PENSATA | Renan Hayashi 30/03/2023 - 10:45

Textura: cortes, suturas e raspagens


Em Exórdios, o escritor e filósofo Henrique Komatsu aponta o que está na base de toda a discussão sobre literatura, pastiche, subjetividade e escrita: a dimensão incontornável da alteridade


Pra canonizar pessoas

é preciso milagres

Pra canonizar poetas,

apenas poemas.

Hélio Leites


“Tudo é pastiche”, assevera o personagem Andris — interpretado pelo ator Julian Glover — ante a queixa de Lydia Tár (Cate Blanchett) sobre suas mais recentes criações. Tár — em filme homônimo lançado no Brasil em 2023 —, regente e compositora, à frente da Filarmônica de Berlim, parece não estar satisfeita com seu processo criativo. A preocupação reside em sua percepção de que o que está criando não é nada além de um pastiche, ao que Andris propõe sua leitura generalizante. Ora, o que se coloca nessa cena é uma discussão que extrapola a seara musical e avança sobre todos os campos criativos em que a mente humana se manifesta. Da pintura à dança, da música às artes dramáticas, da arquitetura à literatura, tudo parece, em menor ou maior grau, uma constante iteração. Tanto que a própria discussão teórica do tema também já não é, de todo, inédita. De Walter Benjamin a Georges Didi-Huberman, as questões de inovação e de reprodução da arte sempre estiveram na superfície do processo de criação e recepção. O que a breve cena de Tár provoca é uma reflexão muito mais profunda a respeito do tema. Com efeito, fica-nos a dúvida: é possível criar algo realmente novo?

 

Pastiche e palimpsesto

O receio dos artistas em cair nas ciladas do pastiche tem fundamento. Não só pela — por vezes, fundamentada — acusação de plágio, mas, sobretudo, pela demanda incessante da criação do novo, do inédito, do jamais-visto, o qual resvala no processo criativo. Como se o que fosse criado hoje tivesse de nascer absolutamente higienizado e livre de influências anteriores para ser digno de admiração e reverência. Mais ainda, para ser considerado algo de valor. Do contrário, seria puro passadismo, acusariam alguns ao notarem os fios de inspiração. O fato é que não existe ninguém à frente de seu tempo. Mesmo aqueles considerados gênios e pontos fora da curva, estes só se constituem como tal a partir de elementos já dados pelo seu recorte histórico-social, localizados espacial e temporalmente. Agora, o que eles fazem com esses elementos dados já é outro assunto. Nesse sentido, pensemos, por exemplo, nesses ideais de belas artes considerados crivos de genialidade e inspiração. Pintores como o italiano Ticiano, expoente do Renascimento. Mesmo Ticiano, como mostra Daniel Arasse, em uma belíssima análise do quadro "Vênus de Urbino", apresentada na obra On N’y Voit Rien: Descriptions (Nada Se Vê: Descrições), mesmo ele, sinônimo de prodigiosidade, lançava mão de formas recorrentes e de construções advindas de um repertório prévio: “Quanto à modelo, ela já tinha sido pintada por Ticiano e o quadro seria copiado para outros clientes”.

Pensando no âmbito da escrita, essa busca por expressões literárias inovadoras e narrativas absolutamente inéditas cai, uma vez mais, na discussão do que se considera inspiração, repetição, cópia ou pastiche. Há teóricos do texto que apontam que não existe produção inédita. Cada texto é, pois, um elemento em uma cadeia de enunciados que ecoa os anteriores e antecipa os ulteriores. Por outro lado, há quem defenda possibilidades de inflexão que, em um dado momento, algo, verdadeiramente único, desponte no horizonte. Seriam estes últimos amantes de escritores europeus com traços de psicose não diagnosticada? Mais que isso, seria isso, de fato, possível? Fica essa pergunta para mim e para você, que nos lê.

Em realidade, para analisarmos a materialidade do texto, sempre o faremos a partir de um já-dado, de um já-conhecido. Pensemos, a título de exemplo, na escrita historiográfica. Para tanto, lanço mão da historiadora franco-quebequense Régine Robin. Segundo ela, a escrita da História — essa dos homens, mulheres e das coisas do mundo — tem estrutura de ficção e, para escrevê-la, Robin recorre “à colagem, à montagem, à composição, a tudo o que pode dar indícios de tempos esquivos que vivemos, a tudo que permite estremecer as temporalidades”. À vista disso, ela parte dessas evidências para escrever aquilo que vem a ser uma versão da História; dito de outro modo, uma composição que justapõe fragmentos que são costurados e concatenados, a fim de explicar a insanidade do espírito humano e as escolhas autodestrutivas das nações. Dessa forma, é sempre a partir de um já-vivido que a ficção da escrita historiográfica ganha corpo.

Da mesma maneira, o corpo da ficção literária se nutre daquilo que ergueu a literatura como campo das manifestações subjetivas humanas. De tal forma, é preciso repensar a noção de pastiche — cuja etimologia vem do latim vulgar, pasticium, dando origem à pasticcio, no italiano, e pastiche, no francês — na literatura, com vistas a reconhecer não somente os textos fundadores da cultura, mas também prestar tributo às asas de Ícaro que ensinaram mentes inquietas a voar. Por isso, no campo da literatura, estou muito mais inclinado a pensar na escrit(ur)a — aqui no sentido derridiano do termo — como um palimpsesto, seguindo os passos de Gérard Genette, ou ainda, como bem pontua Freud sobre a memória, um bloco mágico (Wunderblock).

Em outras palavras, a literatura seria como um grande anteparo, no qual se riscam, rabiscam, escrevem, reescrevem, raspam, sobrepõem, tentam apagar — sem, contudo, se apagar por completo — e escrevem novamente aquilo que não cessa de se inscrever na subjetividade humana. Digo mais, é precisamente por não encontrar uma forma definitiva de escrita, de sobreposição, de reescrita, que o anteparo continua reiteradamente sendo usado para receber mais e mais formas de representação subjetiva. Não se esgota. Simplesmente não é possível esgotar. Esse ponto de reflexão me faz recordar versos da escritora argentina Alejandra Pizarnik: ela se desnuda no paraíso / de sua memória / ela desconhece o feroz destino / de suas visões / ela tem medo de não saber nomear / o que não existe. O inexistente convoca a necessidade de uso da linguagem para expressar, precisamente, o que não consegue ser representado. Seria esse o intento maior da literatura? 

 

Recuo da / na História

Consideremos, então, textos que apresentam, de fato, elementos de ineditismo. Pensemos em algo absolutamente jamais visto. Consigo prever que este texto decerto não encontraria leitores aptos a reconhecerem de imediato sua magnitude. Não porque não existam bons leitores ou hábeis críticos de literatura. Não é isso. Este texto não encontraria de pronto seu reconhecimento porque é preciso um certo recuo histórico para perceber o que é disruptivo. Aquilo que se mostra como um acontecimento — uma vez mais no sentido derridiano do termo — convoca de cada um de nós um tempo para recompor nosso repertório, esgotar as possibilidades de comparação e assimilação para, por fim, dar o braço a torcer e dizer “de fato, isso nunca foi feito antes”. Eu experimentei um pouco dessa sensação recentemente, ao ter recebido — por ato de extrema gentileza — um boneco da mais recente obra, ainda não lançada, do escritor paulista-tingui Henrique Komatsu. Com o título sugestivo de Exórdios, Henrique apresenta poemas escritos em uma miscelânea de línguas — mas também culturas —, nos quais as não-coincidências do dizer apontam para a construção dos efeitos de sentido. Efeitos estes potencializados pelas ilustrações.

No poema de título "VI", o leitor é convidado ao estranhamento da convergência de línguas que atritam entre si, produzindo sentidos pelas faíscas que causam. Perceba que isso não implica em dizer que o atrito é sinônimo de incompreensão ou falta de sentido. Ao contrário. É na sobreposição — ou justaposição, nas palavras da mencionada historiadora Régine Robin — de códigos que o poema "VI" adquire os contornos necessários para convocar o leitor a acessar o que é simbolizado por meio da costura multilíngue.

 

 

VI 

A maça do rosto nolostro
Kal a montanha ao norte
monções deonte em farse
rincossesto alto o sexo
Efesto efesto varguia
Masto noite ungo o dia
Afasto ontem io hoje
Permivo calem masia.

 

Com efeito, nessa nova obra de Komatsu, o aspecto do palimpsesto nunca me pareceu tão evidente. Em meu gesto de interpretação, "VI" é o anteparo do palimpsesto com várias camadas verticais de um tanto de línguas sobrepostas. Onde se leem palavras do português do Brasil, a raspagem foi mais funda. Onde se leem palavras em italiano — presumo eu — utilizou-se um instrumento mais afiado não só para raspar, como também para escrever por cima. Onde as línguas se justapõem sincronicamente, a técnica de raspagem quis deixar a textura propositadamente irregular. E assim, na aspereza do relevo distinto, sentidos são (des)construídos e formas efetivamente inovadoras de conceber a escrita são propostas. Digo inovadoras, pois escrever em diferentes línguas não é, em absoluto, inédito. A história da poesia nos assevera isso. A poesia chicana, feita na fronteira Texas-México, produz criações de beleza ímpar e textos de espessuras incomparáveis. Estas se somam a obras em prosa, como a de Gloria Anzaldúa, Borderlands / La Frontera, tida por muitos como intraduzível, dada a quantidade de línguas presentes no livro, desde o inglês e o espanhol mexicano, até línguas indígenas como o náhuatl e o quéchua.

Toda essa reflexão fez lembrar a discussão de Derrida na obra O Monolinguismo do Outro, em que o autor propõe uma antinomia filosófica articulada em duas proposições contraditórias entre si: “Não falamos nunca senão uma única língua / não falamos nunca uma única língua”.

Em minha leitura, o que o Henrique faz, por meio de Exórdios, é apontar aquilo mesmo que está na base de toda a discussão sobre literatura, pastiche, subjetividade e escrita: a dimensão incontornável da alteridade. Pudera, Henrique, filósofo de formação e escritor, elege o anteparo literário para enunciar o transbordamento de sentidos que a alteridade — ou outridade — causa na subjetividade. Tema que também é caro à Filosofia. E não somente isso. Com Exórdios, a ilustração complementa aquilo que sem sossego busca sentido. Fora assim também em Seis Desenhos para Doesburg, outro título de autoria de Henrique. Além dessas obras, o escritor publicou A Igreja de Pedra, A Menina que Viu Deus e, mais recentemente, o belíssimo Ototo. Alguns desses títulos podem ser consultados na BPP.

Ao receber Exórdios, senti que precisava analisar os textos de Komatsu diacronicamente, ante a inquietação provocada. Percebi que a dobra na linguagem que o autor faz no livro é algo parecido com que ele fez na urdidura de obras anteriores. Em outras palavras, a busca por uma sintaxe da própria língua (literária). Como se cada livro fosse uma unidade morfológica que, ao se juntar a outra, pode compor um sintagma e propor um aspecto sintático na composição textual. E para analisar essa grande composição textual, uma vez mais, a proposição da leitura como um palimpsesto retorna pulsante. Você, leitor, pode pensar como tendenciosa minha predileção por esta forma de análise. Talvez. Mas aqui será necessário sugerir uma mea-culpa do próprio autor. Na dedicatória escrita nas primeiras páginas têm-se as seguintes palavras: “que nessas lâminas, você enxergue o corte”. Pensei na metáfora foucaultiana de leitura como corte, cisão no texto. Mas também compreendi, a partir da palavra “corte”, as fendas que se criaram no texto mediante as raspagens feitas. Se assim o for, posso dizer que, sim, enxerguei os cortes, assim como as fricções, reescrit(ur)as, rasuras e suturas do texto. E o que eu consegui ler? Bem, quando a obra for publicada, volto aqui para dizer até qual camada do texto eu raspei.


 


Renan Hayashi é professor adjunto no Departamento de Letras Estrangeiras Modernas da Universidade Federal do Paraná. Doutor em Linguística Aplicada (Unicamp) e Mestre em Linguística Aplicada (UnB) e é pesquisador das áreas de Linguagem / Subjetividade / Psicanálise, Língua Japonesa e Linguística Aplicada.