Literatura em cena | Porto Alegre

Celeiro de jovens autores, Porto Alegre tem um tradicional circuito literário, que inclui feiras e editoras, o que ajuda a fomentar o surgimento de novos escritores locais


Alexandre Lucchese


Desde escritores de best-sellers até poetas, passando por contistas e criadores que fundem gêneros narrativos, os autores gaúchos estão presentes no imaginário dos diversos segmentos de leitores brasileiros. Daniel Galera, Letícia Wierzchowski, Fabrício Carpinejar, Daniel Pellizzari e Antônio Xerxenesky são apenas alguns dos nomes que se afirmam como referências nacionais em seus segmentos. No entanto, compreender a cena literária porto- alegrense, capaz de gerar essa profusão de nomes de peso, e levantar suas causas e particularidades, pode se revelar uma tarefa um tanto escorregadia.

foto: Renato Parada
O que chama atenção em primeiro lugar é a dificuldade de encontrar autores que permaneçam vinculados exclusivamente à cena local. “É uma geração de autores que publica massivamente em São Paulo e no Rio de Janeiro”, aponta o professor e ensaísta Luís Augusto Fischer, chamando atenção para o fato de jovens autores como Carol Bensimon serem logo editados no centro do país a partir do segundo livro. Além disso, Xerxenesky, Pellizzari, Paulo Scott, Michel Laub, Veronica Stigger, entre outros tantos autores representativos, deixaram a capital sul-rio-grandense, ou seja, já não frequentam a cena local com a mesma assiduidade e alcançaram status de escritores nacionais, lidos em todo o Brasil.

Se muitos autores gaúchos não podem ser vinculados com tanta força à cena porto-alegrense, visto que estão geograficamente distantes e possuem uma abrangência mais ampla de leitores, reuni- los em torno de um estilo ou temática é ainda mais difícil. “Não se pode dizer que há uma particularidade em nossa produção porque a literatura em geral está muito urbana, a obra de um escritor de Salvador, São Paulo ou Rio de Janeiro pode ser esteticamente muito parecida com a obra de um autor daqui”, explica Rodrigo Rosp, editor da Dublinense e da Não editora, duas das casas editoriais que mais têm acolhido revelações da literatura na cidade.

“Uma das novidades sobre os jovens autores porto-alegrenses é que, para eles, ser gaúcho já não é mais uma questão”, observa Fischer. Rosp corrobora a opinião do crítico. Para o editor, já não há um comprometimento em levar adiante temáticas que apareciam tradicionalmente na literatura local: “O escritor contemporâneo está conectado muito além de sua raízes, assim, um livro do norte-americano Thomas Pynchon talvez possa ter tanta ou até maior influência sobre quem está escrevendo agora do que um livro do Caio Fernando Abreu ou outro escritor daqui”.

Mesmo assim, Rosp e as editoras que representa acabam se inserindo numa importante tradição da cidade. “Porto Alegre tem uma história de editoras representativas de geração — a Globo, por exemplo, foi seguida pela Movimento, L&PM e Mercado Aberto, depois veio a Livros do Mal e agora a Não e a Dublinense”, aponta Fischer.

CIRCUITO

Tal sequência de editoras acaba por sugerir que há na capital, de algum modo, uma sistema literário desenvolvido. Mesmo que muitos autores com maior visibilidade estejam longe de Porto Alegre ou publiquem em editoras do centro do país e não possam ser agrupados por temática, existe de fato um circuito literário na cidade.

“O número de oficinas, saraus, leituras e lançamentos que há aqui talvez seja mesmo um dos diferenciais de Porto Alegre em relação a outras capitais brasileiras”, aposta Rodrigo Rosp. A Palavraria, livraria localizada no bairro Bom Fim, é um bom exemplo dessa movimentação: a casa abriga cerca de três eventos ou encontros ligados à literatura por semana durante todo o ano. Além disso, a cidade tem uma das mais badaladas feiras de livros do país e também conta anualmente com a, cada vez mais sólida, FestiPoa Literária.

O sistema ainda não é tão maduro a ponto de criar grandes fenômenos literários locais, gozando de amplo público leitor antes de ser lançado no centro do país, mas tem estimulado jovens criadores. O poeta Diego Petrarca, por exemplo, lançou três títulos no último ano, e afirma não ter “exatamente ‘um público’, o que tenho são pessoas já interessadas em literatura e poesia, alunos que frequentam minhas oficinas, amigos e poetas que acabam querendo ver meu trabalho”.

Divulgação

Rodrigo Rosp está à frente da Não Editora, que já publicou dezenas de autores locais.

Mesmo assim, Petrarca não pode dizer que não vive de poesia, pois está sempre envolvido em aulas, oficinas, leituras e outras iniciativas em torno do fazer poético e literário. “Meu trabalho com literatura é escrever e dar aula”, resume ele, que há dez anos está envolvido com projetos literários.

Da mesma forma, Rosp vê sua editora alçar voo nesse ambiente. Com mais de 50 autores em seu catálogo, sendo a maioria de escritores locais, a Dublinense faz tiragens para iniciantes que variam de 600 a 1.000 exemplares. Em torno de 60% das vendas se dão no Rio Grande do Sul.

Diego Grando, Rafael Bán Jacobsen, Samir Machado de Machado, Cíntia Lacroix, Nelson Rego e Monique Revillion são apenas alguns dos autores que a Não e a Dublinense ajudaram a revelar e que têm avançado na carreira literária. A baixa repercussão dos títulos na imprensa e a inexistência de um mercado efetivo para novos autores locais não tem sido motivo para cessar o aparecimento de escritores interessados em publicar seu primeiro livro.

Rosp identifica, na verdade, um amadurecimento dos estreantes. “A maioria dos escritores que chega até a editora já frequenta oficinas, assiste debates em eventos, enfim, sabe como é a cena. Encaro que o escritor precisa fazer um trabalho de construção de marca, fazer-se conhecido ao poucos e, assim, ser cada vez mais lido com o tempo.”

Não é fácil determinar por que a cidade tem um número tão grande de interessados em celebrar os livros, seja frequentando eventos, oficinas ou clubes de leituras. No entanto, Fernando Ramos, idealizador da FestiPoa Literária, dá uma dica de onde não procurar os responsáveis pela sólida movimentação. “É preciso deixar bem claro que se há algo de notável na cena literária local, isso não se dá por conta do poder público, mas apesar do poder público.”

O produtor cultural cita a falta de criação de novas bibliotecas e a manutenção das já existentes como um exemplo de “desleixo” das autoridades. Ramos diz que “a maioria dos projetos sérios na área da literatura em Porto Alegre parte de iniciativas privadas, e não do setor público: Livraria do Globo, Feira do Livro, Cirandar ONG, FestiPoa Literária, por exemplo, nasceram de iniciativas individuais ou de pequenos grupos de gente interessada em literatura. Esses eventos se mantém até hoje por conta da dedicação de algumas pessoas, à revelia do poder público ou com mínimo apoio das administrações públicas”. Ramos ainda aponta que a Coordenação do Livro e Literatura de Porto Alegre é um exemplo de dedicação, “mas não tem verba nem pessoal suficiente para trabalhar como deveria”.

Já Luís Augusto Fischer avalia que o apoio para a literatura poderia ser maior, no entanto, não considera tão negativa a atuação do poder público. “Talvez não seja uma lógica propositiva, mas é de fato uma lógica receptiva”, analisa ele, ao citar iniciativas como o Fumproarte, fundo municipal que presta apoio a projetos culturais selecionados por meio de edital público. O projeto “Autor Presente”, do Instituto Estadual do Livro, também é citado por Fischer e Petrarca como uma das iniciativas que fomentam a leitura de autores locais — desde 1972, o projeto leva escritores para falar sobre uma de suas obras em escolas da rede pública estadual e outras instituição. “O que talvez explique a movimentação literária em Porto Alegre é uma tradição e um ímpeto cultural mais aguçado para a literatura”, avalia Diego Petrarca. O poeta ainda aponta que “frequentar eventos e oficinas literárias é uma maneira de se envolver culturalmente em grupo, papel que em outros lugares pode ser suprido pela música ou outras artes, mas aqui a literatura é uma opção forte”.

Petrarca ainda cita o pioneirismo da PUCRS na implementação de mestrado e doutorado em Escrita Criativa como mais um indicativo do interesse em torno da produção literária. Ele ainda acrescenta que este é “um modo de instrumentalizar e profissionalizar o trabalho do escritor, o que tem colaborado com o desenvolvimento da atividade em Porto Alegre”.

A cena literária porto-alegrense não deixa de ser um reflexo do atual cenário da literatura brasileira: autores cada vez mais ligados a temáticas urbanas universais e um público adulto crescente e mais participativo em festivais e outros encontros literários. A diferença é o grau de intensidade dessas transformações. “Essas mudanças no contexto nacional acabam se potencializando em Porto Alegre por conta da tradição e do circuito literário já desenvolvido na cidade”, conclui Rosp.