Conto | Giovanna Picillo

Consciência emergente

Era como se fosse uma onda reverberando surdamente. Na qual estávamos enredados. Irremediavelmente interligados em uma invenção do universo. Da qual não conseguíamos mais nos desligar. Embora fosse também desnecessário que o fizéssemos. Ou pelo menos não havia, ou parecia não haver, desejo de fazê-lo. Era como se tudo estivesse satisfatoriamente acomodado. Em um patamar que se repetia ao infinito, consecutivamente, compondo ondas sobre novas ondas, que, ao contrário do que ditava a física clássica, repetiam as mesmas trajetórias, seguindo o ritmo dos círculos concêntricos.

Era nesse contexto que vivíamos.

Poderia descrever a paisagem de formas diversas. Sim, as paisagens existiam, mesmo dentro desse círculo. E se transformavam continuamente, como se fossem um contraponto a esse mundo homogêneo, seguro e previsível.

                                                                                                                     Ilustração: Felipe Rodrigues
ilustração conoto giovanna
 

E o que éramos nós? Já não éramos gente, já não éramos robôs. Apenas resultado da interferência destrutiva, que nos amalgamou, consolidou e nivelou. Nesse mundo, poderíamos dizer que não havia mais individuação, tampouco solidão. Também era inevitável compartilharmos o que nos compunha, porque éramos parte da mesma essência, da mesma unidade, em nossos corpos individuais. Corpos sem prazo de validade, que se encaixavam numa única esteira de existência, renovada indefinidamente. Corpos de pequena dimensão, ocupando pouco espaço, dado que a imortalidade também tinha o inconveniente do excesso populacional.

“Estamos com os sistemas ajustados para dar início a mais uma sessão de rejuvenescimento genético.”

O sistema organizacional segue dentro do programado, sem riscos ou alterações.”

“Tivemos sucesso em disseminar as ameaças de contaminação, deterioração e decomposição.”

Essas frases marcavam nosso cotidiano esterilizado. Sob o qual todos pareciam encaixados à perfeição. Ou quase todos. Por algum erro de programação, aqui estava eu. Descolado do campo de ondas. Realizando movimentos erráticos, arrítmicos e sem destino. 

Tentava me enxergar, saber quem eu era nesse momento, o que esperavam de mim e o que eu podia esperar desse novo ambiente. Ao mesmo tempo, não queria saber de nada, entender coisa alguma. Não queria estar aqui, e tampouco lá. Não desejava estar com os demais, e nem permanecer nesse local. Eu não era mais o que me sabia. Não era mais os outros, e nem eu.

Ouvi uma voz que ressonava indefinida.

— Ei, Madriú, o que faz aqui? 

— Quem está falando? Apresente-se, por favor! 

— Já fomos apresentados, antes de você nascer. 

— Como assim? Você é meu pai? Ele já não existe. Aliás, nunca existiu.

— Pode me considerar da família. 

— Mas… Que família? O que você faz aqui? Aliás, não sei onde estou. Como viemos parar neste local? 

— Sempre essa curiosidade característica dos homens… Mesmo que já não o sejam exatamente. Isto me reconforta, sabia? Saber que mantêm coisas da essência primordial. 

— Onde estão os outros? O sistema? — segui questionando, perplexo com a nova condição. 

— Não se preocupe. Essa sensação de quase pânico é comum aos poucos que se descolaram da base. É quase como um novo nascimento. 

— Novo nascimento? O que isso quer dizer? Não posso ter morrido. Todos têm sua longevidade assegurada nas esteiras do universo…

— E você sabe o que é a morte? Se nem um corpo perecível tem mais… seguiu a voz, me provocando. 

— Então onde estou? 

— Algumas partículas se descolam da massa. Com isso, você se descolou também da base, do sistema. Comecei a sentir, efetivamente, uma sensação de pânico.

— Com assim? O que isso quer dizer? Agora ficarei à mercê de quem? De mim mesmo? De você? — insisti junto ao meu interlocutor invisível. 

— Você estava habituado a fazer parte daquele bloco quase indistinto. E agora terá a oportunidade de ser você mesmo. Não acha isso incrível? 

— Isto significa que agora sou um bloco de um só, que sou apenas eu mesmo? 

— Você adquiriu consciência, percebeu sua particularidade dentro da onda. É um indivíduo. Ou melhor, ainda é uma partícula, mas de caráter individual. 

Se eu havia nascido novamente, se havia morrido, ou se, a partir desse momento, estaria vulnerável à morte, não importava. O que me afligia era a perspectiva de ser um só, sozinho nessa dimensão.

— Não, não! Por favor, me tire daqui. Quero voltar ao mundo daqueles milhares de partículas! De que me adiantaria estar vivo nesta condição? Não ter outras partículas para compor e integrar o sistema…

Foi assim, no desespero daquela falta de existência, que comecei a gritar, chorar, pedindo que essa minha particularidade individual fosse deletada daquele lugar que eu não sabia onde era. 

— Ei, garoto, não se aflija. Talvez não tenha se dado conta de que o sistema de ondas também faz parte do processo evolutivo. E logo mais uma nova onda passará por aqui, e você poderá embarcar nela.

— É verdade? — perguntei, enquanto tentava controlar meus espasmos de sofrimento.

— Sim, tranquilize-se! E aproveite este momento para sentir-se consigo mesmo, pois em breve já será diferente.

Meu organismo começou a relaxar. Aos poucos, fui recuperando a segurança, até conseguir emergir daquele tempo-espaço. A sensação foi a de estar voando… Coisa engraçada essa, a de voar… Seguindo em alguma direção desconhecida. Rápida e suavemente. De forma irreversível, mais uma vez.

Então, foi como se me encaixasse em outra esteira do universo, em outra onda. Foi como se minha consciência estivesse esmaecendo mais uma vez, como condição para fazer parte de uma nova existência coletiva, talvez mais evoluída, talvez imortal. Não importava. Eu era apenas uma partícula me amalgamando, mais uma vez, ao infinito do universo.


Giovanna Picillo é jornalista, formada pela Universidade de São Paulo (USP), e autora do livro Zitz e a rede etérea (2017). Recentemente, integrou a coletânea de contos Eros ex machina: robôs sexuais. Vive em São Paulo (SP).