Helena #3: Monte Alegre 04/11/2013 - 14:30
Americano de origem portuguesa, o escritor John Dos Passos (1896-1970) visitou o Brasil três vezes, em busca de suas raízes. Esteve no país em 1948, 1958 e 1963 registrando um período de grandes transformações. Seus relatos de viagem foram reunidos em um livro, publicado originalmente em 1963, e reeditado agora com o título de Brasil em Movimento (Editora Benvirá). No texto a seguir, ele narra sua passagem por Curitiba, no fim da década de 1950.
Quando você se dirige para o noroeste a partir de Curitiba, capital do Paraná, através dessas belas regiões do estado, chega depois de quatro ou cinco horas a uma região densamente coberta por coníferas. Conhecida como pinheiro-do-paraná, uma conífera que é na verdade uma espécie de araucária que se parece com um “pinheiro-manso” da Califórnia, dá um destaque especial às montanhas íngremes e aos vales ondulados. Nessa região, as florestas de pinheiros cobrem centenas de quilômetros quadrados. No meio deles, aproveitando-se da força da água de um dos verdes e rápidos rios que fluem para o rio Paraná seguindo para oeste, está a fábrica de papel de Monte Alegre.
Monte Alegre, com seus guardas e portões, ruas arborizadas e casas de pedra padronizadas em torno de gramados verdes, parece uma antiga company town [cidade cuja economia gira em torno de uma só empresa] na Nova Inglaterra ou do leste do Canadá. É a sede das indústrias Klabin, que fornecem cerca de um terço do papel usado nos jornais de São Paulo e do Rio de Janeiro. Esse poderoso grupo de companhias constitui uma empresa familiar muito característica das grandes empresas brasileiras.
Três gerações atrás, um imigrante lituano abriu uma pequena papelaria em São Paulo. Como seu negócio cresceu e as remessas que vinham da Europa eram irregulares e pouco confiáveis, tornou-se difícil conseguir a quantidade de papel necessário. Começou então a experimentar ele próprio a fabricação de papel. Finalmente, viu-se operando a primeira indústria de papel bem sucedida no Brasil. Seus filhos também se tornaram bons empresários. Importaram técnicos europeus, compraram vastas áreas de floresta virgem e construíram o que foi em sua época uma indústria de papel totalmente moderna. Para garantir que não lhes faltasse polpa de madeira, partiram para um programa de plantação de árvores com a finalidade de renovar as florestas do pinheiro-do-paraná assim que elas fossem cortadas. Para aproveitar os subprodutos, expandiram-se para a fabricação de materiais químicos e plásticos.
Em Curitiba, cidade agradavelmente letrada com uma bela biblioteca pública e todo um antecedente de publicação e pesquisa histórica, conheci um dos netos do Klabin original. Eu estava ali para dar uma palestra num dos centros binacionais que oferecem cursos de língua inglesa, serviço de biblioteca e palestras sobre assuntos norte-americanos. Embora esses centros fossem empreendimentos do Departamento de Estado dos Estados Unidos, tinham nessa época um considerável apoio local, e constava que alguns deles eram autossuficientes. Em Curitiba, foi divertido descobrir que meu público era composto principalmente de pessoas que falavam alemão, oriundas de famílias alemãs que estavam no Paraná havia várias gerações. Algumas delas nunca tinham estado na Alemanha. Disseram-me que se eu visitasse o estado vizinho de Santa Catarina encontraria uma atmosfera ainda mais germânica. Horácio Klabin soube que eu estava interessado nos assentamentos que se multiplicavam no interior e , gentilmente, se ofereceu levar nosso pequeno grupo para visitar as empresas de sua família em torno de Monte Alegre. Havia uma nova cidade de propriedade sua que ele queria que víssemos.
Durante a viagem, no que era então uma estrada de terra, empoeirada e cheia de buracos devido ao tráfego continuo de caminhões, o que mais nos impressionou foi que tantos das cabanas à beira da estrada dilapidada tivessem olhos azuis e cabelos claros. Em toda parte se viam crianças loiras. Klabin nos explicou que essas pessoas provinham de uma imigração polonesa que ocorrera cerca de vinte ou trinta anos antes. Sua língua era o português e seus costumes, brasileiros. A maioria deles esquecera a língua polonesa.
Horácio Klabin era um homem alto, moreno e blasé, com um jeito um tanto distraído. Sua educação e formação cultural pareciam ser inteiramente européias. Estava atualizado em relação aos últimos acontecimentos em arte e literatura no mundo todo. Evidentemente, lia russo. Estava dolorosamente consciente de todo o desenvolvimento da expansão soviética e bem informado sobre os escritores do famoso “degelo” que estava, na época, ameaçando a rigidez do dogma comunista. Jantando em sua casa em Monte Alegre, naquela noite, nos deparamos com uma conversa internacional que podia perfeitamente ter ocorrido em Fontainebleau ou em algum subúrbio parisiense ao longo do Marne.
Ele nos alojou no hotel da companhia. Dos engenheiros, técnicos, e suas esposas e famílias que passavam pelo saguão era possível ouvir quase todas as línguas européias; os brasileiros chamavam o hotel de Nações Unidas.
Pela manhã, depois de visitarmos a imensa fábrica de papel, cruzamos o rio para ver a área que Horácio Klabin estava construindo por conta própria na encosta verde que ficava em frente à fábrica. Sua ideia era fornecer casas que operários e técnicos pudessem comprar em prestações, para tirá-los da atmosfera semifeudal da cidade da companhia. Tudo na nova cidade seria independente da indústria de papel. Arbustos florescentes, bela vegetação. Havia um ar de originalidade modesta nessas construções. Ele nos mostrou várias residências brancas de diferentes tamanhos, moldadas para os salários das pessoas que ele queria que as comprassem. Quatro das casas mais atrativas estavam instaladas num terraço que cortava a íngreme margem do rio. Uma delas pertencia a um francês, outra a um húngaro e a terceira a um alemão. A última era ocupada pelo agente brasileiro do empreendimento imobiliário.
Quando Horácio Klabin nos mostrou o viveiro no alto da colina, sua postura se animou. Esse era seu hobby. Ele resmungou depreciativamente que toda a sua família estava obcecada com a plantação de árvores. As árvores que ele queria plantar em Monte Alegre eram oliveiras.
Ele explicou que, no período colonial, os brasileiros não tinham permissão para plantar oliveiras, para que o azeite de oliva continuasse sendo um monopólio português. Desde a Independência ninguém pensara em plantar oliveiras em grande escala no Brasil. Ele importara mudas e sementes de Portugal, Espanha, Itália e do Oriente Médio. Tinha também algumas variedades da Califórnia. Suas árvores jovens estavam florescendo. Logo iriam produzir. Se conseguisse introduzir uma indústria de azeite de oliva no centro do Paraná, disse ele com um sorriso reservado, realmente teria realizado algo por seu país.
Ilustração: José Aguiar
Texto originalmente publicado na terceira edição da revista Helena. Todas as edições da revista Helena estão disponíveis online em: http://issuu.com/revistahelena