POEMAS | Daniele Rosa 31/05/2023 - 09:55
Falta e outros poemas
falta
como se a vida fosse faca
fosse alta
fosse qualquer coisa
que valha
*
para Anna
desejo atravessar a rua na faixa de pedestres sem olhar para os lados
e ser atropelada por um carro que furou o sinal vermelho em alta velocidade
desejo que meu corpo seja arremessado a dez metros de distância através do cruzamento
e quando cair no asfalto seja possível ouvir os ossos da cabeça se quebrando
desejo que o motorista não pare para socorrer e uma multidão se junte em volta do corpo
enquanto o sangue escorre por cima da faixa amarela do acostamento
desejo que alguém decida chamar a ambulância e o seu celular não funcione por falta de
bateria mas que haja um telefone público próximo e depois de um momento de dúvida a
pessoa se lembre do número a discar
desejo que meu corpo seja resgatado e levado para um hospital
com especialidade em traumatismos cranianos
e que sejam feitos todos os procedimentos possíveis
e que enquanto os médicos tentam decidir se devem ou não desligar os aparelhos
que eu sonhe com todos os segundos em que nos amamos
que eu sonhe,
*
a idade em que as poetas morrem
há uma idade em que as poetas morrem
com sua boca estática, sua língua de sal
seus poemas organizados em torno de uma doença irreparável
e a família toda avisada
há uma idade em que as poetas morrem
tocadas pela neblina da manhã
os seus corpos inertes
onde já não cabe mais uma palavra
há sempre uma certa idade
que cai como uma luva para a crítica literária
tão jovens, dirão
porém marcadas pela experiência, pela inovação
tudo que configure como um elogio
uma grande perda para o mundo
há um pico de onde saltam as poetas que morrem
se movem em direção a um lago um pouco sujo habitado por patos
balançam as folhas secas do outono que varrem a pista de cooper
e seus corredores indiferentes
como uma canção
há uma idade aceitável para a morte das poetas
uma idade lamentável
suportável
superável
o tempo de um susto
e tudo volta ao normal há uma idade em que as poetas morrem
quando não estão mais aqui
Daniele Rosa é poeta e mediadora de leitura. Edita fanzines e publicações artesanais na Conserva Edições e é integrante do coletivo Membrana. Teve poemas publicados na Feijoada da Meia Noite, Totem & Pagu, Revista Ensaia, Revista Farpa e Jornal Boca do Inferno, entre outros. Participou das coletâneas Detonação, corja! e Envelope Membrana. Lançou a dramaturgia Perpétuo (Urutau, 2021). Os poemas desta edição fazem parte de seu próximo livro, Café da Manhã com Arranha-Céus.