Helena #4: Conheça a história do padre mais rock n' roll do Paraná 08/01/2014 - 11:50

Pároco da bucólica Porto Vitória, cidade com pouco mais de 4 mil habitantes no Sul do Paraná, Emilio Bortolini já gravou seis discos de folk rock e andou por algumas cidades do mundo atrás de artistas como Neil Young, Bob Dylan e U2

Luiz Rebinski Junior


Elaine Schmitt
Histórias sobre epifanias e chamados divinos que explicam a devoção de padres, monges, freiras e santos são comuns no meio religioso. Menos corriqueiro é ouvir que George Harrison, o ex-Beatle, foi a inspiração para que um adolescente decidisse servir a Deus.

No começo dos anos 1990, Emilio Bortolini era um garoto de União da Vitória (cidade a 230 quilômetros de Curitiba, no extremo Sul do estado) que se interessava por temas ecológicos. Mas, ao contrário do que esperava sua família, ele resolveu que não seria engenheiro florestal — e, sim, padre.

Quando ainda tinha 15 anos, Emilio comprou o álbum Somewhere in England, de George Harrison, e sua vida definitivamente mudou. Músicas como “Life It Self” soavam como verdadeiras declarações de amor a Deus. Outras, como “That Which I Have Lost” e “Writings on the Wall”, falavam de experiências místicas.

“Essas canções me deram uma espécie de intuição, a mesma que Foucauld teve certa vez: 'Se existe um Deus, não posso viver senão em função dele'”, diz o hoje padre Emílio, citando o pensador e religioso francês Charles de Foucauld, que o ajudou a verbalizar seu sentimento na época.

“É claro que eu tinha uma base religiosa muito sólida e profunda, que possibilitou que as letras do George ecoassem dentro de mim com tamanha força. Tenho um tio padre e outro que é irmão Marista, mas o que despertou a vontade de me dedicar à religião foi mesmo o George”, explica o parananense de União, que aos 38 anos já acumula uma década e meia como padre.

Desde a já distante primeira audição de Somewhere in England, música e religião nunca mais saíram de sua vida. Em fevereiro de 1991, quando cursaria o terceiro ano do Ensino Médio, Emilio entrou para o seminário. Estudou Filosofia e Teologia durante seis anos até ser ordenado diácono (último estágio antes da ordenação prebisterial) no dia 24 de maio de 1997 — data e mês de nascimento de Bob Dylan, como costuma frisar.

Quando terminou o curso de Teologia, ainda tinha 22 anos e não poderia ser ordenado padre, pois a idade mínima é 25 anos. O bispo Dom Walter Michael Ebejer, na época bispo diocesano, pediu dispensa dessa regra, mas a Santa Sé não concedeu. Foi autorizado, no entanto, que Emilio fosse ordenado quando completasse 24 anos.

Em 1999, o jovem padre assumiu a paróquia de Paulo Frontin (município de 7 mil habitantes a 40 quilômetros de União da Vitória), onde ficou durante sete anos. Depois, esteve em São João do Trinfo, estudou em Roma e trabalhou em Dublin. Até que chegou a Porto Vitória, cidade de colonização alemã com pouco mais de 4 mil habitantes, onde é o pároco responsável há pouco mais de um ano. “Costumo dizer que nós, padres diocesanos, que cuidamos de paróquia, é que somos os Rolling Stones, pois estamos sempre rolando por aí”.

Shows e discoteca básica


Ao lado de George Harrison, Bob Dylan figura em lugar de destaque no altar do padre Emílio como um dos grandes heróis do rock. Assim como ex-Beatle, Dylan também tem uma relação estreita com a religião.

Após um período de grandes álbuns, entre os anos 1960 e 1970, quando gravou clássicos como Highway 61 Revisited (1965), Blonde on Blonde (1966) e Blood on the Tracks (1975), Dylan, que é judeu, converteu-se ao cristianismo e fez três discos com músicas de cunho religioso e místico. O resultado não foi dos melhores, e os álbuns da chamada “fase cristã”, lançados entre 1979 e 1981, coincidiram com um período de pouca valorização do artista, hoje já convertido em uma lenda do rock.

Quando o nome de Dylan ecoa, Emilio dispara seu conhecimento enciclopédico sobre um personagem que domina. Costuma citar de cabeça trechos de músicas do bardo americano e fazer análises sociológicas de composições mais obscuras do cantor, como “I Believe in You”, gravada em Slow Train Coming, um de seus álbuns pouco valorizados pela crítica.

Emilia Schmitt


“O George foi o cara que melhor conciliou a linguagem do rock com o pensamento religioso. Já o Dylan, quando deixou o judaísmo para aderir ao cristianismo, saiu querendo converter todo mundo. E a arte que fala apenas para iniciados é medíocre”, opina.

Fã de outros rockers bem menos religiosos, como o recém-falecido Lou Reed e Eric Clapton, o padre nunca viu problema em apreciar um tipo de música historicamente identificada com o lado mundano — ou profano — da vida. “Quando chego a uma paróquia, não saio dizendo que sou um padre roqueiro. As pessoas vão me conhecendo aos poucos”.

Discretamente, padre Emilio costuma pegar a estrada para ver alguns ídolos. Já foi a shows de Bob Dylan (em Roma, com Mark Knopfler, do Dire Straits, na guitarra), R.E.M., Lou Reed, Joe Satriani, Chuck Berry, Paul McCartney, Ringo Starr, B.B. King, Nuno Mindelis (com a participação do Double Trouble, que tocou com o Stevie Ray Vaughan). Em Dublin, assistiu a apresentações do U2, Bruce Springsteen, Neil Young, Eagles e Horslips.

Em 2004, quando soube que o Jethro Tull se apresentaria em Porto Alegre, rumou para a capital gaúcha mesmo sabendo que os ingressos haviam se esgotado. “Fui na esperança de comprar a entrada de alguém no lado de fora do local do show. Abordei mais de 30 pessoas e cheguei a oferecer R$ 500 pelo ingresso. No final, quando já achava que teria de ir embora, consegui uma entrada, pagando um preço justo”.

Mas o suprassumo do rock, para Emilio, está em uma banda que uniu seus dois maiores ídolos. O grupo Traveling Wilburys foi um projeto despretensioso capitaneado por George Harrison e que reuniu, além do ex-Beatle, Bob Dylan, Tom Petty, Roy Orbison e Jeff Lyne. O grupo gravou apenas dois discos e nunca se apresentou ao vivo. Na opinião do pároco, Traveling Wilburys Vol.1 é o melhor disco simples da história do rock. Só não supera All Things Must Pass, de Harrison, porque se trata de um disco triplo. “O conceito dos Wilburys é o meu ideal de som. Ali, são apenas cinco amigos querendo tocar e se divertir”, diz.

Carreira musical 


De origem italiana, a família Bortolini, além da tradição religiosa, também tem uma linhagem de músicos. Raulino, pai do padre Emílio, foi maestro da Banda Municipal Emílio Tabuada, de União da Vitória, durante 30 anos, e é o autor do hino da cidade. Até hoje, recebe homenagens pelo trabalho desenvolvido como músico e professor de Geografia, disciplina que lecionou em colégios e universidades da região.

Sua paixão pela m
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úsica foi transmitida aos filhos. O irmão mais novo de Emilio, Ernani, hoje advogado, tocava sax e piano e era considerado um talento musical precoce. Aos 9 anos, já possuía carteirinha de músico profissional. Emilio, no entanto, só se interrou em aprender música quando entrou no seminário. “Sou um caso raro de músico que aprendeu a tocar após os 20 anos”.

Apesar de ter sido criado sob a influência da música clássica que o pai tanto amava, o padre não se inspirava em Bach e Mahler a ponto de querer fazer algo parecido. Mas quando um colega do seminário o instigou a aprender a tocar violão, o rock mais uma vez surgiu como força inspiradora.

De 1997 a 2006, Emílio gravou seis discos com a Trinitati, espécie de projeto de um homem só que formou para dar vazão às composições que vinha acumulando desde que começou a tocar. Apesar de contar com a colaboração de músicos experientes de União da Vitória, o grupo só se encontrava para gravar. Emilio passava o ano todo compondo e, quando sentia que as músicas estavam prontas, ia para o estúdio com a banda. Os discos saiam em tiragens minúsculas, de 50 ou 100 cópias, e eram distribuídos a amigos. Do cachê dos músicos à prensagem dos CDs, tudo era pago do próprio bolso.

Ao contrário de colegas que venderam milhares de discos ao rebanho de católicos, Emílio mais uma vez preferiu a discrição. Álbuns intitulados como O Senhor Está no Meio de Nós, Ele Ressuscitou e Glória a Deus e Paz aos Homens, gravados pela Trinitati, possivelmente despertariam interesse nos fiéis do padre-cantor. Mas, nesse caso, o artista preferiu um plano de marketing à maneira dos Traveling Wilburys — uma espécie de auto-sabotagem calculada. “Nunca quis me aproveitar da minha condição de padre para vender discos. Até porque, certamente, não é o tipo de música que as pessoas das comunidades em que trabalhei iriam gostar”.

Apesar da temática religiosa, as canções de padre Emilio são definidas em sua página no site de compartilhamento de músicas SounCloud, como folk. Muitas das composições, ainda que carregadas de erudição teológica, trazem um tom existencialista que transcende ao estritamente religioso. “Stranger”, uma de suas letras mais recentes, diz: “Eu sou um estrangeiro, não importa onde esteja/ Porque eu sou um estrangeiro, um estrangeiro numa terra estranha/ Sou um estrangeiro, não importa onde eu vá/ Sou um estrangeiro, não tenho uma mão para segurar”.

Composta por um padre fã de rock, seria uma letra autobiográfica? “Sim, às vezes me sinto um pouco estrangeiro, porque quase nunca falo sobre questões da igreja com meus amigos da música. E com meus colegas padres, dificilmente consigo conversar sobre os artistas que admiro, pois a maioria tem um gosto musical diferente”.

Padre Emilio diz já ter composto perto de 600 canções. Com exceção das músicas gravadas em estúdio com a Trinitati, quase toda sua produção é registrada em um pequeno estúdio caseiro que um padre irlandês lhe enviou de presente. Tudo feito em um escritório na casa paroquial, recheado de livros e instrumentos musicais.


Santo irlandês


Em 2009, Emilio arrumou as malas e foi para Roma, onde fez mestrado defendendo dissertação sobre São Patrício, santo que viveu entre os anos 387 e 461, na Irlanda. Obscura mesmo para os teólogos de Roma, a vida de São Patrício rendeu ao religioso um diploma com comentários de louvor. “Meus orientadores, no início, queriam me convencer a desistir do tema, pois era um assunto com pouca fonte. Mas insisti e no final eles me agradeceram por eu ter apresentado a história de Patrício a eles”.

A escolha por um tema irlandês não foi mero acaso. A Irlanda é a terra de alguns dos cantores preferidos do padre paranaense, como Van Morrison, autor do clássico “Gloria”, e Bono Vox, do U2. Mais uma vez o rock interferia em sua trajetória. Aproveitando o recesso da universidade em que estudava em Roma, Emilio rumou em 2009 para Dublin, onde sua irmã morava.

Na capital irlandesa, trabalhou em uma paróquia e, nos períodos de folga, frequentava pubs, onde vez ou outra dava canjas com a guitarra que comprou na cidade. “Em Dublin, há bares que têm música ao vivo das duas da tarde até a meia-noite”, diz entusiasmado o padre, que voltou de seu período irlandês com novas referências musicais (como a banda Waterboys, que mistura folk rock com música tradicional irlandesa).

Foi durante uma dessas incursões aos porões de Dublin que conheceu o casal de americanos Lonnie e Nikki Fowler, de quem ficou amigo. Já no Brasil, tempos depois, Emilio recebeu um e-mail de Lonnie, dizendo que iria se casar em Dublin e convidando o amigo brasileiro a rezar a missa. “Eles me mandaram a passagem e eu fui. O mais legal é que os dois haviam se conhecido na infância e eram grandes amigos. Mas acabaram indo para lados opostos. Décadas depois, ambos viúvos, se reencontraram. Começaram a namorar e resolveram casar, já na maturidade”.

A Irlanda continua na rota do padre Emilio. Seu mais recente projeto musical é uma ópera-rock sobre São Patrício, o santo que estudou no mestrado em Roma. Ao estilo de Tommy, o clássico álbum do grupo inglês The Who (que conta a trágica história de Tommy Walker, um garoto cego que se torna um mestre do pinball), o disco vai repassar o percurso de Patrício por meio de canções temáticas. O objetivo é lançar o álbum em Dublin.


Um padre no porão

Antes de frequentar pubs em Dublin nos anos 2000, padre Emilio era assíduo de outro santuário do rock. Desde 1990 na ativa, a loja Porão Discos já se tornou uma instituição em União da Vitória. Em 23 anos de existência, resistiu à concorrência de grandes redes, à derrocada da indústria do disco e ao download.

Seu proprietário, Osmar Wolff (na foto abaixo), é um aficionado por música ao estilo de Barry, o personagem do romance Alta Fidelidade (de Nick Hornby) que tem tanto apego aos discos da loja em que trabalha que se recusa a vender certos álbuns. Foi nesse pequeno templo da música barulhenta que o padre Emilio se formou musicalmente. “Lembro que passei em frente da loja quando o Osmar ainda estava colocando os móveis. Ele me convidou para voltar assim que estivesse tudo pronto”.

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porão discos


Emílio, desde então, nunca mais parou de voltar. A loja é uma espécie de confraria de roqueiros, e o padre é um dos mais assíduos do grupo. “Adorava quando o Emílio fazia aniversário, porque todos os fiéis queriam lhe dar discos. Além disso, ele deixou um rastro de seguidores de rock que vivaram meus clientes”, conta Osmar.

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