Romance | Thiago Tizzot

Ilustrações: Bianca Franco
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O grito das gaivotas ecoava e anunciava que era o momento de desembarcar, as aves circulavam o navio para depois de aninhar em uma reentrância na alta parede de rocha. Não existem praias em Peneme, ao redor de toda a ilha as águas do mar se chocam com uma parede de pedra conhecida como Rocha. As docas eram frágeis, peças de madeira velha que pareciam que virariam pó ao primeiro toque. Do convés Azdaya observou seus passageiros desembarcarem. A moça de vestes caras com sua comitiva de guerreiros e depois Nahovi, Wislic e Cnotak. Hengan se juntou a sua capitã e com um sinal indicou que o pagamento pela viagem foi feito de forma satisfatória. Com um suspiro Azdaya se afastou, por enquanto seu trabalho terminara. Seguiria para seus aposentos para descansar e esperar pelo retorno de Nahovi, não desejava colocar os pés sobre o solo da ilha ou permanecer mais do que o necessário em Peneme. Mas combinou que aguardaria por sua amiga para levá-la embora. 

Wislic assumiu a frente, Nahovi vinha depois e Cnotak em último. Sempre viajavam desta forma, nunca combinaram. Não foi preciso palavras para cada um encontrar seu papel e seu lugar. Desde o início existia um sentimento de que ali era o lugar certo para estar, não só em relação a ordem que assumiam durante as jornadas, mas em relação a amizade, a confiança e lealdade entre eles. Era algo natural, como se sempre estivesse lá e destinado a fazer parte da vida deles. 

No meio do cais, Nahovi parou. Encarava a parede de pedra conhecida como Rocha. Lá em cima as árvores balançavam com o vento salgado que vinha do mar e por um raro instante em sua vida a guerreira hesitou. No fundo ela sabia a loucura que estava prestes a fazer, qualquer pessoa sensata de Breasal sabia que a melhor coisa a fazer era evitar Nafgum a qualquer custo. A conversa com Azdaya e a suspeita de que os monges poderiam usar a magia dos desprezíveis seidhur só aumentava as razões para manter distância do Mosteiro. Então lembrou-se dos olhos de seu pai. Escuros, mas com leves toques de violeta, calmos como um oceano sem vento, mas por trás deles se escondia a força de uma tempestade e um turbilhão de pensamentos e ideias. Não importava o perigo ou problema, bastava Nahovi encontrar o olhar de seu pai para se sentir melhor, mais segura. Mas não foi do sentimento de conforto e amor que a guerreira lembrou ali no cais de Peneme. Foi do vazio, os olhos parados e sem vida, o sangue em suas mãos e a dor em sua alma quando Nahovi sabia que seu pai estava morto. A tarefa mais Ilustrações Bianca Franco dolorida de toda a sua vida, fechar aqueles olhos, escuros, que tanto alegria lhe deram para nunca mais abrirem. 

Segurou as lágrimas, respirou fundo e com passos decididos seguiu em frente. 

Uma escada de cordas e tábuas serpenteava pela Rocha até o topo. Era uma subida extenuante e por vezes traiçoeira. Alguns degraus eram antigos e a madeira podia se partir levando a uma queda mortal. Como era de costume antes de iniciarem, Wislic falou sobre os perigos da ilha, suas peculiaridades e até o que o ar marinho faz com a madeira. Porém Nahovi não prestou atenção. Tudo que conseguia pensar era que de alguma estranha forma, negociar com os monges poderia ser uma maneira de conversar com seu pai. 

Não tiveram dificuldade na subida, os três eram aventureiros experientes e mesmo a Rocha sendo um desafio para outro viajantes, a comitiva que estava no barco demorou três vezes mais para vencer o desafio, para eles era quase um passeio. 

No topo encontraram uma floresta fechada, árvores de troncos largos e folhas escuras. Contudo um caminho se apresentava para eles. Esgueirando-se por entre as árvores, uma trilha de terra batida indicava a direção a seguir. Cnotak desembainhou sua espada e puxou o escudo de suas costas. 

— Não precisa se preocupar, meu amigo — Wislic tinha um sorriso no rosto. — Por enquanto suas armas podem descansar, Cnotak. Nossa jornada até o Mosteiro será tranquila, nada irá nos incomodar desde que nos mantenhamos na trilha. Os monges mantêm uma vigia constante e eficiente.

— Por quê? — indagou Nahovi por reflexo e para agradar o anão que gostava de explicar o desafio que estava diante deles.

— Investimento — disse o anão com satisfação. — É importante para os monges que as perguntas cheguem em segurança. As respostas são valiosas demais para arriscarem perder algumas pelo caminho. 

— E quanto aos qenari? — Cnotak pendurou o escudo nas costas e guardou a espada. 

— De alguma forma, e eu gostaria muito de saber como, os monges controlam estas horrendas criaturas — o anão mordeu uma maçã que trazia na mão. — Falam até que protegem os arredores do Mosteiro de possíveis ladrões — mais uma mordida. — De qualquer maneira aproveitem a caminhada para descansar, em breve precisaremos estar bem alertas. 

2
O guerreiro olhava para as árvores, os troncos próximos e as folhas abundantes formavam inúmeras sombras. Por duas vezes Cnotak achou ter vislumbrado um par de olhos a observá- -los. Ver um monge de Nafgum era algo raro, a comunicação com o mosteiro era feita somente através de mensagens passadas pela portinhola e as únicas pessoas que viram um monge fora dos limites dos enormes muros do Monastério estavam agora mortas. Ninguém em toda a história de Breasal conseguiu escapar do ataque de um monge. Por isso a todo instante Cnotak perscrutava a floresta, buscando por algum indício de que os monges de fato patrulhavam a estrada. O nortenho estava curioso para conhecer estas estranhas figuras que mesmo em sua infância lá no longínquo reino de Golloch povoavam as histórias e brincadeiras. 

A distância do cais até a cidade era curta e logo puderam ver algumas casas e construções. Poucas, é verdade, no continente aquilo não seria chamado de vila, mas em Peneme era uma proeza encontrar pessoas que de fato viviam ali e diziam com orgulho que moravam na única cidade da ilha. 

— E aí estão os bravos que ousam viver em Peneme — Wislic terminou a maçã e bebia vinho de um cantil. — Aconselho agora a terem os cabos das armas perto dos dedos. 

Nahovi repousou a mão sobre o cabo de sua espada, a aspereza do couro lhe aquecia o coração e sempre fazia seus lábios se contraírem em um sorriso. A arma foi um presente de seu pai, feita por ele próprio, uma das últimas coisas que ele fez. Sua bota afundou na lama que o caminho de terra batida tinha se transformado e um cheiro nauseante tomou conta do ar enquanto eles caminhavam por entre as casas. A lama era formada por uma água suja que escorria das casas até a trilha que ficava mais abaixo. Nahovi preferiu não saber o que era aquela água. 

3

O lugar era deprimente, nenhuma risada, somente olhos desconfiados e ameaças. As casas eram construídas em parte por pedras e outras por madeira, pareciam remendadas e arruinadas. Somente uma construção se destacava, um pouco afastada da lama e do mau cheiro, um edifício de três andares. Sólido, com paredes de pedra clara e janelas arredondadas. Guerreiros com armaduras e espadas patrulhavam o prédio. 

— O Oásis, a única pousada confiável — Wislic percebeu que Nahovi examinava o lugar —, um lugar seguro no meio do caos que é Peneme. Disponível desde que você possa pagar o preço certo.

O grupo que viajou com eles no Arrastaka se dirigia para a entrada do Oásis. 

— Pelo visto nossos companheiros de viagem podem pagar o preço — comentou Cnotak. 

— Sem dúvida alguém que pode pagar por uma escolta como aquela, tem ouro suficiente para pagar por todo o conforto que desejar — algo na voz de Nahovi demonstrava desprezo. 

— Imagino o que alguém como ela estaria fazendo por aqui — pensou em voz alta o anão. 

— Não importa, vamos logo. Prometi a Azdaya que voltaria o quanto antes — com passos firmes a guerreira se afastou. 

Logo as casas ficaram para trás, eram apenas um punhado, e um gramado verde pálido que crescia até seus joelhos ficou diante deles para terminar em um abismo. E depois, o Mosteiro. 

Avançaram em silêncio, as histórias e lendas fervilhando em suas cabeças. Ver os três edifícios que compunham Nafgum era um feito para poucos. Era difícil lembrar das palavras de aviso, dos terríveis relatos do que os monges eram capazes de fazer quando não recebiam seu pagamento, tudo que eles queriam era chegar logo e admirar o lugar. Ao final os passos quase viraram uma corrida, movidos pela ansiedade, e de repente o vazio. 

O abismo se perdia na escuridão e era impossível ver seu fim. Ainda assim, mesmo sem poder enxergar, podia sentir que algo habitava suas profundezas. Espreitando e esperando o momento certo para aproveitar o descuido de um viajante. Circundava todo o mosteiro e a única forma de chegar ao portão era através de uma ponde de madeira e cordas. 

Ficaram alguns passos da ponte que dançava com o vento que corria pelo abismo. Depois da ponte um pequeno pátio coberto de pedras polidas e bem assentadas. Um muro alto acompanhava o abismo e protegia as três construções, pelo menos imaginavam que fossem três, era o número de telhados que podiam vislumbrar ali de fora. Feitos de peças de argila que se encaixavam à perfeição. Algo diferente de tudo que tinham visto. No pátio vazio o portão de madeira e ao seu lado a portinhola. Nahovi sentiu um arrepio na espinha, depois de tanto tempo, tanta luta, tudo poderia ser resolvido. 

Wislic e Cnotak não ousaram se mexer, aguardavam a guerreira. Ela deu alguns passos à frente e ficou parada diante da ponte, seus cabelos levados pelo vento e o olhar fixo nos portões do mosteiro. Segurava entre os dedos a pequena pedra azul que pendia de seu colar. Por um momento ficou assim, sua mente inundado por pensamentos e lembranças. Até que reuniu a vontade necessária para virar os olhos para seus amigos que permaneciam distantes. Os dois assentiram e ela tentou sorrir, contudo falhou. Deu as costas para eles e colocou seu pé sobre a madeira da ponte. 
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Durante a travessia a única coisa que Nahovi pensava era que o pátio estivesse realmente vazio, temia que se tivesse que esperar por alguém ser atendido ou alguma outra distração, a coragem sumiria e ela iria embora. Sentiu-se mais segura quando encontrou o pátio vazio. Mais uma vez olhou para trás, as silhuetas de Wislic e Cnotak estavam lá. 

O portão maior era feito de grandes troncos de madeira escura, anéis de aço mantinham as peças unidas, eram duas portas, e não existia qualquer tipo de tranca ou dispositivo para abrir. A portinhola ficava do lado direito, quadrada e pequena era feita de uma madeira avermelhada que fez Nahovi imediatamente lembrar de sangue. Tentava escutar qualquer barulho, os olhos atentos, mas estava sozinha. Agora a ideia de um monge estar observando-a parecia ridícula, mas durante a viagem ela ficou imaginando que talvez um deles estivesse por ali. Não era preciso. Tudo que ela via demonstrava uma força, um poder imensurável que seria impossível de ser desafiado. De repente sentiu o desejo de sair daquele lugar o quanto antes. 

Ao lado da portinhola ficava um pequeno armário com porta de vidro. Dentro estavam pergaminho e uma pena. Não havia tinta. Ela abriu a porta destrancada e segurou a pena. Era pesada, com a pluma cinza e o bico feito de um metal que parecia ser prata. Não teve dúvidas, parecia muito claro o que deveria fazer, encostou a ponta da pena em seu pulso. Sentiu uma picada e viu um fino fio vermelho de seu sangue que subia pelo bico de metal. Depois que o fio desapareceu, rapidamente pegou um pergaminho e escreveu em letras trêmulas: “Quem matou meu pai?” 

Abriu a portinhola, que também estava destrancada, e colocou o pergaminho dobrado no interior. Fechou sem ousar ver como era lá dentro. Guardou a pena e fechou o armário. Deu uma última olhada para o bico de metal, limpo, nem uma gota de seu sangue. Estava tudo com os monges. 

Novamente segurava a pedra azul, presente de seu pai. Não sabia o que iria acontecer, estava feito, mas e agora? Quanto tempo até receber o preço por sua resposta. Seria um pergaminho ou algo mais misterioso? 

O barulho da portinhola se abrindo cessou todas as dúvidas. Decidida Nahovi olhou o interior. Um pergaminho dobrado. Com cuidado ela o pegou e abriu. Apenas uma frase em caligrafia firme e angulada: “Traga-nos Tarassu”.

Thiago Tizzot é autor dos livros O Segredo da guerra e A ira dos Dragões e outros contos. É editor da revista Arte e Letra: Estórias e proprietário da editora Arte e Letra. O trecho publicado pelo Cândido faz parte do próximo romance do autor, ainda sem título. Tizzot vive em Curitiba (PR).