Helena #3: Uma consulta com a Dra. Nitis 16/12/2013 - 10:00

Saiba como vive hoje a psiquiatra, diretora e atriz Nitis Jacon, responsável pela criação, há 45 anos, do Festival Internacional de Londrina (Filo)

Alexandre Gaioto

"Você tem certeza absoluta de que a Nitis Jacon mora aqui na minha cidade?", indaga-me, surpresa, uma jornalista de Arapongas. "Se não me engano, ela vive em Londrina", arrisca um repórter londrinense. "Em Londrina? Não... Ela está no interior de São Paulo, muito bem casada com um médico", garante um editor de cultura de Maringá. Inimiga dos reclusos, a internet indica que o grande nome do teatro londrinense está, sim, perambulando por Arapongas, trabalhando por lá como psiquiatra, numa clínica particular. "A Dra. Nitis vem à clínica duas vezes por semana. Você quer marcar uma consulta?", oferece a secretária.

Com horário marcado para consultar a vida de Nitis, sigo para Arapongas. Antes do encontro, saio às ruas para coletar algumas histórias sobre a famosa moradora da cidade. A duas quadras de onde a psiquiatra bate cartão semanalmente, seu nome é desconhecido para transeuntes, balconistas e estudantes. "Nitis o quê? Nunca ouvi falar dela", diz uma estudante de 15 anos. "Acho que já ouvi falar alguma coisa, talvez no jornal, mas não lembro o quê. Ela é famosa?", pergunta a comerciante de 34 anos. Os poucos que sabem quem é Nitis Jacon revelam que não a encontram há anos pelas redondezas. "Morei durante uns dois anos ao lado da casa dela e só a vi três vezes. Ela tem uma casa grande, com muros altos, não dá para ver nada do que acontece lá dentro", comenta a ex-vizinha, que, aos 55 anos, trabalha como auxiliar administrativa.

Pontual, Nitis me recebe às 17 horas em sua clínica. Vestindo um terno cinza, com os cabelos vermelhos e olhos intensos, ela abre um sorriso ao me abordar na sala de espera. "Eu te conheço de algum lugar. Será que é de algum filme que você fez?", indaga, estendendo a mão. A pedido dela, seguimos de carro para a sua residência, a poucos quarteirões da clínica. E entramos numa confortável biblioteca, apinhada de livros sobre medicina e teatro, além de obras de Vinicius de Moraes, Federico García Lorca e Thiago de Mello. Reclusão, ali? Nenhuma.

"Eu não estou reclusa, não", descarta, em meio a risos. "É que eu vivo entre o trabalho e a minha casa, então as pessoas aqui de Arapongas não me vêem com frequência. Amanhã, por exemplo, terei plantão o dia inteiro, de tarde até à noite", justifica.

Além da jornada de plantões, o corre-corre de Nitis fica ainda mais intenso, nesta época do ano, com a série de reuniões do Festival Internacional de Londrina (Filo). Oficialmente, ela não está na comissão organizadora desde 2003, quando assumiu por três anos a direção do Centro Cultural Teatro Guaíra, em Curitiba. "Mas, na verdade, eu nunca me desliguei do Filo. Desde que eu criei o festival até os dias de hoje ainda é muito difícil realizá-lo, sempre temos muito problemas", diz a diretora teatral e psiquiatra de 78 anos, também ex-vice-reitora da Universidade de Lodrina.

As dificuldades, que sempre marcaram o Filo em seus 45 anos de história, são de todos os gêneros e graus: do itinerário de uma companhia russa "que tinha de desembarcar primeiro no Paraguai e depois seguir, escondida, para Londrina" à falta de verba para a realização do evento.

Quando a conta não fechava, ela corria para os jornais e pressionava o governo, Deus e o mundo. Aquele despretensioso Festival de Teatro de Londrina, inicialmente batizado assim em 1968, teve seu nome alterado para Filo com o passar dos anos e hoje é uma referência, reconhecido pela Unesco como o mais antigo e representativo festival de teatro da América Latina. Sem Nitis, não haveria a enxurrada de bons espetáculos que marcaram a vida cultural de Londrina e região.

Entre as muitas proezas do festival, a que Nitis mais se orgulha, e com razão, é de ter trazido Kazuo Ohno (morto em 2010, aos 103 anos) do Japão para Londrina, em 1992. Ícone do butô, gênero que mescla elementos da dança com a tradição japoensa, Ohno apresentou dois espetáculos, aos 86 anos de idade: Water Lilies (Lírios d'Água) e Ka Cho Fu Getsu (Flores, Pássaros, Vento, Lua).

"Foi a maior salva de palmas da história do teatro londrinense. Nunca vi nada igual", lembra Nitis. Nas noites de 24 e 25 de junho daquele ano, o público que se engalfinhava no Teatro Ouro Verde reverenciou, com fervor, o ícone oriental. Kazuo retornou ao palco 15 vezes, enquanto todos prestavam suas reverências. O filho do artista teve de intervir na ovação da platéia, justificando que seu pai precisava descansar da performance, e que se os aplausos não cessassem, ele continuaria a voltar para agradecer a platéia. Banhado em lágrimas, o rosto de Nitis acompanhou Kazuo saindo finalmente de cena, com um sorriso sincero e alguns acenos delicados.

Foto: Saulo Haruo Ohara
Duas calcinhas e uma escova de dentes
"Quando eu saía de casa, sempre levava na bolsa duas calcinhas e uma escova de dentes", lembra Nitis, com uma boa gargalhada. Sob os olhares repressores da censura, a diretora teatral poderia ser presa a qualquer momento, porém nunca se calou. "Eu era vigiada o tempo inteiro por agentes da Polícia Federal, mas nunca tive medo deles", comenta.

À frente dos grupos teatrais Gruta, Núcleo e o Proteu, ela produziu peças engajadas e revolucionárias para um público fiel. Era só anunciar um novo espetáculo que o público e os críticos de teatro, de diversos lugares do Brasil, já ficavam ansiosos. "Tínhamos certeza, no caderno de cultura da Folha de Londrina, que vinha outra peça boa pela frente", lembra o jornalista londrinense Antonio Mariano Junior. "Era uma coisa impressionante. Todo o público do Festival de Teatro em São José do Rio Preto, aguardava, anualmente, as estreias da Nitis", recorda o jornalista paulistano Jary Mércio.

Subversivo, o teatro de Nitis era um soco no estômago dos censores, um grito dissonante de liberdade e democracia. Por isso, incomodava para valer. "Às vezes, os censores chegavam para assistir às peças, e era uma correria tremenda. Nós tínhamos de improvisar um novo texto, e o que inicialmente era uma crítica, virava uma piada. O público que nos acompanhava achava aquilo tudo engraçado, já que a maioria dos censores londrinenses era incompetente e não entendia nada do que estávamos fazendo", recorda.

Na peça Arena Conta Zumbi, as críticas eram ainda mais explícitas. Frases como "General bacana, general batuta, general, você é um filho da puta" deixavam claro a intenção de Nitis. Encenada até no exterior, a peça teve a estreia proibida em Londrina, mesmo com o texto previamente liberado pelos censores. "A polícia simplesmente fechou as portas do teatro. O público vaiou, e muito, a ação deles. Eu tentei explicar, disse que estávamos autorizados a encenar a peça, mas não adiantou nada. Todos os atores deixaram o teatro chorando, menos eu. Eu estava furiosa demais para conseguir chorar", lembra.

Se abrir as portas do teatro, mesmo com autorização, não impedia a polícia de fechá-las, o jeito era já iniciar o espetáculo com as portas fechadas. Foi assim que Nitis resolveu levar o texto inédito de Chico Buarque e Ruy Guerra, Calabar, O Elogio da Traição, para o palco londrinense. Proibida no Rio de Janeiro, a peça podia ser encenada em Londrina, desde que fosse a portas cerradas. Após ter acesso ao texto, Nitis ensaiou o espetáculo com seus atores e lotou, no boca-a-boca, o teatro Ouro Verde.

"Às sete horas da noite, o teatro estava lotado. Foi a primeira vez que Calabar, com o texto original, foi encenada no Brasil. Se eu não me engano, fizemos apenas uma sessão. Depois de alguns anos, o Chico Buarque e o Ruy Guerra até conseguiram autorização para o espetáculo, mas tiveram de fazer uma série de mudanças no texto original", comenta. Ao encenar Calabar na calada da noite, Nitis foi reconhecida por Chico Buarque. "Ele soube e gostou do que nós fizemos. Depois, nós nos conhecemos e o Chico até veio jogar futebol com o meu marido, aqui em Londrina", comenta.

Na década de 1970, quando a censura apertou para o lado dela, Nitis achou que seria finalmente presa. "Hoje, penso nos textos que eu fiz e sei que aquilo foi uma loucura. Eu tinha certeza de que iria ser presa, então peguei meu marido, meus filhos e saímos viajando pela América do Sul, onde fiz contatos com grupos teatrais bolivianos e peruanos. Passamos, ainda, uma temporada na Inglaterra", conta.

Do outro lado da rua
Enquanto Nitis tenta encontrar a edição de Calabar numa das pratelerias da biblioteca, vai falando sobre seu dom de fazer amigos. E de como estabeleceu fortes amizades até mesmo com seus censores dos anos de chumbo. "Quando a ditadura acabou, continuei amiga de um censor de Londrina. Era um homem muito inteligente e muito bonito. Nossa amizade durou anos", revela. Enquanto ela relembra a imprevisível amizade, preparo a pergunta sobre o escritor londrinense Domingos Pellegrini. Dizem as más línguas que ela e o talentoso autor de Terra Vermelha não se bicam de forma alguma. Admirada e amada por figurões da cultura paranaense, Nitis, então, é mulher de um só inimigo eterno?

Sem abrir mão do riso, ela ironiza: "Ah, ele nem é tão importante assim para ser meu inimigo", diz. Mas ela concorda, não troca uma palavra com o autor londrinense há um bom tempo e já chegou a mudar de rua, enquanto caminhava em Londrina, só para não ter de passar ao lado dele. "Reconheço que ele é inteligente e tem bons livros, embora eu nunca tenha tido interesse em ler qualquer um deles. O Domingos escreveu várias críticas dizendo que meu trabalho era uma porcaria. Ó, elas estão todas ali, no meu acervo de matérias. Num determinado momento, percebi que ele não estava falando apenas das minhas peças, mas estava me ofendendo também, dizendo que eu era incapaz de preparar meus atores", diz.

A postura de Pellegrini na Folha de Londrina, segundo Nitis, era radicalmente diferente da postura que ela adotava ao comentar os espetáculos de outros artistas. "Eu jamais faria como ele. Nunca escrevi uma crítica falando mal de uma peça que não gostei. Se estava ruim, eu chegava no diretor, nos atores, e conversava, incentivava algumas mudanças. No jornal, só escrevia sobre o que havia me agradado", diz. Mais tarde, Pellegrini enviou-me um e-mail conciso, porém cordial, recusando-se a comentar a relação com sua rival do mundo do teatro: "Nada tenho a dizer sobre Nitis", escreveu o autor londrinense, vencedor de seis prêmios Jabuti.

Com a campainha insistente, Nitis se levanta da cadeira e vai atender quem bate à porta. E já que entramos no delicado tema das críticas, preparo o próximo tema espinhoso. Antes de tocar para Arapongas, um rápido dedo de prosa com os londrinenses Mário Bortolotto e Márcio Américo revelou a admiração de ambos por Nitis e uma crítica em comum às ultimas edições do Filo.

"Estou voltando ao Filo neste ano, com Mulheres do Bukowski. Mas perdi totalmente o contato com o festival, não sei mais como está. Nos anos 1980, quando eu era jovem, o Filo era fodido. Desde que a Nitis dixou o festival, nunca mais recebi um convite para me apresentar lá", reclamou Bortolotto.

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Para Márcio Américo, o Filo teria fechado os olhos aos talentos londrinenses e privilegiado apenas os nomes gringos em suas programações desde que Nitis deixou a organização do festival. "Eu, o Mário Bortolotto e mais alguns nomes do teatro londrinense, que somos conhecidos nacionalmente, não recebemos convites para ir ao Filo. Isso é no mínimo estranho. A ideia da Nitis, o objetivo inicial do Filo, era difundir, em primeiro lugar, a cidade. Depois o Paraná, o País e só então o mundo. Mas parece que as coisas mudaram. Os profissionais da cidade estão sem espaço", critica.

O jornalista Paulo Briguet, de Londrina, rechaçou o suposto ostracismo sofrido por Mário Bortolotto e o desinteresse do Filo pelas atrações locais. "Eu já assisti a várias peças do Bortolotto no Filo, boas e ruins. Do Márcio Américo, nunca vi nada, e lamento que ele não tenha espaço. Mas eu me lembro de ter visto dezenas de peças locais durante o festival, e a Nitis não estava mais na direção, já era o Luiz Bertipaglia. Quando eu escrevia o catálogo do Filo, entre 2000 e 2005, fiz inúmeras resenhas de espetáculos londrinenses na programação do festival. O Mário e o Márcio são ótimas pessoas, bons escritores, mas adoram reclamar", diz Briguet.

E vou resumindo essas declarações para Nitis, que acaba de voltar à biblioteca, sentando-se na poltrona ao meu lado. "Então, Nitis, o Filo deixou de dar espaço aos artistas londrinenses?", indago. Cuidadosa, a resposta vem pela primeira vez aos solavancos, em frases milimetricamente pronunciadas. "Talvez... Talvez o Bortolotto e esse outro Márcio tenham razão. Talvez, por alguma circunstância, talvez pela falta de conhecimento no início do festival, o Luiz Bertipaglia e os outros meninos da organização tenham feito isso mesmo. Mas eu já não podia determinar a programação. O Bortolotto, acho que ele não gosta de mim, mas ele é incrível, é um grande diretor. Gosto muito das peças dele. Agora, esse Márcio Américo eu sinceramente nunca ouvi falar", comenta.

Nitis não é capaz de dirigir o próprio carro desde que caiu de uma escada e quebrou a clavícula. Para ir à clínica e participar das reuniões do Filo, conta com a ajuda de uma governanta, que assume o volante de seu automóvel. Seu marido morreu no ano passado, em decorrência de um câncer. Dos três filhos, um dirige uma companhia de dança na Alemanha, outro é agricultor perto de Arapongas e a outra é antropóloga no Rio de Janeiro. Extremamente lúcida, ela responde rapidamente e sem hesitações a todas as perguntas, como se o teatro abastecesse seus ânimos e sua alma. Confude-se só ao tentar lembrar datas, nomes de peças ou de seus próprios grupos teatrais. Quem bater à porta de Nitis em busca do número de quantos espetáculos ela dirigiu, escreveu e atuou em toda a sua vida, sairá de mãos vazias. "Foi muita coisa. Ninguém nunca fez esse levantamento. Para piorar, minha memória me trapaceia sempre", comenta.

"E por que você nunca levou para os palcos a literatura de Dalton Trevisan?", questiono. "Ah, o Dalton tem uns livros muito bons, mas eu sempre privilegiei os autores com textos políticos. Fiquei amiga de Dalton durante minha temporada em Curitiba, tivemos um relacionamento superficial. Sabe o que eu achei dele? Achei o Dalton muito bonito", revela.

Sugiro, já encerrando a conversa, uma compilação de seus textos num livro. "Passaria fácil pela Lei Rouanet", eu digo. "Eu sei que passaria, eu sei. Difícil é tempo para fazer isso. Se você quiser, pode fazer, os textos estão todos aí ao seu lado", diz, apontando para as caixas no chão da biblioteca. Falo que alguns jornalistas me disseram que ela deveria ser homenageada com um teatro municipal em Londrina e lembro que um outro jornalista prefere que ela seja recepcionada com uma grande homenagem em São José do Rio Preto. Nitis dá uma boa risada disso tudo.

O que ela quer, mesmo, é escrever uma peça inédita no próximo ano. De vez em quando, na frente do computador, ela começa a traçar diálogos, ideias, rascunhos que ainda não desembocaram em lugar algum, mas que funcionam como uma terapia literária. "Não consigo prever como será. Mas sinto que virá uma nova peça pela frente", anuncia. E, se vier, será certamente para provocar. "Essa é a função do teatro. Provocar a raiva, o amor, iluminar a inteligência".

Na despedida, ajudo Nitis a descer os três lances de escada de sua casa. Noto que a piscina está vazia, faz tempo que alguém não mergulha por lá. Ela me dá um beijo, agradece a visita, fala que foi tudo muito bom. Na rua Bentevi, no centro de Arapongas, digo adeus, pela última vez, ao teatro londrinense. E saio sem pagar a consulta com a Dra. Nitis.

Fotos: Saulo Haruo Ohara
Reportagem originalmente publicado na terceira edição da revista Helena. Todas as edições da revista Helena estão disponíveis online em: http://issuu.com/revistahelena

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