Ensaio | Arlete Parrilha Sendra

Olhando o autor pelo retrovisor

Especialista na obra de José Cândido de Carvalho, a professora Arlete Parrilha Sendra faz uma retrospectiva sobre a vida e a obra do autor de O coronel e o lobisomem, livro que em 2014 completa 50 anos e é um dos  marcos do romance brasileiro


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Neste ano de 2014 todo o Brasil comemora o centenário de nascimento de José Cândido de Carvalho, escritor fluminense que, com Jorge Amado, José Lins do Rego, Erico Veríssimo, Guimarães Rosa, Josué Montelo, Raquel de Queiroz, entre outros, compõe a ciranda literária que canta sua terra, sua gente.

Também neste ano são comemorados os 75 anos do lançamento de Olha pro céu, Frederico! e os 50 anos de O coronel e o lobisomem, livro-senha que abriria a José Cândido as portas da Academia Brasileira de Letras, instituição na qual ocupou a cadeira número 31, que pertencera a Cassiano Ricardo. Também lhe abriria o espaço sociocultural que viria ocupar em cenários brasileiros e de outros países, como a França, Alemanha, Portugal e Argentina, onde o Coronel Ponciano de Azeredo Furtado foi recebido.

José Cândido de Carvalho viveu sua infância em Campos, no Rio de Janeiro, entre espaços urbanos e rurais, ambos encontráveis em sua obra, levando-nos a ver em sua ficção um pássaro que pousa no real e ao levantar voo vai levando fragmentos desse real, construindo, em outro tempo e em outro momento, um real ficcional. Ou ficcional real.

Menino de infância pobre, estudou em escolas públicas e ainda garoto foi ajudante de farmacêutico, cobrador de uma firma de aguardente e de açúcar. Aos 16 anos, trabalhou em jornal. Essas experiências ele as levou para sua obra. Com os conhecimentos farmacêuticos compôs a alquimia de seu texto: misturou linguagens, inventou fórmulas; da aguardente, ele encontrou o teor da cana/palavra na medida certa, capaz de produzir efeitos etílicos/estéticos que desencadeiam risos, tiram as censuras, levando seus personagens a se despirem, desvelando sua mais secretas intimidades; da refinação do açúcar, aproveitou a musicalidade dos carros de boi que transportam o produto bruto que alimenta esteiras que alimentam caldeiras. E das andanças desses mesmos carros recolheu o imaginário entre os campos que um dia foram dos goitacazes. E, nas finalmências, documentou esse imaginário tal qual faz um escritor. Estava pronta sua obra.

Ainda em Campos, em 1937, José Cândido de Carvalho termina, na Escola de Direito Clóvis Bevilacqua, seu curso. Torna-se advogado, satisfazendo, assim, o desejo de seu pai, ver o filho fotografado com beca. Mas será o jornalismo que dará alicerces econômicos a sua vida e a marcará.

Ao deixar Campos, em 1939, com destino ao Rio de Janeiro, leva, como passaporte, o livro com o qual fará seu ritual de iniciação literária, Olha pro céu, Frederico!, romance acontecido nos tempos do gramofone, em Campos dos Goytacazes, ficção contextualizada que vem trazendo, entre caldeiras e fornalhas, entre memória e relembranças, um retrato dos engenhos de Campos às primeiras usinas, fazendo a ficção e o real se co-fundirem e se confundirem.

No Rio, faz amizade com Vargas Neto, neto de Getúlio Vargas. A convite deste, ingressou no jornal A Noite. Fechado o jornal, por razões políticas, José Cândido torna-se funcionário público e, por indicação de Amaral Peixoto, vai ser redator do Departamento Nacional do Café, no Ministério da Indústria e do Comércio. Torna-se redator de O Estado. Também foi copidesque de O Cruzeiro, a revista de maior circulação do país naquele momento. Desta revista tornou-se, mais tarde, diretor. Colaborou com o Jornal do Brasil e escreveu em A Cigarra, revista mensal, editada por Herberto Sales.

Somente 25 anos após lançar Olha pro céu, Frederico!, em 1964, portanto, sai pelas oficinas de O Cruzeiro seu livro O coronel e o lobisomem. A escritora Raquel de Queiroz vê no livro uma obra-prima. Erico Verissimo disse: “Não exito em colocar O coronel e o lobisomem entre os melhores romances da literatura brasileira de todos os tempos”. Já Manoel Cavalcanti Proença escreveu que “a força do livro e a compostura do herói lhes dão entrada na literatura de sempre”. Ou seja, o livro recebe total consagração.

A narrativa de O coronel e lobisomem, de José Cândido de Carvalho, tem seus alicerces ficcionais em reais espaços geopolíticos por onde a invenção criativa ganha existência e o autor, via narrador, deixa fluir sua memória afetiva. Inventando um mundo com formas linguísticas verticalizadas, o autor retoma os elementos culturais de suas raízes e, mimeticamente, fá-los explodir para além do continuum da história, toca o lado de lá do passado para que ele possa ser alcançado pelo lado de cá do futuro, numa analogia com a ponte heideggeriana: “Sempre e de modo diferente, a ponte acompanha os caminhos morosos ou apressados dos homens para lá e para cá, de modo que eles possam alcançar outras margens. A ponte reúne, enquanto passagem que atravessa. Assim, em travessia, a cultura — como a ponte — vem trazendo o outro lado, outro tempo/espaço que ela sequência e, como águas heraclitianas, vem trazendo a história de suas margens.

A narrativa O coronel e o lobisomem tem como narrador o próprio Ponciano. Assim, personagem e narrador se alternam: ora é o narrador Ponciano que fala do personagem Ponciano, como se outro fosse, ora é o próprio Ponciano que se narra, ou seja, se autonarra, dando expressão e originalidade a essa autobiografia ficcional.

A narrativa se serve de diferentes espaços contextuais: terras da baixada campista, Santo Amaro, Ponta Grossa dos Fidalgos, São Gonçalo, Fazenda Paus Amarelos, e em Campos, Rua da Jaca, Rua da Quitanda, Rua Aquidabam, altos da livraria Ao Livro Verde. E registrará a presença de personagens que integram os clãs tradicionais de Campos, como a família Coelho dos Santos e espaços socioculturais, como teatros, hotéis, lojas e casas de “tolerância” que marcaram presença no desenrolar da história da cidade.

Ponciano surge na narrativa como menino órfão, criado pelo avô Simeão, rico proprietário, com terras de avantajado porte. E fortuna de incalculável valor.

Surpreendido em vadiagem com uma pardavasquinha, palavras de Ponciano, o avô o manda para colégio de padres, em Campos. Seus estudos ele os prolonga, fazendo o avô acreditar em sua incompletude. Paralelamente, se torna frequentador de festas e arruagens.

Com a morte do avô Simeão, Ponciano volta a Sobradinho, casa em que vivera na infância. A fortuna que lhe é deixada lhe confere a patente de Coronel, título que Ponciano repetirá sempre: “de que tenho honra e faço alarde”. Rastreando a tessitura narrativa, constatamos que ela se abre com um frustrado caso de amor que vai provocar a primeira fissura na experiência interior do adolescente Ponciano. Cito Ponciano: “Assim por causa de um par de tranças de uma tal de Dona Branca dos Anjos, apareci em Gargaú, cidadezinha criada e amamentada no areal da costa.[...] Pelas prendas e esmerada guarnição traseira da menina Branca dos Anjos lá cheguei em trenzinho de ferro e lombo de canoa. Gargaú trancou a porta em minha cara”.

Acolhido por Dadá Pereira, em casa que abrigava moças de vira-e-mexe, mulheres não desposáveis, mas mulheres comíveis, expressão que encontramos em estudos antropológicos, Ponciano vai ser de “serviço completo”. E é nesse ambiente de luzes e sedução que Ponciano vai encontrar antídoto para sua primeira dor de amor.

Nos espaços rurais, Ponciano vai pontificar. Seu tipo físico, sua voz alta, as vantagens que contava, o caso da sereia, o caso do lobisomem, a onça pintada, as conquistas jamais acontecidas mas por ele jamais assim assumidas fazem dele uma figura respeitável. Amigo incondicional, Ponciano se torna maior que ele próprio.

Para atender a demandas de suas terras no fórum, Ponciano vai a Campos e é a partir desse momento que ele, levando como bagagem “acontecidos e sucedidos” em noites trevosas de longes antigamente, vai viver o conflito entre as diferentes culturas: a rural e a urbana, através de fatos diversos da vida cotidiana, marcados concretamente entre ele, Ponciano e Dona Esmeraldina — a mulher de olhos de capim —, símbolos de diferentes classes sociais, de diferentes culturas, representantes de forças sociais em confronto, em simulação de um caso de amor.

Ao deixar o Sobradinho, em Mata Cavalos, em Campos, o Coronel se instala no Hotel das Famílias, ali na Beira-Rio e, na carona de seu dinheiro, passa a ter uma ação efetiva na vida social, onde Dona Esmeraldina, Dr. Pernambuco de Oliveira, Salatiel de Castro, o Castrão do Banco da Província, além de Fontainha e Portela — bisbilhoteiro da imprensa —, o envolvem e seduzem.

Observador irônico de sua sociedade, José Cândido nos traz, através de um background, a evolução histórica que acontecia nos bastidores do Brasil, quando as rodas dentadas da primeira revolução industrial aportam

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no país. E faz seu ensaio inicial nas terras de Campos, que no texto não é uma geografia ficcional.

Instalado na cidade, Ponciano vai buscar um novo sentido para sua vida e, para isto, rompe com o mundo rural, ainda que o leve dentro de si, em sua linguagem, em seu repertório — patrimônio herdado de seu autor — marcado pela relação homem-natureza, dentro de um sistema simbólico-ideológico, onde sua autenticidade era moeda de respeito e valor. Na cidade, Ponciano vai ser envolvido pela ambição egoísta que faz do outro, depois de usado, objeto descartável.

Sujeito solar, Ponciano não percebe que seu desejo de ascensão social estava barrado desde sempre pela estrutura da cultura brasileira que impede a inclusão dos excluídos no contexto político- nacional. Não percebe que está excluída a linguagem que traz o espaço rural de onde ele, sujeito do discurso, fala.

Dona Esmeraldina, a mulher que enfeitiçara o Coronel, ele a conhece, quando, instalado na Rua da Jaca, debaixo de agasalho, metido na fervura, Ponciano “recebe doutor novo, de canudo ainda molhado nos exames, o doutor Coelho dos Santos, para tratar de uma maleita da pior”. Está em processo de convalescênça, quando vê “parar na porta carro de cerimônia. Era Pernambuco de Oliveira, munido de senhora, moça de sala e salão, que mal pisou a soleira da varanda já suas águas de frasco aromavam a casa inteira”. E será dentro desta estrutura que serão desveladas as ações e atitudes que vão constituir a problemática humana desse romance.

Entendemos que há um sociólogo no avesso desta ficção carvalhiana que é reveladora do fabuloso, do fantástico ato de viver. As personagens se tornam símbolos de um humano jeito de ser em transformação, transformação muitas vezes em descompasso com a paisagem esboçada pelo por vir.

Interessa-nos, nesta leitura, apreendermos a visão do feminino que, através do Coronel, José Cândido de Carvalho documenta, dentro de uma certa complexidade estética, dentro de um mundo feito por ideias já feitas.

No panteão feminino estruturado pelo Coronel, desfilam mulheres que insistem na construção de um novo contrato histórico. Mulheres que recusam se pautar pelo espelho retrovisor.

Se na adolescência Ponciano conhecera o primeiro não do amor através de Clara dos Anjos, outras tentativas serão vividas pelo homem que acredita ser o amor mercadoria adquirível segundo seu poder de compra.

Por passarelas do Sobradinho desfilam, em sonhos, mulheres que — Ponciano não sabia — recusavam ampliar o coro da vitimização e exigiam ter seu destino em suas próprias mãos. Assim, depois de Clara dos Anjos, “a menina de andar de cobra”, de abraço não consentido, Ponciano conhece dona Isabel Pimenta, “um morenão, puxado a canela, olho de água e beiço de colchão”, professora que despertara, em Ponciano, o sonho de Azeredinhos. Cito Ponciano: “Já presenciava a moça professora na fartura dos nove meses, na roupa fofa de esperar parteira. Mais de dez Azeredinhos Furtados era eu capaz de jogar no mundo. Mais de dez”.

Ponciano lê o parecer de Isabel como se Isabel fosse. Acreditava estar a moça professora ‘ardida de sentimento’’.

Assim, um dia, “sentado na ponta da cadeira, lenço metido na trouxa da mão, Ponciano, em farda militar”, faz o pedido:

“Tinha lá meus anos entrados, léguas de pasto, dinheiros forros no Banco Hipotecário, ensinamentos de escola, fora outras vantagens como oficial superior e homem de irmandade. E dei o último laço no petitório mais ou menos assim:

— De Vossa mercê espero graça favorável”.

A moça professora retornou a Campos para entendimentos com os pais. E de Campos a resposta viria.

Ponciano esperou. Esperou e a resposta chegou. E foi com “Peito afrontado e perna tremosa” que entra na leitura: “Nem demorou duas linhas, logo no rabo dos cumprimentos (Como-vai- -como-tem-passado-o-coronel?),tive o primeiro desgosto. Entre desculpas e desculpinhas, a mestra repelia meu pedido. Com um “cachorra”, Ponciano faz sua catarse. Na verdade, Ponciano sofria com o não de Isabel, mas o vexame por que passara na sessão de despedida o atormentava. Trocara a aromagem da pólvora por água-de-cheiro. Lembrou-se do amarrado de cravos que levara a dona Isabel. Amarrado que dava para 20 despedidas. Lembrou-se de que Juca Azeredo até pano de apadrinhagem mandara cortar. Juquinha Bezerra tinha razão: “Mulheres, tudo serve, Coronel. Todas têm seu proveito. E dona Isabel passou. E a vida tem pressa”.

Lembro que Ponciano traz os traços de caráter do homem cordial cantado por Cassiano Ricardo, por Ribeiro Couto, cujo fundamento sociológico foi dado por Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil: convívio humano, fraqueza de caráter, ambiguidade, a crença de ser possuidor de uma certa esperteza.

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Dando vida a seus personagens, José Cândido de Carvalho traz para sua ficção os momentos iniciais em que o feminino começa a ensaiar seu pensar, a assumir seu libertar-se. E paralelamente nos mostra que o texto literário é mais que palavra. É vida.

Ponciano continua sua caça. Quer encontrar a mulher capaz de fazer dele homem-sapo, homem-príncipe. E vai usar o Vermelhinho-pé-de-pilão, o capitãozinho que atemorizava todos os galos da região, como senha para chegar a Caetano de Melo, que guardava, em sua casa, a solteirice de dona Bebé de Melo.

Ponciano chega às posses de Caetano. Conhece dona Antônia, dona de “platibandas sedutoras, coisa de admiração, apetrechos de fazer vista” e muito do agrado de Ponciano. Mas Juju Bezerra descarta dona Antonia por ser dona Bebé a apalavrada. Mas dona Bebé não aparece, uma caxumba exigia o resguardo do vento. Ponciano, que cortara pano novo para a visita, pensa em fazer a troca. Dona Antonia servia. Juju Bezerra não concorda, dona Bebé o aguardava. Começasse Ponciano a “preparar garrafada de jurubeba e levanta homem”. Dona Bebé era macuco no embornal. Mas não foi. Livre da caxumba e ao saber que Ponciano fora também fazer vistoria de casamento, em estado de susto, pede asilo aos primos de Macaé. Casar não casava. Iria para um convento. Preferia a mortalha. Ponciano, jamais!

Restava ainda a dona Antonia. Restava uma esperança. Engano. Ponciano aguardava a caxumba de dona Bebé para dela receber o sim, um marchante de gado, desencalhava a solteirice de 40 anos de dona Antônia. E sabedor de que não havia mais ninguém da família, nem nas redondezas, Ponciano catarticamente (?) diz: “Nunca, seu Bezerra, que vou ficar embaraçado nesse cipó-rabo-de-macaco”.

Houve algumas e outras marias-mijonas, expressão ponciana, interessadas no Coronel. Mas não mereceram seu registro, como as filhas de dona Bidu. Tão logo dona Bidu soubera que o Coronel cheirava interesse na mais tenrinha de suas filhas, a de “tranças de boneca”, escondeu sua menina. Ponciano lera a intenção de dona Bidu: forçar Ponciano a extrair a menina em garupa de cavalo, em noite de fantasia. Mas o Coronel recusa. E diante da silenciosa recusa, dona Bidu espalhara: “Prefiro ver a menina amortalhada do que em poder de Ponciano”.

Também uma sereia recatada e de fino trato ganha espaço no panteão. Encantara-se com Ponciano. A moça das águas a ele se oferece. Ele a toma nos braços, arrasta-a para o seco, deixando em águas, a parte escamosa, sem nenhuma serventia. Ouve-lhe o canto. Escuta seu convite. Com ternas falácias, recusa seus palácios, carruagens de ouro que no fundo das águas verdes lhe pertenceriam. A sereia, em lamento triste, escorreu para profundezas inalcançáveis. As águas cresceram. Enquanto a lua se escondia. E a noite se fazia mais escura que a escuridão.

Ao construir sua obra, com singular imaginário, e com plurais perfis e destinos humanos, José Cândido de Carvalho nela esculpe e cinzela dramas e conflitos ideológicos que se fundem em seu arsenal semântico. E tomando o signo feminino, estabelece uma tensão paralelizada com a força de uma cultura em trânsito.

José Cândido de Carvalho documentou, em farsa de ficção, a relação entre o homem e a mulher, sem nenhuma proposta de acusação, tão só mimetizou a vida em seu correr e transcorrer, vendo nessas relações um fenômeno cultural, portanto, passível de ser modificado. Afinal, constituíram os homens — aqui me centro no gênero — a única parcela do universo incapaz de evolução?

Não existe, insistimos, uma feminilidade universal. Como não existe a masculinidade singular. Existem feminilidades. Na modernidade líquida está presente uma feminilidade renovadora, essa feminilidade que se a ela for dada um fósforo, com ele acenderá estrelas, constelações. Com esse fósforo o céu inteiro se iluminará.

Concluindo o panteão, presença entre presenças, está dona Esmeraldina.

Se na adolescência Ponciano fora em busca de Clara dos Anjos, mito de mulher-flor; se lá atrás, dona Isabel era a mulher esposável, que fazia nascer os sonhos de Azeredinhos; se a menina de “tranças de boneca” foi ingenuamente pensada, agora Ponciano persegue Esmeraldina, a mulher-caça, a mulher comível, mulher com tempero de prazer, cujos apelos carnais faziam latejar suas pulsões inconscientes e o impediam de pensar em Azeredinhos.

Dona Esmeraldina é a mulher que fascina. E intriga. E instiga. Prende e enfeitiça. Ela joga com Ponciano, aprisiona-o em uma promessa escamoteada no amanhã, dando a ele a ilusão de seu querer e desejar e não poder.

Escondendo sua verdadeira identidade, dona Esmeraldina, mulher de escrúpulos duvidosos, prometia, em insinuações, inacontecíveis acontecíveis e Ponciano, no aguardo dessa felicidade, não sentia, não via na espera perda de tempo. Ponciano que não alcançava os ardis esmeraldinos, não des/velava a mulher. E sem lhe tirar os véus, ele não a via. De dona Esmeraldina ele cobiçava a carne. Seu cheiro. Seu corpo. Enquanto dona Esmeraldina cobiçava seu dinheiro: “Passei ao bolso do amigo doutor cinco pacotes de contos de réis e uma garantia de mais cinco”. “Como quem não sabia de nada, pedi a Nogueira (o marido de dona Esmeraldina) o especial favor de abrigar, na caixa forte do escritório uma certa quantia de que eu andava desprecisado”. “E enquanto dona Esmeraldina ficava cada cada vez mais embeiçada, amparei empréstimo do marido no Banco da Província”.

Vivendo entre Eros e Tanatos, dona Esmeraldina vai exigir de Ponciano viver seu desejo (dela), sem direito à posse. Em Ponciano e com Ponciano ela testa o poder da mulher. E uma plural sensorialidade vai emoldurar essa relação que tem como fundo o código sonoro orquestrado pela música do caixa de bancos, sons que incitam a inquietude gozosa e a fruição da mulher “de olhos cor de capim”.

Enquanto Ponciano sonhava com os dois corpos em contorcimento pelas garras de desejo, corpos incendiados e enrijecidos pelas núpcias proibidas, dona Esmeraldina pensava dinheiros, insensível às promessas insinuadas, adiadas para um amanhã jamais “chegável”, insensível às cicatrizes que ia imprimindo no soma e nos semas de Ponciano.

Dona Esmeraldina jogava com promessas: “Mas já preveni Nogueira. Acabada essa barafunda (política) vou embora, vou descansar no mato”.

Ponciano conta na ponta dos dedos os dias que faltavam para o prazo da eleição. Cito Ponciano: “Já via a moça do chalé sozinha comigo em ermo de pitangueira, em vadiagem de ninguém ver”.

E o tempo passou. E a eleição acabou. E Nogueira perdeu. E dinheiro vai, o dinheiro de Ponciano não voltou. E ele que valia pelas cifras que tinha, perde seu valor na bolsa dos afetos que não existiam.

Cito Ponciano:

“Um dia, uma tarde, na Praça da Quitanda, vi passar, em carruagem de luxo, Dona Esmeraldina e Selatiel de Castro, o Castro dos dinheiros a juro do Banco da Província... Ao dar comigo espetado na calçada, a mulher de Nogueira rebaixou os olhos... Dei de ombro: Vaca!”

Não há surpresa no desfecho da narrativa. Ponciano perdera tudo. Apenas um sabiá-laranjeira, “muito cantativo, mais que um tenor das ribaltas”, lhe faz companhia.

Como se um oximoro fosse, Ponciano retorna ao Sobradinho, de árvores adormecidas e castradas. De pios negros. Ares tensos. Sons quebradiços. Cheiro de bolor. E vê as ervas-de-passarinho sobradas das cumeeiras meterem “os dedos nos rachados das paredes”. Ali e aí é atravessado pela dor, na carne e no espírito. Se revê na narrativa, que ele próprio escrevera. Rebobina cada momento seu. E então, Ponciano vê o que ao viver não vira. Vê suas raízes arrancadas. Vê a tragicidade de seu destino.

E, nas “finalmências”, no instante existencial único, quando seu destino se cumpria, Ponciano é iluminado por uma intensa revelação interior, por uma fresta de luz que penetra nas rachaduras do vivido, momento em que a realidade é descortinada. E sem o desejo que o impedia de o ver além do que lhe era visível, de ver os signos que descobrem pessoas e revelam o que está no interior do homem, Ponciano tem lembranças humilhadas e são essas lembranças que coreografam seus momentos últimos vividos.

Em longínquo som, ele ouve a vozinha do anjo comedor de terra: “Lá vai o Coronel Ponciano de Azeredo Furtado em sua mulinha de guerra”.

O luar caía a pino do alto do céu.

 

Arlete Parrilha Sendra é graduada em letras clássicas (português, latim e grego), mestre em Literatura Brasileira, doutora em Literatura de Língua Portuguesa e pós-doutorada em semiótica. Atualmente, é docente e pesquisadora da Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf). Vive em Campos dos Goytacazes (RJ).