Entrevista | Evandro Affonso Ferreira

Um inventariante dos espólios afetivos

Ronaldo Cagiano

Divulgação


Ganhador do Prêmio APCA 2012 com Minha mãe se matou sem dizer adeus (2011) e do Jabuti 2013 com o romance O mendigo que sabia de cor os adágios de Erasmo de Rotterdam (2012), Evandro Affonso Ferreira bateu duas vezes na trave como finalista do Prêmio São Paulo de Literatura com essas obras. Mineiro de Araxá radicado em São Paulo, estreou na literatura após os 40 anos e algumas pontes de safena. Embora não tivesse publicado livros até então, e cursado apenas até o ginasial, a universidade não lhe fez falta, porque a palavra sempre o perseguiu. Por muitos anos trabalhou como redator publicitário, atuando em diversas agências. Como criador, assinou propagandas de importantes empresas nacionais, tendo inclusive colaborado com o Pasquim em sua fase áurea.

Foi gerente de livraria e dono de dois sebos, “Sagarana” e “Avalovara”, localizados no bairro de Pinheiros em São Paulo, espaços que se converteram em ponto de encontro de amigos, intelectuais e escritores, uma espécie de bunker literário onde, como o próprio autor e proprietário gostava de propalar, só vendia alta literatura.

Ligado visceralmente à palavra, outra faceta de Evandro é o trabalho que vem realizando, há anos, ao explorar o diversificado universo do nosso idioma. Como um escafandrista, meio arqueólogo e Quixote, garimpou em seu léxico pessoal cerca de três mil palavras sonoras, no que considera seu dicionário particular.

Autor de obras originais, privilegiando uma acurada pesquisa de linguagem e com uma prosa de atmosfera com requintes metalinguísticos, Evandro criou uma matriz literária bastante peculiar e desconcertante, realizando uma espécie de estética do desassossego. Daí resultam o minimalismo estiloso dos contos de Grogotó (2000) e a temática escatológica e de construção refinada dos romances Araã! (2002), Erefuê (2004), Zaratempô (2005) e Catrâmbias (2006). Por esse conjunto recebeu de Millôr Fernandes o epíteto de “o vivificador das palavras”, genializando suas extrações do aluvião vernacular.

x
Sua estreia deu-se depois dos 40 anos com Bombons recheados de cicuta, que saiu por uma pequena editora, cujos textos mesclavam humor, ironia e os insights do publicitário, mas já se anteviam certas peculiaridades que marcariam seus livros futuros. Por que demorou tanto a mostrar seu trabalho?

Minhas indecisões são congênitas — mais antigas que aquelas pinturas rupestres que aparecem nas grutas de Altamira ou Dordonha. Guardei durante muitos anos neutralidade literária: fiquei entre o humor e o drama. Até que finalmente inclinei-me, sem abalos nem traumas, para o miniconto entrando de vez para a literatura digamos séria lançando o referido Grogotó!

Os títulos de seus dois últimos livros e a própria linguagem contrastam com o que você vinha produzindo nos últimos doze anos. Como se deu essa reviravolta no seu processo criativo?
Costumo dizer que minha literatura se divide entre antes e depois de Minha mãe se matou sem dizer adeus: no começo, me preocupava com a vida da palavra; agora, com a morte do homem.

No final dos anos 1990 você reunia aos sábados, numa livraria da Vila Madalena, alguns escritores, entre novatos e veteranos, para discutir literatura e trocar experiências criativas, dando origem ao grupo que Nelson de Oliveira mais tarde batizaria como Geração 90. Fale sobre essa fase na sua carreira.
Nessa época havia criado o Sagarana — sebo que ficava no bairro de Pinheiros, em São Paulo. Livraria minúscula, mas o acervo era de muita qualidade literária. Sempre soube que uma pedra grande não cai mais depressa que uma pedra pequena. Um belo dia entrou nele o querido Marcelino Freire. Conversa vai, conversa vem, decidimos montar um grupo de escritores. Bate-papo todo sábado das 4 às 6 da tarde. Local? Livraria da Editora Hedra — Vila Madalena. Sei que a coisa foi crescendo de tal maneira que um escritor convidado ia convidando outro para o sábado seguinte. Conclusão: em menos de um ano o grupo era formado por mais de vinte escritores. Todos hoje muito conhecidos da mídia.

2
A experiência pessoal e dilacerante com a morte de uma irmã, que padecia de uma doença terminal, foi leitmotiv de um de seus livros mais pungentes e que também traz outra característica de sua obra: o diálogo não apenas com a sua memória afetiva como também com diversos autores e com a própria literatura. Você considera que está fazendo autoficção?

Já escrevi sobre quase tudo, quase todos, inclusive eu. Sei que meus narradores olham o mundo (tal qual Nietzsche) com muita suspeita, além de viver num istmo entre a solidão e a morte.

Em Minha mãe... e O mendigo... você passa a se preocupar menos com a linguagem e mais com a história, obras que surgiram numa fase crucial de sua vida, com um contato mais íntimo com a realidade humana e social. Você os escreveu a partir de uma mesa num café de um shopping paulista. Como se deu esse processo?

Conforme já disse, passei a me preocupar mais com a morte do homem. Talvez esta seja a verdadeira resposta para a pergunta anterior: estou falando de mim mesmo, da própria velhice, esperando, inútil talvez, que a solidão se consuma “eo ipso”, através de si mesma com a chegada da morte. Possivelmente falo (nos meus últimos livros) da decrepitude dos outros para se esquecer da própria bancarrota. Jeito quem sabe de deixar as próprias derrocadas menos danosas.

Para a óbvia pergunta dos debates e oficinas que ministra, você tem respondido que o papel do escritor é o A4, mas apesar do chiste, você acredita na função primordial da literatura neste mundo e tempo que privilegiam mais o “ter” do que o “ser”? Há lugar para ela hoje em dia, quando as editoras estão mais regidas pela idolatria do deus mercado do que pelo próprio valor de uma obra?
Escritor modo geral deve seguir em frente solitário feito Antígona ou Fausto ou Hamlet ou Tristão. Pouco preocupado em transformar precipícios em planícies. Deve se colocar sempre num ângulo privilegiado onde é possível flertar com a inquietude. Neca neres de cair nas armadilhas da fama e dos tapinhas nas costas. Escrever e escrever mesmo sabendo que somos náufragos sem possibilidade de resgate.

2
Que autores fazem parte do seu cânone ou são seus gurus literários? Que livro mais o perturbou?

Gosto do Bruno Schulz, do Cornelio Penna e da Hilda Hilst, entre outros. O livro que mais me perturbou foi Ascese, de Nikos Kazantzakis.

Sabemos que na literatura, principalmente pela crítica e pela mídia, há muitas injustiças, silêncios e negligências que sepultam obras e autores, enquanto há muita mediocridade incensada. Cite uma grande obra ou grande autor esquecido e que merece ser resgatado.
A menina morta, de Cornelio Penna.

Não se vê mais hoje o crítico literário nos jornais, apenas resenhas que pouco aprofundam sobre os livros, ficando a boa crítica restrita aos meios acadêmicos. Você acha a crítica necessária? Até hoje não descobri se passarinho precisa de ornitólogo para voar. Hoje a literatura vem sendo amplamente produzida em blogs, revistas eletrônicas e outros suportes.

Como você vê, ou avalia, a função da internet nesse processo?
Não acompanho nada: sou desplugado. Ser pré-socrático.

Que balanço você faz do atual cenário da produção literária brasileira (ficção e poesia)?
Acho que não devemos ser implacáveis feito aquela bula “summis desiderantes” — popularmente conhecida no século XV como o canto de guerra do inferno. Mandavam todos para a fogueira, implacavelmente.

Qual o saldo que você faz de sua carreira? E o que o leitor pode esperar de sua produção para os próximos anos?
Quando escrevo, dou o máximo de mim; espero que o leitor faça o mesmo quando me lê. Meu próximo livro, a sair pela Record em 2014, chama-se Nunca houve tanto fim como agora.

x
Em suas obras há uma forte marca da intertextualidade, a presença de um diálogo (in)tenso e dialético com diversos autores e outras artes e um flerte com a filosofia. Em seu próximo livro há também esse trânsito?
Próximo livro começa com o seguinte parágrafo: VEM, LUMINOSA ANTÍGONA, SEJA MINHA CARPIDEIRA: EU TAMBÉM ESTOU SENDO ENTERRADA VIDA. Conta história de mulher numa UTI que se imagina, para digamos driblar a morte que está a caminho, andando pelas ruas de uma metrópole apressurada. Tenho lido tudo sobre Antígona para escrever este livro.

Seus livros têm sido bem recepcionados pela crítica e conquistado prêmios (como APCA e Jabuti). Isso tem repercutido no acréscimo de leitores? Dá pra pagar as contas?
Prêmio é sempre bem-vindo. No meu caso, sim, ajudou a vender uns 200 livrinhos a mais. Sou escritor de poucos leitores — selecionados, é bom que se diga.

O Brasil tem um dos piores índices de leitura do mundo. Como leitor, escritor e ex-dono de livraria, como essa realidade pode ser alterada?
Educação, educação, educação — e menos corrupção. É uma rima, mas também é uma solução.

A partir de sua experiência ministrando oficinas literárias para diversas faixas etárias, que recado você daria aos candidatos a escritores?
Aos novos escritores recomendo ler mais e escrever menos.

Em O feijão e o sonho, Orígenes Lessa trata desse velho embate do escritor que se digladia entre o prazer de escrever e a necessidade de trabalhar . Esse dilema já o visitou?
Vivo com muito pouco — sou escritor-monge-trapista, por assim dizer.