Capa | Jamil Snege

A visibilidade de um mestre da ficção

Jamil Snege recusou caminhos fáceis, evitou o toma lá, dá cá do meio editorial e disse mais não do que sim. Acima de tudo, escreveu o que quis, publicou do jeito que queria e assinalou o seu nome na história da literatura brasileira.

Marcio Renato dos Santos

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Jamil Snege saiu de cena há uma década. O escritor curitibano faleceu em 16 de maio de 2003 e, desde então, seus livros nunca mais foram publicados. Apesar disso, o legado literário do Turco, como ele era chamado pelos amigos, é cada vez mais discutido e cultuado. O escritor mato-grossense radicado em São Paulo Joca Terron é um admirador de Snege, para ele, “um autor original que realizou obra de grande qualidade, embora esparsa e breve”.

Autoeditados ou viabilizados pela editora curitibana Travessa dos Editores, os livros de Snege nunca tiveram ampla distribuição nacional, ainda assim atingiram leitores, como é o caso de Terron. “A primeira vez que ouvi falar de Jamil foi através dele mesmo, em uma entrevista ao Nicolau [jornal publicado pela Secretaria de Estado da Cultura do Paraná na década de 1990], na época do lançamento de O jardim, a tempestade. O impacto foi grande, a surpresa idem”, lembra o escritor que acaba de publicar o romance A tristeza extraordinária do leopardo-das-neves.

Em seguida, como costuma acontecer na divulgação da obra de Snege, o boca-a-boca despertou o interesse. Amigos, escritores atentos e curiosos, também fariam com que a ficção do curitibano chegasse até as mãos de Terron. “Primeiro, o Nelson de Oliveira [que hoje se apresenta como Luiz Bras] me presenteou com a primeira edição de O jardim, a tempestade. Depois, o Marçal Aquino me recomendou Viver é prejudicial à saúde, que encomendei ao Manoel Carlos Karam, que me enviou exemplar autografado pelo Jamil, a quem acabei conhecendo pessoalmente no lançamento de Meu sétimo dia, apresentado por Valêncio Xavier”, conta Terron.

“Uma das coisas que o dinheiro realmente pode comprar é a ilusão de que sem ele a vida é impossível — ou indigna, pelo menos. Nunca amealhei, e se há pessoas que admiro, essas têm mãos furadas. Amo os estroinas e os dissipadores. Encanta-me a generosidade, o dom de repartir”. Jamil Snege


Os livros de Snege mencionados no parágrafo anterior são dois dos pontos altos do percurso do autor. O jardim, a tempestade (1989) traz uma prosa que é poesia e também se apresenta como algo indefinível, talvez um híbrido literário. Já a novela Viver é prejudicial à saúde (1998), para muitos uma obra-prima, mostra — por meio de um texto fluente, com humor e palavras precisas — a desilusão de um sujeito com o mundo. Terron lê e relê continuamente essa obra, a respeito da qual afirma o seguinte: “Na realidade, o cara [o narrador] é um loser meio malandro que vive das sobras alheias. No entanto, o autor exibe incrível piedade de seu personagem, quem sabe seu alter-ego, presenteando-o com a possibilidade de um final feliz. Tudo isso com o máximo da economia de recursos”.

Economia de linguagem. Sentido de absurdo. Domínio absoluto da língua, do sarcasmo, da autoironia. Eis algumas das características presentes na ficção de Snege — observa Terron — que podem seduzir os leitores. Ele acrescenta ainda que o escritor curitibano praticou um realismo que nunca desdenhou a imaginação. “Snege foi um autor idiossincrático à beira da excentricidade, como quase tudo que sai de Curitiba.”

Invadindo a academia
Outros escritores que residem em São Paulo, além de Terron, também leem a ficção de Snege. Quando a Companhia das Letras lançou o selo Má Companhia, o escritor Marçal Aquino concedeu entrevista à Folha de S.Paulo comentando a reedição de seu livro O invasor. Na reportagem, publicada dia 26 de março de 2011, Aquino afirmou que Jamil Snege figurava entre os autores que estariam cotados para ter obras publicadas pelo projeto que, em tese, teria a finalidade de abrir espaço para “livros únicos, malditos, que marcaram época e depois sumiram”. Marcelino Freire e Ronaldo Bressane não escondem de ninguém que são admiradores da literatura do Turco.

“Viver é prejudicial à saúde me parece um exemplo perfeito para definir esse gênero indefinível por excelência que é a novela. É poderosamente alusiva, o narrador é polimorfo, meio perverso, nada fica em pé sob seu olhar nem ele mesmo, mas tudo não passa de 'cosa mentale'”. Joca Terron


Além desses prosadores, aos poucos, a obra de Snege invade o universo acadêmico. Júlio Bernardo Machinski é autor do primeiro projeto de mestrado a respeito do legado snegeniano. Ele elaborou e defendeu a dissertação Como ele se fez por si mesmo em setembro de 2005 na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Machinski soube da existência da obra do prosador curitibano por meio de uma entrevista que o autor concedeu ao jornalista Ricardo Sabbag — conteúdo publicado nas páginas da Revista Cult no final de 2002. Não demorou e o livro Como eu se fiz por si mesmo (1994) estava diante dos olhos do estudante. “Não consegui parar de ler até chegar à última página. Encantou-me o jeito irreverente e a habilidade daquele narrador irônico ao encadear os episódios de sua trajetória pessoal e profissional, sem nenhuma espécie de autopiedade ou máscara”, analisa Machinski.

A visão de mundo de Snege que, no entendimento de Machinski, questionava-se o tempo todo a respeito das opiniões formadas sobre as diversas questões que cercam a vida, merece atenção. “O que distingue a literatura de Snege, da praticada por outros escritores brasileiros de sua época, além da forma pessoal e autônoma com que geriu sua obra, financiando ele próprio suas edições e recusando os apelos da mídia, é — justamente — a ausência de autocomiseração e a retirada consciente de autoridade da voz narrativa, revelando-se ao leitor como seu cúmplice na grandeza e miséria humanas”, diz Machinski, completando que, em meio ao legado do autor, o exercício do saber rir de si próprio ficou como lição maior.

Não se deixou rotular
A jornalista e diretora da Revista Cult, Daysi Bregantini, considera o Turco um dos melhores escritores brasileiros devido à sua literatura “sofisticada, detalhista, irônica e sincera”. No entanto, questionada a respeito de quem seriam os autores com quem Snege dialogou literariamente, a situação se complica. “Não sei responder. Não o comparo a ninguém”, afirma Daysi. Joca Terron também não aponta os nomes que poderiam ter influenciado o escritor curitibano. “Não saberia dizer. Creio que todo autor que faça jus a esse nome carrega consigo alto grau de originalidade”, diz Terron.

“Conversamos algumas vezes e em nossa última conversa (não me lembro o ano) ele já estava doente, mas continuava fumando. Disse que 'o médico havia liberado 10 cigarros por dia'. Ele era generoso, educado e muito fiel a seu projeto editorial”. Daysi Bregantini


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Já o escritor carioca radicado em Curitiba Otto Leopoldo Winck acredita que o diálogo que Jamil Snege estabelece é com o Bildungsroman, isto é, com o chamado romance de formação. “Tempo sujo, sua primeira novela, é uma espécie de Retrato do artista quando jovem, de James Joyce, em uma Curitiba hiperprovinciana, em plena barra da ditadura militar e ao mesmo tempo da ebulição política e cultural, cujo epicentro foi o ano de 1968”, argumenta Winck, que desenvolveu dissertação de mestrado sobre o assunto na Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Júlio Bernardo Machinski identifica inúmeros interlocutores com quem Snege dialogou. “Devido à significativa aproximação com a imprensa e a publicidade, penso que Jamil dialoga mais de perto com os diversos cronistas brasileiros modernos que souberam mesclar leveza, humor e lirismo em suas observações do cotidiano, como Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino, Rubem Braga e Carlos Heitor Cony”, comenta. O autor da dissertação Como ele se fez por si mesmo acrescenta Millôr Fernandes, Luis Fernando Veríssimo, Dalton Trevisan, Oswald de Andrade, Lima Barreto, Machado de Assis, Graciliano Ramos, Rubem Fonseca e uma lista quase sem fim de autores, e suas respectivas obras, que ecoam nas linhas e entrelinhas snegenianas.

Winck concorda com as observações de Machinski, e diz: “Jamil bebeu nos principais clássicos da literatura nacional e mundial, pois ele sempre foi um grande e onívoro leitor”. O escritor e acadêmico também destaca a versatilidade de Snege, que transitou por vários gêneros “sem parecer forçado ou artificial. Em 1982, apareceu o texto de teatro As confissões de Jean Jacques Rosseau. Três anos depois, o Turco surgiria com o ensaio Para uma sociologia de práticas simbólicas. O livro de contos A mulher aranha circulou em 1972. Senhor, de poesia, surge em 1989. “Ele [Snege] vai do cômico ao grotesco, do trágico ao patético, do poético ao escatológico com uma destreza que oculta as marcas do trabalho, não mostrando 'na fábrica o suplício do mestre', para citar Bilac”, comenta Winck.

Teses e provocações
Snege elaborou teses. Uma das mais conhecidas aparece na crônica “Como tornar-se invisível em Curitiba”. O Turco abre o texto com ironia, brincando que o candidato à invisibilidade na capital do Paraná “pode começar treinando numa dessas manhãs de muita neblina, à margem de um lago ou num bairro bem afastado do centro da cidade”. Ele enumera algumas ações que o sujeito pode realizar, para em seguida revelar que há uma condição infalível: possuir talento genuíno. “Estudar bastante também ajuda, mas não substitui aquele toque de gênio inconfundível que marca e distingue certas pessoas desde o berço”. A crônica, que empresta o título a uma coletânea publicada no ano 2000, foi uma entre tantas estratégias que ele encontrou para falar da vida em Curitiba — neste texto em especial, da falta de reconhecimento dos curitibanos pelos curitibanos.

“Snege concentra-se muito mais nos dilemas humanos frente ao mundo do que na própria realidade. A forma específica como essa obra se situa em relação aos mecanismos de legitimação também funciona como indagadora dos processos de celebrização de livros e escritores, das questões relacionadas à fama que muitos obtêm através de editoras prestigiadas, recursos midiáticos e eficientes estratégias de divulgação, em detrimento das propriedades íntimas daquilo que produzem. É a velha questão da qualidade versus quantidade. Como afirmava Snege, ele nunca pretendeu concorrer com as sandálias Havaianas”. Júlio Bernardo Machinski


O escritor paulista Nelson de Oliveira cita outra crônica de Snege: “A arte de tocar piano de borracha”. “Nela, Jamil tomava as dores da literatura paranaense e lançava um desafio: se comprometia a escrever uma obra-prima no prazo de um ano, se uma instituição qualquer lhe oferecesse uma bolsa que lhe permitisse sobreviver nesse período. Provocação genial”, elogia Oliveira, doutor em Letras pela USP, autor de mais de vinte livros, entre os quais o romance O oitavo dia da semana.

Wilson Martins (1921-2010) acompanhou o percurso literário de Snege e escreveu textos a respeito de várias das obras do autor. O crítico não deixou de observar que o Turco se voltou contra a capital paranaense na crônica “Como tornar-se invisível em Curitiba” — “Jamil Snege é às vezes movido por um espírito de vingança contra ela [a capital do Paraná]”. Mas é na crítica “A volta do conto”, publicada dia 25 de março de 2000, que Martins faz a leitura mais aguda sobre a literatura do escritor, no caso, a coletânea de contos Os verões da grande leitoa branca. O crítico detalha características dos contos — “são, em geral, curtos, centrados num episódio único, sem alusões derivativas” — e, como desfecho, define Jamil Snege como o mestre da paródia: “Espírito antimansfieldiano, à vontade na sátira e no sarcasmo, e isso porque muito ama a literatura”.