Conto | Tailor Diniz

O vigia do armazém

Primeiro foram os helicópteros que apareceram no meio da tarde. Eram três, em forma de triângulo, um verde, um azul e outro vermelho. Passaram voando baixo, rumo aos velhos silos da cooperativa. O barulho era de um avião comum. Por isso, durante a primeira passagem, não chamaram muito a atenção. Mas depois, quando contornaram a cidade e retornaram, de frente para o sol, rutilantes, bojudos, aqueles que estavam no pátio das casas ou nas ruas correram para vê- -los cruzar o céu, em velocidade muita baixa, quase parando. Logo saíram também as pessoas de dentro das casas. Os helicópteros pareciam brinquedões imensos, erguidos para o alto sabe-se lá por quê força medonha da natureza.

Minha mãe, que sovava pão na cozinha, havia ganhado de Natal um Long Play do Elymar Santos e repetia à exaustão o trecho de uma de suas músicas. E eu brincava de cavar poços d’água no fundo do pátio com uma faca de mesa. Os helicópteros ainda passaram uma terceira vez, depois sumiram no horizonte, deixando para trás um cheiro de óleo queimado e uma vontade imensa de que voltassem outras vezes para nos dar a alegria de vê-los voar, como se fossem os nossos brinquedos de Natal a ganharem vida.

Minha mãe me preparou cedo para dormir e voltou a assar os pães noforno de barro e tijolos de uma peça contígua, ao lado da casa. Não sei por quanto tempo me bati de um lado a outro na cama, sem encontrar o sono.

Todos os anos, no verão, nossos vizinhos programavam uma festa na beira do rio próximo à cidade, num passo onde se podia pescar e tomar banho. Cada mulher entrava com um tipo de comida, minha mãe ia levar o pão, os homens dividiam a bebida, o Tonhão Catita, que tinha um caminhão de frete, se encarregava do transporte e da gasolina.
Assim que, naquela noite de calor intenso, solitário num canto do quarto eu procurava o sono perdido entre a vontade de que o tempo passasse rápido, e logo pudesse me jogar no rio com os amigos, e a excitação causada pela passagem dos helicópteros, à tarde. E ainda havia a me martelar a cabeça o trecho da música do Elymar Santos que minha mãe, sem se aborrecer, cantara o dia inteiro: “Deus é maior, essa dor vai passar… vai se quiser, não vou insistir, já cansei de me rebaixar...” 1*

Me debati na cama, sem sono, até não sei que horas da madrugada. Só me lembro que havia desistido de dormir e, olhos abertos, tentava medir o tamanho da escuridão e do silêncio do quarto, quando ouvi os tiros no outro lado da rua. Foram seis, vim a saber depois. Logo alguém começou a gritar, e os vizinhos correram para fora das casas. E o que era silêncio virou um murmúrio de vozes, um bulício contido, uma espécie de zumbido de abelhas pairando sobre o abafamento da madrugada.

Eu quis sair à rua, mas minha mãe me empurrou de volta para a cama. “Vai dormir que não foi nada”, me disse ela, no meio da sala, sobreposta à transparência da noite, de costas para a janela entreaberta por onde entrava uma réstia azulada de luar. Me deitei outra vez, sentindo o peso do lençol na cabeça, do calor sufocante causado por dias e dias de sol contra a tinta ressecada das paredes de madeira. Foi quando ouvi, de muito perto da janela, alguém comentar que o Tonhão Catita havia matado o vigia do armazém.

Era o meu primeiro contato com a morte tão próxima. Eu conhecia o Tonhão Catita, um cara legal, brincalhão, de bem com o mundo, o dono do caminhão que nos levaria para o banho de rio na manhã seguinte. Conhecia também o vigia do armazém, onde eu, todos os dias, ia comprar alguma coisa para minha mãe. Sempre puxava conversa comigo, me chamava de baixinho pé-de-pano e também parecia um cara muito do bacana.
Eu pensava nos dois, em especial no vigia morto, quando percebi a porta sendo aberta aos poucos e alguém entrar, sem fazer barulho. Primeiro imaginei tratar-se da minha mãe. Mas logo senti o cheiro, um cheiro desconhecido que não era o dela. Não me mexi, tinha medo de alguma coisa, não sabia bem de quê, talvez do Tonhão Catita, que tinha matado um homem, ou do vigia que agora estava morto e, portanto, podia já ter virado assombração, alma penada, mula sem cabeça, coisa doutro mundo.

Fechei os olhos e tranquei a respiração tanto quanto pude. Quando esvaziei os pulmões e voltei a enchê-los de ar, veio-me outra vez o cheiro. E conheci, então, uma excitação intensa, algo inusitado, coisa diferente daquela provocada pela expectativa de um banho de rio com os amigos na manhã seguinte. Diferente também daquela emoção da tarde, quando os helicópteros sobrevoaram a cidade como se fossem meus brinquedos de Natal ganhando força para voar.
Ouvi a sirene da polícia e alguém dizendo que o Tonhão Catita não era louco de ainda andar por ali depois de matar um homem. Com certeza, havia fugido para bem longe. Depois as coisas foram se acalmando, reabri os olhos e percebi, em meio ao escuro do quarto, um vulto a olhar pelos vãos da veneziana. E o cheiro preenchia todos os espaços do quarto, era uma mistura de suor, de perfume, de transpiração, talvez de saliva, de bocas, os únicos que eu conhecia. Talvez fosse também o cheiro do medo, de um medo que eu também sentia na pequenez imensa da minha cama transformada em chamas.

Cerrei os olhos e não sei quanto tempo se passou. A rua foi silenciando, fui sendo vencido pelas circunstâncias da noite e suas tragédias, e quase adormecia quando senti alguém ao meu lado, um corpo ainda trêmulo de pavor, quente como se tivesse febre, um corpo que era a fonte de todos os cheiros queinundavam o quarto desde sua chegada, um corpo que se aconchegou a mim como se eu, nos meus tenros anos de vida, fosse sua redenção naquela noite de sobressaltos e de tensões, na qual, sabia lá eu porque razão, o Tonhão Catita havia matado o vigia do armazém.

Quando entraram pelas frestas da janela os primeiros raios do dia, fui me virando aos poucos, sem fazer barulho, agora sabendo que na minha cama, encostada em mim, não dormia a alma penada do vigia. E vi, encolhida ao meu lado, os olhos negros bem abertos, em vigília, atentos e aflitos como os de um animal que acaba de escapar de um incêndio, o rosto da Maria Fernanda, a mulher do Tonhão Catita.
Ela era amiga de minha mãe, eles moravam na frente da nossa casa, e — imaginei — ficara com medo de que a polícia a prendesse junto com o marido. Afinal, ele havia matado o vigia do armazém, e isso não era pouco, era coisa grave, podia sobrar pra ela também. Ela me olhou e sorriu, um sorriso parecido com um carinho, um pedido de desculpas talvez, por estar ali, na minha cama, no meu quarto, perturbando meu sono, profanando a minha intimidade de criança.

Em seguida, no entanto, minha mãe apareceu e me puxou pela mão. Ainda olhei para trás e a vi deitada de lado, de costas para mim, as coxas extensas e lisas, os cabelos pretos caídos no travesseiro, o vestido de algodão mal escondendo as voltas e reentrâncias das nádegas muito brancas e salientes.

Minha mãe me fez escovar os dentes, lavar o rosto, e preparou o café. Antes de me sentar à mesa corri à janela da frente para ver se o caminhão já estava pronto para a viagem. Não havia ninguém na rua, nem o caminhão, nem nada.

Tomei café e corri à despensa pegar os caniços e os anzóis para a pescaria. Disse a minha mãe que podíamos ir carregando as coisas, eu já estava pronto. Ela me olhou, surpresa. Depois falou que não íamos mais ao rio. Tinha havido um pequeno problema, talvez no domingo seguinte a gente fosse. Em princípio não entendi a extensão da tragédia. Quando minha mãe, o rosto estranho, de quem não podia estar brincando, me disse uma segunda vez que não iríamos mais, ficaríamos em casa, me dei conta do abismo no qual o mundo mergulhava sem volta diante de mim. Desfazer a nossa pescaria, evento aguardado com ansiedade o ano inteiro, para o qual a gente se preparava como se fosse a parte mais importante das nossas vidas, era uma tragédia para doer demais, para sempre.

Corri ao portão da frente, queria conferir tudo, olhar a rua, ver se passava algum amigo. Meu pensamento ainda vagava em busca de motivos razoáveis para aquilo, quando minha mãe me puxou para dentro de casa. Disse que não era bom eu ficar ali. Eu queria pelo menos permanecer no pátio, mas nem isso ela permitiu. Minha esperança naquele momento de dor e vazio era que talvez os helicópteros passassem de novo, ou alguma força estranha da natureza, a mesma força que os fazia voar, alterasse as engrenagens do universo e acabasse com aquele deserto desumano no qual fora transformada a nossa rua, a nossa casa, o nosso pátio, num domingo ensolarado e quente, quando o certo era todos estarem embarcando no caminhão do Tonhão Catita para irmos pescar lambari e tomar banho de rio. Depois voltei ao quarto e espiei por um vão da porta. A mulher do Tonhão Catita continuava na minha cama, os olhos de pássaro, atenta a todos os ruídos que pudessem macular o perigoso silêncio de um domingo perdido para sempre.

Tailor Diniz é escritor e roteirista, autor de treze livros, entre eles A superfície da sombra, Em linha reta e Crime na feira do livro, este último traduzido para o alemão. Vive em Porto Alegre (RS).