Contos | Mário Bortolotto

Harvest Moon

Antes de todas as mulheres, de todos os filhos e amigos bêbados e sóbrios e carentes e indiferentes e patéticos e amáveis e execráveis. Antes dessa solidão, de todos os arrependimentos e de eu ter entendido todo o desperdício, das noites desesperadas e desperdiçadas, dos poemas que mandei pro exílio e das mulheres que eu chamei de volta, que eu implorei para que voltassem e que não me quiseram mais e que eu passei a admirar por tal atitude sensata. E essas mulheres subiram no meu conceito. E elas se tornaram intocáveis, inalcançáveis. E de todas as noticias boas que recebi sobre elas. De como estavam felizes com seus novos homens bem apessoados e prósperos e novos empregos e novas vidas cheias de esperança. É, porque agora livres de minha indigesta pessoa era possível ter esperança. E eu devia altruisticamente ficar feliz por elas. Mas tudo o que eu intimamente queria mesmo do alto da minha mesquinhez era que elas se fodessem muito com seus novos homens bem apessoados e novos empregos e novas vidas cheias de esperança. Antes dos impérios derrubados, dos suicídios frustrados, das festas que não quis participar, dos bares da moda que não quis ir, das estreias de teatro que não quis assistir e todas as rejeições e todos os contratos que não assinei e todas as grandes chances que deixei passar. Antes tinha essa lua explodindo no céu. E meus amigos que uivavam bêbados. E tinha ela santificadamente nua embrulhada na bandeira azul celeste do Londrina Esporte Clube deitada no banco traseiro do carro lendo Hunter Thompson. E tinha esses potes de doce de leite que ela não conseguia abrir e tinha os bolinhos de chuva e panquecas que ela sabia fazer tão bem e tinham esses intermináveis cafés da tarde. E tinha essa lua entrando pela porta do bar. E ela saindo do reservado com o cabelo molhado e colocando um Neil Young na jukebox e me sorrindo me convidando pra dançar e eu acanhadamente aceitando e morrendo de vergonha por não conseguir acompanhá-la. E tinha eu descompensado, dançando desajeitadamente Neil Young com a mulher mais linda do mundo e sabendo que não ia dar certo e que era só questão de tempo pra eu voltar pro inferno que eu conhecia como lar. Antes das putas, dos leões de chácara, e de ser expulso dos puteiros por leões de chácara e de sair espancando orelhões como se eles tivessem algo a ver com o fato de ela gritar comigo do outro lado da linha e me chamar de fracassado e de eu voltar pro puteiro e do leão de chácara escarnecendo de mim: “Ah, você voltou. Quer que eu o chute de novo pra fora?” E antes de ser chutado de novo pelo leão de chácara e por ela e por todas as outras e antes da chuva de madrugada e antes de eu tentar ligar de novo dessa vez a cobrar porque eu não tinha mais ficha e nem cartão e nem crédito nenhum em nenhum buraco daquela cidade do inferno. E sequer alguma mulher pra eu ligar porque a única mulher que ia querer receber um telefonema meu era minha mãe que não tinha telefone e mesmo que tivesse ela já estaria dormindo e eu não queria acordá-la e meu pai não ia gostar do telefone tocando principalmente se soubesse que era o seu filho inútil do outro lado da linha. E antes de tudo, antes da guerra, antes até de Deus, tinha minha mãe arrastando suas pernas com o joelho quebrado depois de todos os espancamentos e noites solitárias e violentas no Jardim do Sol, tirando todas suas economias da Caixa Econômica e me comprando essa máquina de escrever, essa velha Olivetti Lettera 82. E tudo o que saiu dela, todo o sangue e excrementos e volúpia e maldições e descrença e desejos de vingança expurgados em letras deliberadamente inconsistentes. Mas é só o que eu tenho pra essa vida. Essa lua que emoldura o cenário triste da minha inadequação. Entre o que eu experimentei como nascimento e do que eu entendo como eternidade.

André Coelho
Bortolotto


Your song

Tem isso que eu posso te oferecer. Esses movimentos desconexos. Essa inaptidão e esse desconforto de estar. E tem essa canção. E eu não quero levantar da cama porque tenho medo de pisar nos cacos de vidro do abajur que se quebrou na última briga. Tem essa náusea. Tem essa ferida na boca. Tem o sangue pingando na pia e todo o ódio, todo o ódio que não se atenua. Nem com toda a visão do sangue. O ódio que permanece. Que sobrevive. Que resiste. A todas as canções de amor. A todas as bem intencionadas canções de amor. Porque não se enganem, o amor nunca passou de uma boa intenção. Nós ficamos cientes disso depois da primeira rasteira, do primeiro nocaute, do primeiro beijo na lona. Mas ainda assim seguimos acreditando que é possível deixar pra trás. Todo o repertório. Você sabe, as mulheres, os desejos secretos, as noites de bebedeira, os amigos debaixo de jardins floridos. E os aeroportos e estações rodoviárias com suas canecas de chopp e seus donuts estúpidos. 

E tem as putas. Todas as noites as putas contando suas histórias desinteressantes e suas vidas monótonas de bares esperando uma trepada, um drink ou um afago. Esperando um canto aconchegante da cama. Esperando não serem chutadas pra fora das camas dos hotéis vagabundos. 

Tem esse negócio, esse sentimento cruel que chamam de amor. Marilyn cantando “parabéns” pro Kennedy. John Fante deixando a cidade depois do terremoto. Hemingway tentando enfiar o garfo na boca. Fitzgerald embebedando Zelda. Celine praguejando a impossibilidade do amor. 

E tem essa canção. Graças a Deus tem essa canção. Sobre o barulhos dos automóveis e aviões que pousam ruidosos nos aeroportos. Sobre os latidos dos cães raivosos e sobre os gritos de agonia dos pobres coitados em suas trincheiras. 

Tem você sorrindo nas fotos das colunas sociais, abraçada com outros caras. Eu tenho o seu nome no Google que eu não quero pesquisar. 

E tem essa canção que não é o melhor que eu posso te oferecer. É só o que eu quero te oferecer. Pra que no fundo do salão eu possa ficar de longe te admirando enquanto você dança com outros caras. Caras que eu desprezo com toda a força da minha alma condenada. Eu os desprezo por dançarem tão bem. Por sorrirem pra você com seus dentes odontologicamente perfeitos. Por segurarem na sua cintura com graça e leveza. E nesse momento desengonçadamente eu vou poder ir embora. Finalmente vou poder ir. Livre. Pra nunca mais voltar. Eu estaria muito fodido se não existisse essa canção.


Mário Bortolotto nasceu em Londrina (PR). É escritor, ator e vocalista da banda Saco de Ratos. No teatro, escreveu, dirigiu e atuou em dezenas de peças. Em 2000, recebeu o Prêmio APCA pelo conjunto da obra e o Prêmio Shell de Melhor Autor por Nossa vida não vale um Chevrolet — peça que em 2008 ganhou uma adaptação cinematográfica. Também é autor do romance Bagana na chuva e das coletâneas de poemas Para os inocentes que ficaram em casa e Um bom lugar pra morrer. Bortolotto vive em São Paulo (SP).