Perfil: Carlos Careqa

Catando palavras


Desbravador de dicionários na infância, Carlos Careqa virou leitor fiel de Fernando Pessoa, Ferreira Gullar e Carlos Drummond de Andrade. Da paixão pelo verso, surgiu o mote para seu trabalho: o leitor virou poeta

Luiz Rebinski Junior

carlos

















A palavra escrita desde sempre esteve no centro da vida de Carlos Careqa. Antes de enveredar pela música, o compositor foi em busca do bordão perfeito para o mercado publicitário, fez comerciais de sucesso e carreira na área. Também vagou na noite com alguns poetas curitibanos nos idos dos anos 1980, quando começava a escrever suas primeiras canções. Mas a paixão pelas palavras é ainda anterior à empreitada publicitária e às andanças com os poetas, se manifestou quando Careqa era piá e “ficava folheando o dicionário à procura de palavras diferentes e seus significados”. “Acho que foi a minha primeira paixão pelas palavras. Eu e Lino Procópio – músico e amigo – fazíamos alguns textos bem complicados com essas palavras. Era engraçado e muito proveitoso.” Sem saber, o garotinho Carlos antevia o seu futuro: juntar palavras em frases que lhe dariam sentido à vida.

Nascido em Lauro Muller, Santa Catarina, Carlos Careqa passou a infância e a juventude em Curitiba – entre idas e vindas, ficou na cidade por 21 anos –, onde estudou música e teatro. Nos anos 1990, radicou-se em São Paulo, onde mora há 21 anos. Foi responsável por várias trilhas para peças de teatro e trabalhou como ator em filmes como Bicho de sete cabeças, de Laís Bodanzky.

Já a trajetória de leitor teve alguma contribuição da escola, mas foi o espírito livre de Careqa que o levou a leituras menos comprometidas com o ensino formal. “Li alguns livros sugeridos pelos professores, aqueles que todo mundo lê na adolescência. Quando peguei gosto pela leitura, me encantei com o Ignácio de Loyola Brandão, depois Bukowski, Fernando Pessoa, Carlos Drummond de Andrade e Ferreira Gullar.”

Careqa trabalhava como bancário em Curitiba quando partiu para Nova York com seu violão debaixo do braço. Se apresentou também em bares e casas noturnas de Genebra e Berlim nos anos 1990. Em seguida, ao retornar, atuou no grupo Pêlo Público, em São Paulo. Afinado com a produção da chamada Vanguarda Paulista, de artistas como Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção, de quem foi parceiro musical, Careqa é um compositor pouco convencional, mas altamente criativo, irreverente e... poético. A literatura está impregnada no seu trabalho. Em seu sétimo disco, Tudo que respira quer comer, a voz do poeta Mário Quintana aparece na música “Isso passará”, dinamitando as fronteiras que separam poesia e música.

Então, seria no mínimo despropositado perguntar a um compositor, cujas palavras ocupam espaço tão privilegiado em sua obra, se letra de música também é poesia. Para essa indagação bizantina, mais antiga que a vocação poética de Bob Dylan, Careqa se sai com uma resposta pouco óbvia, mas certeira. “Para mim, letra de música é letra de música. E claro que pode haver muita poesia nessa letra de música. Poesia é o combustível para se fazer uma boa letra de música. Alguns poemas podem ser musicados. Mas outros só existem pela força poética mesmo.”

À espera de Waits

Em 1986, Careqa assistiu a uma peça de Raul Cruz – dramaturgo que nos anos 1980 fez parte dos grupos “Bicicleta” e “Moto Contínuo”, em Curitiba –, em que as músicas de Tom Waits integravam a trilha do espetáculo. “Saí atrás de tudo do cara. E, desde então, escuto muito Tom Waits. A verve poética dele é muito próxima da minha, pois usamos o cotidiano para construir nossa poesia.” Um dos compositores mais singulares da música americana nos últimos trinta anos, Waits é um artista de espírito indomável, que trafega pelos mais diversos gêneros sonoros, misturando jazz, rock, tango e polca à uma poesia à moda beatnick. À sua considerável carreira como músico, somam-se incursões bem-sucedidas no cinema, em clássicos de Jim Jarmusch e Robert Altman. E foi essa estética que fisgou Careqa.

A paixão pela obra do bardo americano se materializou em 2008, quando Careqa gravou À espera de Tom, um disco com versões de músicas de Waits cantadas em português. “Rain dogs” virou “Eu e meu cachorro louco”, interpretada com a rouquidão característica de Waits, já o clássico “Chocolate Jesus” se transformou em “Guaraná Jesus”, em uma referência ao refrigerante que faz sucesso no Maranhão, uma tentativa de aproximar o estranho universo do americano do público brasileiro. As licenças poéticas não param por aí: a Nova Jersey do fim dos anos 1980, cenário de “Jersey Girl”, é substituída pela São Paulo atual em “A garota de Guarulhos”. “O universo do Tom Waits não é muito diferente do meu. As imagens que ele busca, eu também busco. Tive que adaptar [as referências], pois não fazia sentido cantar em português falando de Nova Jersey. Como eu já vinha estudando o cara há 20 anos, não foi difícil.”

Assim como a poesia pouco convencional de Waits, Machado de Assis também foi uma influência forte para Careqa. Fã da poesia do Bruxo do Cosme Velho, cuja produção poética foi eclipsada pela prosa, Careqa já teve vontade “de fazer uma canção inspirada no conto ‘O Homem Célebre’, do Machado”. “Mas não fiz”, diz, com certo pesar, o músico.

Hoje, com as atribuições da vida diária, Careqa confessa que tem lido menos. “Mas procuro sempre estar interessado com o que existe na literatura. Leio bastante na internet, textos soltos e poesia”, diz o cantor, que está lendo Leite derramado, de Chico Buarque, que fez uma participação em seu disco Alma boa de lugar nenhum, gravando a canção “Minha música”. Como nos tempos de juventude, as palavras e os poetas continuam a acompanhar o leitor Careqa.