreira, Francisco Bettega Netto, Gilberto Ricardo dos Santos, Glauco Flores de Sá Brito, Heitor Saldanha, Helena Wong, Hélio de Freitas Puglielli, Yvelise Araújo, Jairo Régis, Luiz Carlos de Andrade Lima, Luiz Geraldo Mazza, Manoel Furtado, Mario de Andrade, Mário Maranhão, Mauri Furtado, Nelson Padrella, Oscar Milton Volpini, Paul Garfunkel, Paulo Gnecco, Pedro Geraldo Escosteguy, Regina de Andrade, René Bittencourt, René Dotti, Roberto Muggiati, Sebastião França, Vicente Moliterno e Walmor Marcelino.
Sylvio Back é cineasta, poeta, roteirista e escritor. Dirigiu 38 filmes, entre curtas, médias e longas-metragens, incluindo o recente O Universo Graciliano (2013). Publicou 21 livros, entre poesia, contos, ensaios e roteiros cinematográficos. Recebeu 76 prêmios nacionais e internacionais.