Poemas | Moya Cannon

Tradução: Luci Collin


A história do mágico

A mágica que conheci no Castelo de Leap
me contou que havia crescido
numa Loja do Mágico em Londres.
Seu pai, de dezessete anos, do Condado de Mayo,
os pulmões comidos pela tuberculose,
havia sido cuidado por sua mãe,
uma jovem londrina
que, numa segunda-feira de manhã,
lhe trouxe um presente,
um livro de truques de mágica.

Todos os longos meses no sanatório ele praticou,
aprimorando, por fim, truques que só ele sabia fazer.
Podia produzir, dos buracos curados do seu peito,
dezessete bolas de bilhar,
e sabe-se lá quantos lenços,
quantas pombas brancas e esvoaçantes.


Mãos

Foi em algum lugar ao longo da costa nordeste do Brasil,
sobre Fortaleza, uma cidade da qual eu nada sabia,
exceto que é cheia de pessoas —
a vida de cada uma delas um mistério
maior do que o Amazonas —
foi lá, quando o aviãozinho no monitor de voo
alcançou a linha do Equador
e desviou pro leste em direção a Marrakech,
que comecei novamente a pensar em mãos,
em como é estranho que nossas vidas —
a vida da garota francesa ruiva à minha esquerda,
a vida do garoto argentino à minha direita,
minha vida e as vidas dos passageiros cochilando,
sendo carregados rápido no escuro
sobre o Atlântico escurecido —
todas essas vidas agora sendo mantidas
nas mãos do piloto,
na consciência do piloto,
e eu penso em outras mãos que podem manter nossas vidas,
as mãos do cirurgião
que devo encontrar de novo quando eu voltar para casa,
as mãos da enfermeira inteligente, de cabelos pretos
que desenrolou o cordão umbilical do meu pescoço,
as mãos macias da minha mãe,
as mãos daqueles outros
que me amaram,
até que parece quase
como se isso fosse o que a vida humana é:
ser passado de mão em mão,
ser sustentado, incrivelmente, sobre um oceano.


Salão Clássico

Todos os dias são deixadas
no Salão Clássico,
às vezes de táxi,
às vezes pelas filhas,
muitas vezes por filhos de meia-idade
em casacos sóbrios,
que param o carro rente ao meio-fio,
dão a volta andando até a porta,
e oferecem o braço.

Como é importante esse
quase último vestígio
da nossa pele de animal.
Como o valorizamos —
as trancinhas egípcias,
as faixas nos cachos gregos,
os penteados elaborados da África,
os topetes pompadour, altos e fixos,
os dos anos sessenta, longas cascatas sobre uma guitarra,

e o delicado halo
da minha vizinha quase-cega
de noventa e dois anos de idade,
com permanente e arrumado
no estilo
em que ela saía para passear
com seu jovem namorado
após a última Guerra Mundial.

 

Santuários

Você os encontrará facilmente,
há tantos —
perto de rotatórias, de represas,
pelo cais —
aleatórios, passionais, carcomidos,
como algo que um pássaro pode construir,
uma pega insana
que trouxesse flores azuis de seda,
rosas rubras reais,
um girassol de ferro,
uma guirlanda de Natal,
um sino dos ventos,
fotografias em celofane,
anjos, anjos, anjos
e corações, corações, corações
e sabemos
que este é o mesmo lugar
que a polícia lacrou com fita,
que uma igreja ficou entupida
de jovens em trajes negros
e que sob as flores e sinos
há uma enorme pedra de impacto
sem ninguém capaz de afastá-la
e deixar que a tristeza flua e flua e flua,
como densas tranças d’água
caindo sobre um grandioso açude.



Moya Cannon nasceu no condado de Donegal, na Irlanda, em 1956. Já publicou cinco coletâneas de poesia. A qualidade de sua obra tem sido amplamente reconhecida não apenas na Irlanda, mas também internacionalmente. Seu primeiro livro, Oar (1990), venceu o prestigioso Prêmio Brendan Behan Memorial. Em 2001, recebeu outra premiação de destaque, o Laurence O Shaughnessy Award. Já em 2004 foi eleita para a Aosdána, importante afiliação de artistas da Irlanda. Seus poemas exploram uma variedade de temas como a relação entre música e literatura, o mundo natural, a interrelação entre os seres sencientes e não-sencientes e, principalmente, os flagrantes poéticos do cotidiano.


Luci Collin nasceu e vive em Curitiba. Autora, entre outros, dos livros de contos Inescritos (2004) e Vozes num divertimento (2008), do romance Nossa senhora d’aqui (2015) e dos livros de poemas Querer falar (2014), obra finalista do Prêmio Oceanos 2015, e de A palavra algo (2016). Professora de Literaturas de Língua Inglesa na UFPR, realiza estágio pósdoutoral na Universidade de São Paulo (USP) sobre a poeta Moya Cannon.