Artigo | Presença restrita

O cineasta Fernando Severo traça um panorama das obras de escritores negros brasileiros que foram adaptadas para o cinema

 

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Cidade de Deus, de Fernando Meirelles, é o maior sucesso do cinema brasileiro contemporâneo no exterior. O filme é uma adaptação do livro homônimo de Paulo Lins.

Se é escasso o número de escritores afrodescendentes de destaque na literatura brasileira, menor ainda é o número daqueles cuja obra chegou às nossas telas. Para dar alguma relevância numérica a esse fator, é necessário que se inclua entre eles os autores cuja ascendência negra foi omitida, obscurecida ou minimizada anos a fio, como é o caso de Machado de Assis e Mário de Andrade. Neto de escravos por parte de pai e mãe, Lima Barreto construiu sua obra em meio a um enorme preconceito racial e social, tão intenso como o que se abateu sobre Cruz e Souza. Único autor contemporâneo incluído nessa restrita lista, Paulo Lins desfruta notoriedade principalmente por ter escrito Cidade de Deus — o maior sucesso do cinema brasileiro contemporâneo no exterior — do que por toda sua obra como escritor.

Uma questão essencial nesse panorama é o fato de que nenhum filme adaptado a partir de obras dos escritores citados foi dirigido por cineastas afrodescendentes. Também em pequeno número na cinematografia brasileira, nenhum desses realizadores conseguiu criar quantidade expressiva de filmes ou deixar marcas impactantes na história do cinema brasileiro. Evidentemente, essa presença desproporcional da cultura negra na literatura e no cinema brasileiros reflete o racismo velado ou explícito que permeia nossa história e leva a acusações como as de que o meio acadêmico teria “embranquecido” Machado de Assis e Mário de Andrade para torná-los aceitáveis como figuras luminares da cultura nacional.

Dentro da restrita filmografia de longas-metragens realizados a partir de livros escritos por afrodescendentes, um dos filmes que mais se destacou por suas qualidades artísticas foi Cidade de Deus, de Fernando Meirelles, que arrebatou 65 prêmios no exterior e foi indicado a quatro Oscars. O filme, no entanto, não foi uma unanimidade crítica no Brasil. Embora adaptado de um livro semi-autobiográfico de Paulo Lins, foi criticado por se valer de clichês na abordagem do modo de vida da população afrodescendente da periferia carioca. Foi alvo também de intensa polêmica quando a crítica e pesquisadora carioca Ivana Bentes cunhou a partir dele a expressão “cosmética da fome”, em contraposição à “estética da fome”, termo celebrizado em manifesto de Glauber Rocha. Foi questionado se Meirelles, cineasta branco, oriundo da classe média e publicitário, seria a pessoa mais adequada para tratar cinematograficamente as complexas relações de classe e de tensão racial que propõe a obra, e criticada sua espetacularização da violência e a associação automática entre negritude e marginalidade a que o filme pode induzir. Mais de dez anos depois de sua estreia a obra ainda suscita discussões acaloradas nas revisões históricas da crítica e em trabalhos de pesquisadores acadêmicos.

Joaquim Pedro de Andrade realizou um dos filmes mais emblemáticos do Cinema Novo a partir de Macunaíma, de Mário de Andrade, marco da literatura modernista brasileira. Nascido negro em meio à selva, o personagem título se transforma em branco antes de suas aventuras na cidade, condição que no filme de Joaquim Pedro se mescla aos aspectos surrealistas e alegóricos pelo qual envereda essa adaptação. A questão racial não ocupa lugar de destaque na obra de Mário de Andrade e é inexistente em outro filme adaptado de um de seus livros, Lição de amor, de Eduardo Escorel, cuja trama se passa em meio à alta burguesia paulista e foi bem recebido pela crítica à época de seu lançamento.

Triste fim de Policarpo Quaresma, que no cinema foi rebatizado como Policarpo Quaresma, herói do Brasil, é a única obra de Lima Barreto adaptada para longa-metragem, com direção do cineasta carioca Paulo Thiago e resultados pouco memoráveis. Embora a questão racial seja abordada em outros dos seus livros, nenhum deles chegou ao cinema.

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Joaquim Pedro de Andrade realizou um dos filmes mais emblemáticos do Cinema Novo a partir de Macunaíma, obra de Mário de Andrade

É natural que a reputação de Machado de Assis como o mais importante escritor brasileiro tenha originado muitas adaptações cinematográficas, tanto de seus principais romances quanto de alguns contos. O mais famoso deles, Dom Casmurro chegou aos cinemas no período do Cinema Novo em Capitu, de Paulo César Saraceni, e mais recentemente, em versão transposta para os dias atuais, em Dom, de Moacir Góes. Ambos foram impiedosamente criticados à época de seus lançamentos, alguns resenhistas destacaram considerar o livro não filmável sem perder suas principais qualidades literárias. Cineastas importantes como Nelson Pereira dos Santos, com Azyllo muito louco, Sérgio Bianchi, em Quanto vale ou é por quilo? e A causa secreta, Júlio Bressane, em A erva do rato, foram melhor sucedidos em suas incursões machadianas. Já Quincas Borba, de Roberto Santos, e Brás Cubas, de André Klotzel, dividiram opiniões.

Uma das mais importantes adaptações de um escritor negro brasileiro para o cinema é sem dúvida Cruz e Souza — O poeta do desterro, de Sylvio Back. O cineasta adota uma estrutura narrativa bastante original que ao mesmo tempo dá conta de informar biograficamente a trajetória do maior poeta simbolista brasileiro e encontra equivalência poética de sua obra através do uso criativo da linguagem cinematográfica.

A imprevisibilidade inerente ao futuro não permite apontar se esse panorama vai ser alterado a partir das transformações sociais em curso no Brasil. Mas um olhar sobre as forças emergentes na literatura e no cinema brasileiros aponta para o surgimento de artistas afrodescendentes capacitados para dotar essas áreas de um protagonismo que a cultura negra já ocupa em nosso país no campo da cultura popular e da religiosidade.


Fernando Severo é cineasta e professor de cinema. Dirigiu, entre outros filmes, o curta-metragem Visionários (2002) e o longa Corpos celestes (2009). Atualmente é diretor do Museu da Imagem e do Som do Paraná.