Poemas| Marcelo Sandmann
DUAS METADES
1.
No espelho do quarto,
rosto cindido,
as duas metades da manhã:
a que emerge da noite
e a outra, já sol a pino.
2.
Na mesa da copa,
fruto partido,
as duas metades da maçã:
a que se agarra ao galho
e a outra, murcha no chão.
RECADO NO PISO
Os cabelos,
no chão do banheiro,
propõem enigmas
a decifrar.
No acaso da queda,
ao toque do vento,
fios longos ou curtos,
claros ou escuros,
compõem sua trama,
um convite ao devaneio.
*
(Ontem,
minha filha dormiu aqui.
Deixou um recado no piso,
de sonhos e cismas,
apelos
e silêncios.)
SANGUE NA GUELRA
para Alice Gonçalves Corrêa
“Ela tem sangue na guelra”,
ouvi certa vez minha avó dizer
(seu acento levemente português)
já não lembro a respeito de quem.
Pois eu, menino,
se sabia o que era “sangue”,
estranhei aquela “guelra”.
Sangue na guerra?
E repeti, concentrado, mentalmente:
“guelra”, “guelra”, “guelra”, “guelra”...
até a palavra se dissolver.
Um dia, caminhando
pela praia de Guaratuba,
alcançamos a aldeia dos pescadores,
os barcos recém atracados,
as barracas apinhadas de pescado.
“Sangue na guelra”,
ela disse, outra vez,
e enfiou os dedos por detrás
de um dos lados da cabeça do peixe,
que se debatia, aflito,
entreabrindo ali umas lâminas
vermelhas, viscosas,
que palpitavam:
Ilustração Marluce Reque
UM BARALHO,
QUATRO CANALHAS,
E UMA GARRAFA DE
CONHAQUE
A este coube
embaralhar as cartas.
Àquele, cortar
e ajeitar o monte.
Então, o terceiro
comprou.
O quarto comprou.
Comprou também o primeiro.
E aquele que veio
depois do primeiro.
Agora é ver
quem tirou o ás de ouros.
Quem, a dama
de copas.
Quem, o sete de espadas.
Quem,
o dois de paus.
O vencedor leva o resto da garrafa,
o dinheiro das apostas
e um tiro pelas costas
assim
que
deixar o recinto.
*
Moral da história?
Diga você, querido leitor.
A LOSING GAME
na voz de Amy Winehouse
você me encontrou: eu te encontrei
você me encantou: eu te encantei
você se entregou: eu me entreguei
love is a losing game
você me estranhou: eu te estranhei
você se guardou: eu me guardei
você se lixou: eu me lixei
love is a losing game
você se drogou: eu me droguei
você se cortou: eu me cortei
você me queimou: eu te queimei
love is a losing game
você se matou: eu me matei
você me entregou: eu te entreguei
você me deixou: eu te deixei
love is a losing game
(just a losing game)
E JACÓ LUTOU
COM O ANJO
para Dalton Trevisan
Se um dia acaso precisar
matar
o próprio pai,
não o mate pelas costas,
não o faça pouco a pouco,
não o queira
à traição.
Mate-o pela frente:
olho no olho,
o hálito quente,
a faca bem afiada,
certeira,
no coração.
Marcelo Sandmann nasceu em Curitiba, em 1963. Publicou os livros de poesia Lírico renitente (2000/ 2ª ed. 2012), Criptógrafo amador (2006), Na franja dos dias (2012) e A fio (2014). Prepara novo livro, intitulado Sangue na guelra, para a Coleção Megamíni, da editora 7Letras. Sandmann vive em Curitiba (PR).