Cena Literária

Música ultralírica

Partindo de Leminski e o primeiro disco do Blindagem, Curitiba tem na relação entre música e poesia um dos elementos definidores da cultura da cidade

Ivan Santos

poetasletristas


Já vai longe o tempo em que o relacionamento entre a poesia e a música era visto como um embate incestuoso entre “alta” e “baixa” cultura. Afinal, em um país onde nosso maior compositor — Antonio Carlos Jobim — tem como um de seus principais parceiros o poeta e diplomata Vinicius de Moraes — que publicou livros antes de ter a primeira música gravada — não faz sentido insistir em separar duas expressões artísticas fundamentais para a compreensão da cultura e da identidade nacional.

Em Curitiba, essa relação parece ainda mais definidora do ethos da produção artística da cidade. Nosso artista e escritor mais conhecido e pop (Dalton é clássico), Paulo Leminski, é também parceiro do mais importante registro fonográfico da música paranaense — o primeiro e homônimo disco da banda Blindagem, lançado pela gravadora Continental em 1981 — e no qual nove das doze faixas trazem o nome de Leminski nos créditos.

Leminski é sem dúvida o exemplo mais emblemático dessa linhagem de poetas que fazem música, ou músicos que escrevem poesia, e que se espraia até os dias de hoje, desaguando não por acaso em trabalhos como o da Banda Mais Bonita da Cidade. O maior fenômeno pop contemporâneo da capital paranaense surgiu em 2009 e “estourou” em 2011 com o vídeo viral da canção “Oração”, tendo justamente como proposta inaugural o registro de canções de compositores nativos, e como parceiros figuras como Luiz Felipe Leprevost e Alexandre França.
blindagem

“A meu ver, as melhores músicas do Blindagem são as que foram compostas em colaboração com Leminski, especialmente a parceria Ivo Rodrigues/ Paulo Leminski. O primeiro disco do grupo é um clássico do rock nacional. E está ligado a uma vertente importante da música setentista, aquela que transita entre o rock’n’roll (Mutantes, Tutti- Frutti, Rita Lee) e o rock rural (Sá, Rodrix & Guarabyra)”, diz o professor de Literatura da Universidade Federal do Paraná Marcelo Sandmann, ele mesmo poeta e compositor, com livros e discos lançados, autor de músicas e letras que integram o repertório de importantes grupos e artistas locais, como o Fato, Rogéria Holtz e Alexandre Nero, para ficar em alguns dos mais conhecidos.

Fiel ao espírito da contracultura de viver poucos anos a mil, Leminski foi muito além do Blindagem ou das parcerias com artistas nativos. Sua obra musical foi abraçada por grandes nomes como Caetano Veloso — que gravou “Verdura”, última faixa do primeiro disco do Blindagem, no LP Outras palavras, do mesmo ano — e uma lista que inclui ainda A Cor do Som, os novos baianos Moraes Moreira e Paulinho Boca de Cantore Edvaldo Santana, entre muitos outros.

Essa linhagem passa também por Alice Ruiz, companheira de versos, canções e vida de Leminski, mãe de três filhos do poeta, autora de mais de duas dezenas de títulos de poesia, letrista com parcerias com músicos como Itamar Assumpção, Arnaldo Antunes, José Miguel Wisnik, Zeca Baleiro, Waltel Branco e Alzira Espíndola. E desemboca no casal Estrela Ruiz Leminski e Téo Ruiz e seu projeto “Música de Ruiz” — com quatro discos, sendo o mais recente deles “Leminskações”, lançado em agosto de 2014, no qual a filha do poeta interpreta, ao lado de seus parceiros, a obra do pai.

A poesia vai ao punk (e vice-versa)

Nos anos 1980, uma outra trupe de Curitiba assume o desafio de embaralhar música e poesia, claramente influenciada pela geração anterior, capitaneada por Leminski, mas também trazendo à cena um novo background de referências estéticas — sejam literárias ou sonoras. Esse grupo se aglutina no rastro do movimento punk e em torno da banda Beijo AA Força (antecedida pela Contrabanda), abastecido pelos textos dos irmãos Marcos e Roberto Prado e de outros poetas como Thadeu Wojciechowski, Sérgio Viralobos, Arnaldo Machado e Edilson Del Grossi. “Com relação ao BAAF, é preciso lembrar que o trabalho de criação deles é feito a muitas mãos, quase sempre com mais de um poeta/letrista atuando na parceria, daí não ser muito fácil avaliar o peso de cada colaboração individual. Tem uma coisa fortemente ligada ao punk, na intenção, mas o resultado é muito mais multifacetado do que o punk típico”, diz Sandmann, destacando que o crítico Hermano Vianna classificou recentemente o segundo disco do BAAF, Sem suingue (1995), como “um dos melhores discos já gravados no Brasil”, ombro a ombro com obras-primas como o clássico Acabou chorare, dos Novos Baianos.

“As parcerias nos anos 1980 eram, na maioria das vezes, com a música sendo feita sobre uma letra pronta. Algumas vezes as letras precisaram ser editadas para se ajustarem à métrica musical. Outras vezes as letras foram feitas sobre músicas”, explica o guitarrista do BAAF, Luiz Antonio Ferreira. “Também compusemos e ainda compomos músicas e letras ao mesmo tempo, geralmente em ‘tertúlias’, onde a música e a poesia são sempre um ótimo pretexto para degustar uma carne bem assada, beber cervejas e dar muitas risadas”, conta o músico.

“São pessoas de origens e formações diferentes que se uniram pela ousadia, pela experimentação, pelo bom humor, pela coragem de enfrentar a jequice, por optar preferencialmente pela alegria em um ambiente cultural que então, em grande parte, respirava uma tristeza mórbida”, define o poeta Roberto Prado que, junto com o irmão Marcos, é um dos principais parceiros dessa trupe.

Em 2005, foi lançado pela Travessa dos Editores Ultralyrics — combo que reúne um livro com versos de Marcos Prado, organizado pelo diretor teatral Felipe Hirsch, e o CD Aquelas canções do Marcos Prado, coletânea de músicas compostas pelo BAAF em parceria com o letrista considerado a figura mais influente do punk e do pós-punk da capital paranaense. “Ultralyrics rompe a arbitrária divisão, feita pela crítica latifundiária, que tenta separar a rica (e menosprezada) letra de música da pobre coitada (e mistificada) poesia”, comentava Roberto Prado na época do lançamento.

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A regra é a falta de regras

Para Thadeu Wojciechowski, que além do BAAF, é parceiro constante do Maxixe Machine — banda que nasceu a partir do grupo punk para tocar um repertório inclassificável que vai de sambas antigos a polcas, passando por marchinhas de carnaval e canções infantis —, essa relação entre poesia e música em Curitiba se desenvolveu naturalmente e de forma absolutamente orgânica. “Somos muito amigos e nos admiramos mutuamente, mas além disso temos um traço em comum que é querer sempre inventar, revolucionar, criar algo novo e se divertir fazendo isso. Cada encontro nosso é uma festa e um festival de barbaridades”, diz.

Sobre a forma como as canções do grupo nascem, ele explica que é muito variável e depende das circunstâncias. “Os parceiros é que decidem, já fiz muito poema que virou letra. E já recebi dezenas de gravações com poemas que nunca imaginei como letras de música”, confessa.

De acordo com Wojciechowski, a fronteira entre poesia literária e música popular é cada vez mais difícil — ou até mesmo dispensável — de ser traçada. “Desde o século XVII, Gregório de Matos, o Boca do Inferno, já unia as duas artes. Muitas das canções populares da Bahia levavam o seu gênio. Ele mesmo tocava sua viola e cantava algumas. Essa tradição percorre toda nossa história. Noel Rosa foi um dos expoentes. Cartola, Nelson Cavaquinho, Chico, Caetano, Gil e Leminski levam a dupla marca de grandes poetas e grandes músicos. Estou aí no meio fazendo bagunça”, brinca.

Essa mesma falta de regras no processo criativo perpassa o trabalho do grupo Fato, que desde 1994 se dedica a musicar e difundir a obra de autores paranaenses — com 43 compositores gravados e interpretados, 38 deles daqui da “terrinha” —, entre eles o próprio Wojciechowski, Sandmann, Arnaldo Machado, Luiz Felipe Leprevost, Luiz Antonio Fidalgo e Amarildo Anzolin. “Acho que a maioria dos textos musicados por nós nasceram de poemas já existentes. A maioria, não a totalidade. Parcerias e colaborações também existem, mas em menor número”, explica Ulisses Galetto, produtor e baixista do grupo. “Não sei exatamente o impacto disso em nosso trabalho, mas sei que alguns desses autores só têm suas músicas registradas por nós, o que é uma pena. Seus talentos são muitos, ainda por serem reconhecidos aqui e em todo o Brasil”, diz. Um capítulo à parte da produção dessa geração pode ser encontrado também na parceria da banda Opinião Pública, contemporânea do BAAF, com o poeta e letrista Arnaldo Machado, dono de um texto bastante sui generis, com experimentações linguísticas da vanguarda literária, que segundo Sandmann remete à poesia concreta, “e coisas que Leminski faz no Catatau e Haroldo de Campos em Galáxias” e a uma matriz que na avaliação do professor da UFPR vem de James Joyce — Ulisses e Finnegans Wake. “Arnaldo gosta de neologismos, palavras-valise (na expressão joycena, que combinam diferentes vocábulos, como o famigerado ‘Perhappiness’), trocadilhos, jogos de palavra, muito humor e nonsense”, explica.

Se há consenso entre os criadores — poetas e músicos — de que a união das duas expressões ajuda o texto literário a atingir um público mais amplo,, também é corrente a opinião de que o caráter mais intelectualizado dessa produção não representa um empecilho à aproximação desse mesmo público. “O que dificulta a aproximação com o público é a precariedade ou a simples inexistência de mediações à altura, seja aqui em Curitiba, seja em muitos lugares do Brasil. E por ‘mediação’ eu entendo imprensa, rádio, TV, crítica musical, gravadoras, produtores, empresários, em síntese, todos aqueles que estão entre o público e os artistas”, avalia Sandmann.. “Acho que pode haver uma relação entre ‘grande-público-música popular-poesia’, mas o nó da questão está, a meu ver, nas estruturas da indústria, concentradora e pouco receptiva à novidades. Tanto para a literatura quanto para música”, considera Ulisses Galetto.