Equilibrista da forma e da cor 01/01/1970 - 08:00

Por Annalice Del Vecchio | Fotos Mariana Zarpellon

O curitibano Fernando Velloso abre seu ateliê para uma conversa sobre abstracionismo e insubordinações artísticas com a participação do professor, pesquisador e crítico de arte Fernando Bini

Fernando Velloso, 83 anos, nunca pintou em público. “Pintar é algo íntimo, solitário”, afirma. Longe do ateliê, no entanto, esteve no centro de um movimento coletivo que “forçou” a entrada da modernidade artística em uma Curitiba (como sempre) tradicionalista. Em 1957, com um enorme gravador a tiracolo, colhia depoimentos de colegas no momento em que eles retiravam seus quadros do 14° Salão Paranaense, em protesto contra o academicismo do evento. O registro, feito para o seu programa Mundo das Artes, na Rádio Guairacá, é o único áudio que restou do que seria chamado de Movimento de Renovação.

Nos anos 60, Velloso retorna da Europa empunhando telas abstratas que pintou às escondidas do mestre cubista André Lhote, animando até mesmo Guido Viaro, também seu ex-professor, a experimentar a linguagem. Como gestor cultural, seu principal legado é a criação do Museu de Arte Contemporânea do Paraná (MAC), em 1974, até hoje o espaço mais apreciado pelos artistas locais. Estes e outros episódios foram tema de um bate-papo que contou com a interlocução do professor, pesquisador e crítico de arte Fernando Bini — que há anos acompanha a trajetória do artista e escreveu o livro Fernando Velloso: O Seguro Exercício da Forma e da Cor (2003).


Você começou a pintar pelo gosto que nutria desde menino pelo desenho. De que maneira a arte se tornou uma escolha de vida?
Velloso — Tenho a sensação de que as pessoas nascem artistas. [Hans] Arp dizia que a arte explode dentro do artista como os frutos numa árvore. Fui uma criança que teve os cadernos de escola com menos matéria e mais desenhos. Quando eu tinha 18 anos, anunciou-se a abertura da Escola de Belas Artes, que era o anseio da cidade, sempre sob a égide de Alfredo Andersen e seus discípulos. Naquele momento não havia uma escola de artes oficial.
Bini — Mas Andersen morreu em 1935, então, não havia mais nem a escola dele, havia um hiato. Antes disso, você foi aluno do Guido Viaro?
Velloso — Não, conheci o Viaro lá. Me inscrevi na primeira turma, em 1948, por incentivo do meu pai. A escola foi constituída a partir de professores acadêmicos, inspirada na Beaux-Arts de Paris. O próprio nome já denota um certo ranço, já naquela época cheirava a coisa antiga. Os professores eram discípulos de Andersen, com exceção do Viaro e [João] Turin, que deu aula de escultura no primeiro ano, mas morreu logo em seguida.
Logo no início você já percebeu esse cunho academicista?
Velloso — Já, mas não tínhamos como julgar isso. Curitiba era uma cidade de 160 mil habitantes, com uma comunidade conservadora que não tinha nenhuma informação ou interesse sobre arte. A Biblioteca Pública estava fechada e só em 1951, no centenário do Paraná, seria criada uma nova biblioteca. As revistas culturais não chegavam aqui, tudo era em preto e branco, inclusive as enciclopédias. Sem acesso ao que estava acontecendo no mundo, os alunos da Escola seguiam os passos do ensino convencional e acadêmico.
De que forma Guido Viaro, um sopro modernista dentro deste ambiente tradicional, teve influência em suas escolhas artísticas?
Velloso — O Viaro era o inverso de toda a Escola. Era o agitador, o anarquista que punha fogo no circo. O pai espiritual que nos tirou daquela treva. As aulas de pintura eram uma fórmula: todos os alunos pintavam o mesmo quadro, que era o quadro do professor. O Viaro, ao contrário, estava o tempo todo dizendo que na arte vale tudo, o que interessa é a escrita do artista, sua própria linguagem. O que nos fez compreender isso foi a visita que fizemos à primeira Bienal de São Paulo, o primeiro grande choque. De repente, nos deparamos com o que havia de mais significativo na arte moderna mundial. Muita coisa não conseguimos digerir, claro, aquilo estava muito longe do nosso universo.
Como esse choque foi absorvido pelos artistas no retorno à cidade?
Velloso — Foi o baque para que acordássemos. Vários circuitos começaram a se criar em torno de uma ideia fictícia do que era a arte moderna. Mais tarde, perceberíamos que não havia quase nada em comum no que fazíamos, a não ser a insatisfação. Nesse meio, a vitrine onde o artista se apresentava eram os salões. E o mais importante, o Salão Paranaense, era reduto dos acadêmicos. Esse grupo moderno se aglutinou para exigir que pelo menos um membro do júri do Salão tivesse tendência moderna. O que não aconteceu, evidentemente, obrigando-nos a organizar um movimento de retirada dos quadros da parede, um “rififi”.
Bini — Foi um ato de revolta que daria origem ao chamado Movimento de Renovação.
Essa insatisfação foi o que levou a viajar para Paris para frequentar o ateliê de André Lhote?
Velloso — Eu estava presente nesse movimento e batalhei para que Curitiba tivesse um museu de arte. Mas não havia interesse do governo, considerava-se que a Casa de Alfredo Andersen (hoje Museu Alfredo Andersen) era suficiente. Nesse meio tempo, me surgiu a oportunidade de estudar por dois anos e meio no ateliê de Lhote, que já estava bem velhinho, trabalhando dentro do espírito dele, fazendo uma pintura pós-cubista.
Bini — Imagino que a importância deste período passado ali tenha sido o rigor, o sistema organizacional que ele adotava.
Velloso — Sim, pois na Belas Artes não havia um método, cada aula era de um jeito. O ateliê funcionava todas as manhãs com modelos de nu e uma sala com vários objetos de natureza morta, os mesmos pintados por Braque, Picasso, o próprio Lhote. Na sexta-feira, dia em que ele vinha avaliar nossa produção, eram vendidas entradas para o público, que ficava ao redor da sala, vendo o professor esculhambar todo mundo. (risos)
Em que momento você percebe a ruptura que o levaria à abstração?
Velloso — A partir do primeiro ano em Paris, descobri a abstração explodindo. O que eu via pelas galerias e museus me fez perceber que havia trocado uma academia por outra. Comecei a fazer em casa algumas coisas, mas não podia mostrar porque o Lhote tinha ódio de pintura abstrata. Apesar disso, ele te empurrava para ela. É claro que saindo das mãos dele eu nunca seria um tachista, um abstrato informal, até porque já havia dentro de mim essa necessidade de uma obra estruturada, com arcabouço arquitetônico, equilíbrio, formas e movimento. Tive que fazer vida dupla. No ateliê, continuei fazendo meu trabalho, mas quando fui fazer minha primeira exposição em Paris [no Office du Brèsil, em 1961], só expus minhas abstrações.
Lhote já percebia na sua pintura um direcionamento à abstração?
Bini — O quadro “Composições com galos de briga”, pintado em 1957, ainda no Brasil, já tem muita tinta...
Velloso — Sim, e acabei fazendo isso nas pinturas cubistas no ateliê, usava muita tinta e muita espátula. Lhote implicava comigo. Um dia, quando veio fazer minha correção, disse: “Ah, c’è le pâtissier brèsilien!”, como se o que eu fazia fosse massa de enfeitar doce!
Seu interesse pela textura mais tarde o levaria a aplicar rendas às telas.
Velloso — Houve um momento em que a pintura não era mais suficiente para dar conta do meu desejo de explorar texturas. Então, comecei a fazer colagens nas telas com pedaços de cortinas de renda puídas que encontrei em um baú, no sótão da minha avó, onde trabalhei ao voltar para o Brasil.
Bini — O João Osório Brzezinski me falou recentemente que começou a fazer colagens a partir de um quadro seu.
Velloso — Quando voltei de Paris fazendo pintura abstrata, percebi um impacto muito grande na comunidade, muita gente se entusiasmou. Não digo que influenciei, mas animei.
Bini — Até o próprio Viaro vai tentar fazer abstração nesse período.
A conservadora do Museu de Arte Moderna da Cidade de Paris nomeou um quadro seu, doado ao espaço por ocasião de sua exposição em Paris, de “Fôret Petrifièe” (“Floresta Petrificada”). Por que, depois disso, você também decidiu dar nomes de paisagens a suas telas?
Velloso — A fagulha que ela soltou acabou fazendo com que eu assumisse que havia na minha pintura uma forte reminiscência dos interiores de bosques, das cascas das árvores, da textura dos troncos, que remetiam ao meu estado, onde ainda havia muitas áreas verdes — elementos que eu não via, mas as pessoas viam. Realmente, o que eu mais gostava nas aulas com o Viaro eram as incursões ao interior de bosques, eu não gostava daquela paisagem aberta, daquele pinheiro lá longe. Mais tarde, acabei chamando uma série grande de pinturas de “Florestas Reconstituídas” e, em seguida, houve um momento em que passei a ver totens, figuras imaginárias e habitantes da floresta nas telas.
Mas são variações pequenas de um quadro a outro, de uma fase a outra.
Velloso — Minha pintura se encadeia como uma escada, cada novo quadro tem uma referência do anterior. Uma vida talvez seja pouco para fazer um bom quadro, de modo que não se pode ficar pulando de um galho a outro. O artista precisa manter a coerência até o fim da vida, principalmente porque de um momento em diante já não tem mais espírito para aventuras perigosas.
Bini — Velloso trabalha sempre com a memória a partir de uma organização, de um rigor que são frutos da experiência com o Lhote e, antes disso, na Escola de Belas Artes. Não há uma variação muito grande entre um quadro e outro porque eles estão ligados a uma mesma proposta, mas se formos pegar o primeiro quadro e o último veremos uma diferença muito grande. Por que a vida dele vai mudando, ele trabalha com a sua própria história. Com o tempo, vai colocando cor...
Velloso — O início da minha arte abstrata era muito monocrômico, com tonalidades dentro de um ambiente castanho ou cádmio. Depois, vou descobrindo mais a cor.
E é uma cor peculiar.
Velloso — Trabalho com sutilezas, pequenos registros. A Adalice (Araújo, crítica de arte que morreu em 2012) me considerava um dos maiores coloristas do Brasil porque trato a cor com sutileza, com graduações muito pequenas, que se valorizam pela justaposição.
Bini — Mesmo que abstratas, suas telas deixam entrever reminiscências de imagens que estão guardadas, informações que vêm de paisagens, mas também da figura humana. Essa preocupação com a figura, mesmo que de fundo, é que dá a estrutura característica de seus quadros. É claro que você não chega no quadro e risca, mas a partir do momento em que coloca uma cor, logo vem a segunda, e aí o quadro toma conta. Não é mais o artista que dirige, mas o quadro que dirige o artista.
Velloso — É aquele “momento Van Gogh”, em que o inconsciente tem a supremacia. Claro que a forma está sempre baseada na anterior, sempre há algo do qual eu não me livro. São formas obsessivas, que quase todos os artistas têm. Penso que consegui chegar em uma linguagem que não se parece com nada. É uma sorte e uma dificuldade, porque com todos esses artistas importantes que degluti, que via todo dia, poderia ficar marcado como caudatário de alguém. Mas consegui fazer um amálgama de tudo isso e ser eu mesmo.
Bini — Eu sempre falo em aula que se você lê um livro, você é esse livro. Se lê 10 livros, faz uma síntese de todos eles. Mas se você lê mil livros, cria uma outra coisa completamente nova.
Como você finalmente conseguiu que o MAC fosse criado?
Velloso — O MAC foi uma ideia que carreguei durante anos. Antes de sua criação, eu já participava dos colóquios da Associação dos Museus de Arte do Brasil. Em um deles, o projeto de criação do museu foi sugerido ao governo do Paraná — o incentivo necessário para que ele fosse criado ao fim do Governo Paulo Pimentel, ainda sem sede, mas com um pequeno acervo constituído pelos prêmios do Salão Paranaense. Em 1974, após se instalar provisoriamente em um chalé cedido pela Associação dos Servidores Públicos do Paraná, na Rua Carlos de Carvalho, o Museu ganhou abrigo no prédio da Rua Emiliano Perneta, que ia ser demolido, onde está até hoje.
Bini — Com a criação do museu, a geração que deu início à arte conceitual ganha espaço. Minha turma da faculdade criou os Encontros de Arte Moderna no Paraná, de 1969 até 1976. O primeiro apoio oficial veio do MAC. E a gente fez horrores lá!
Velloso — Fui criticado violentamente porque eram coisas de vanguarda que chocaram a cidade. Mas, cada vez que eu permitia, eu lembrava das portas que se fecharam na nossa cara nos anos 1940, 1950 e isso era suficiente para eu mantê-las abertas.
E como vai sua pintura hoje, após mais de 60 anos de trajetória?
Velloso - Hoje tenho 83 anos, sou um velho folgado, pinto pouco, só quando estou com muita vontade. A própria idade já não me permite grandes formatos, como eu sempre gostei. Mas nunca parei. Agora, minha pintura está comportada, não me permito muitas modificações, embora o artista sempre esteja se modificando porque cada novo quadro é único.

Annalice Del Vecchio é jornalista. Atua como freelancer na área cultural, escrevendo sobre cinema, literatura e artes visuais.

GALERIA DE IMAGENS