PENSATA | Jocê Rodrigues 29/09/2023 - 11:44

Spleen, Charutos e Tavernas: a enigmática vida de Álvares de Azevedo

 

PRÓLOGO: Na estrada

O século XIX abrigou em suas dobras fantasmas e esperanças. A revolução industrial, os avanços no estudo e no uso da eletricidade, as descobertas nos campos da ciência e da medicina e o crescimento e expansão das literaturas romântica e gótica, são apenas alguns dos acontecimentos que tornam essa época tão curiosa.

Dela vimos surgir uma visão de mundo que não se contentava mais com o que era belo e correto. Cada vez mais havia espaço para o grotesco, para o fantasmagórico, para o sobrenatural e até mesmo para o diabólico. Temas como morte, tristeza, desespero e suicídio estavam em voga. Tendências que não demoraram para chegar em muitos lugares do mundo. Incluindo no Brasil.

Imagine um jovem poeta em seu cavalo, percorrendo vasta estrada de terra. Depois de passar a infância no Rio de Janeiro, ele retorna para a cidade em que havia nascido. Seu destino: a Faculdade de Direito do Largo São Francisco, em São Paulo, fundada apenas vinte anos antes do seu nascimento.

De saúde frágil, que inspira cuidado constante, o garoto é dono de uma mente arguta. Desde muito cedo havia mostrado enorme aptidão intelectual e era considerado um prodígio pelos familiares. Leitor voraz, tem o costume de se encastelar em sua solidão e de se fartar do conhecimento de autores como Shakespeare, Dante, Leopardi, Shelley, Horácio, Lamartine, Alfred de Musset e tantos e tantos outros. Sua estatura física pode não ser das maiores, mas o seu intelecto é um verdadeiro colosso, capaz de se emparelhar à montanha mais alta.

Seus heróis não vestiam armaduras reluzentes e nem brandiam espadas em favor de uma fé ou de um ideal. Muito pelo contrário. Eles eram profanos, beberrões, sedutores inveterados e por vezes assassinos cruéis. Suas aventuras não eram por justiça, mas pelo pecado.

Durante o trajeto, o jovem poeta sente no peito o aperto por deixar o seio da casa materna, antecipando a tristeza e a saudade que o regresso à terra natal acenderia em seu coração. No entanto, ele imagina também o início do que pode ser uma aventura dolorosa e necessária para sua ascensão no mundo literário. Uma vontade que o levará a marcar para sempre a história da literatura brasileira e da então pequena cidade, que durante algum tempo, viverá assombrada pela sua selvagem presença.

O nome do jovem do poeta?

Manoel Antônio Álvares de Azevedo.

 

ATO 1: São Paulo, 1848

Ao contrário do Rio de Janeiro, capital do Império, São Paulo não tinha teatros, festas inacabáveis e nem as luzes ofuscantes do luxo e da cultura europeia. A cidade era pequena e contava com apenas 20 mil habitantes. O marasmo do lugar provocava profundo tédio em seu mais novo morador, que logo passou a escrever cartas para a mãe e para a irmã, reclamando sobre a vida pacata e monótona, muito diferente das noites de baile e ópera da capital.

Na época, existiam apenas duas opções para aqueles que quisessem cursar o ensino universitário no Brasil: a Faculdade de Direito de Olinda e a Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Essa última, ainda hoje uma das mais tradicionais e respeitadas do país, foi fundada em antigo convento e era conhecida também pelo nome de arcadas, devido à sua arquitetura.

Álvares de Azevedo foi um aluno exemplar e de grande espírito crítico. Entre as suas diversas realizações intelectuais está a fundação da Revista Mensal da Sociedade Ensaio Filosófico Paulistano.

Teve poucos, mas fiéis amigos. Entre eles destacam-se Aureliano Lessa e Bernardo Guimarães, que também eram escritores do mais alto calibre. Junto a eles, o jovem poeta viveu momentos felizes, em que conseguia esquecer um pouco da saudade que sentia do Rio de Janeiro ― muitas vezes, às custas da paz dos habitantes da então pequena São Paulo, pregando peças e participando das mais diversas estripulias.

Uma das brincadeiras feitas por ele e seus colegas foi forjar a própria morte, para que assim recebessem doações que mais tarde seriam usadas para pagar a sua noite de farra com seus comparsas. Por ser a pessoa de aparência mais frágil, ele seria o defunto perfeito.

Numa determinada noite, seus amigos o colocaram em uma mesa e o cobriram com um lençol branco. Depois, saíram em procissão levando o falso morto pelas ruas, enquanto gritavam a plenos pulmões para avisar aos vizinhos e moradores sobre o seu falecimento, chamando a todos para que fizessem doações para o enterro.

O plano foi bem-sucedido. A trupe arrecadou uma boa quantia e fez um velório repleto de comes e bebes, com a presença dos estudantes e dos moradores. Ao ver todos os colegas se refestelando enquanto ele se fingia de morto, Álvares se levanta de sua posição, exigindo a sua parte na festa. Movimento que causou o espanto dos desavisados, que saíram correndo acreditando que ele, da mesma forma que o personagem bíblico Lázaro, havia ressuscitado.

 

ATO 2: A Sociedade Epicureia

O interesse dos três amigos em temas sobrenaturais e na poesia de Lorde Byron influenciou enormemente a vida que levaram enquanto estudantes. Àquela altura, Byron era talvez o poeta mais conhecido no mundo e levava uma vida desregrada e chocante aos olhos da sociedade.

Entre os seus costumes estavam festas intermináveis, orgias e o hábito de tomar vinho em um crânio humano que havia roubado de um cemitério. Seus poemas descreviam tais cenas com minuciosos detalhes e despertava o interesse e a curiosidade de seus leitores, que muitas vezes invejavam o seu estilo selvagem e anárquico.

Inspirados na vida e na obra do poeta inglês, Bernardo Guimarães, Aureliano Lessa e Álvares de Azevedo fundaram uma república e foram morar juntos na Chácara dos Ingleses, na Rua da Glória. Lá, tinham por hábito cobrir as janelas com panos pretos, para que fosse sempre noite do lado de dentro, e organizavam festas regadas a bebida e ópio. Assim também eram as reuniões da Sociedade Epicureia, fundada, diz-se, no ano de 1845 e da qual passaram a participar.

O nome fora retirado do filósofo grego Epicuro, que viveu no século III a.C. Sua filosofia era baseada na ideia da busca moderada pelos prazeres obtidos pela prática da virtude como o bem superior do ser humano. Entretanto, a parte da virtude e da moderação foram praticamente esquecidas quando suas ideias foram passadas adiante por outros divulgadores, criando uma confusão que fazia com que as pessoas ligassem o epicurismo ao hedonismo (essa sim, baseada na busca pelos prazeres carnais).

As pequenas reuniões dos integrantes da Sociedade Epicureia chocavam a elite tradicional paulistana da época e a fama dos estudantes se espalhava, assim como histórias macabras e sinistras dos seus encontros.

Reza a lenda que, nas noites de celebrações, animais como sapos e morcegos eram espalhados pela casa, iluminada à luz de velas. Quando a noite corria alta, os amigos e convidados recitavam peças de Shakespeare, Dante e Byron, sempre com muita algazarra e bebedeira.

A tal sociedade foi descrita pelo escritor e folclorista José Vieira Couto de Magalhães como uma planta parasita que legou à São Paulo tristes recordações. Em um artigo publicado em 1859, ele assim descreveu a infame sociedade: “Composta de um grande número de moços talentosos, tinha ela a finalidade de realizar os sonhos de Byron”. As noites e as brincadeiras eram tão pesadas, que existe até mesmo um boato envolvendo a morte de uma pessoa.

Durante uma noite de festas, os estudantes resolveram ir até o cemitério dos escravos, localizado em frente à casa do trio Álvares, Bernardo e Aureliano, para saltar sobre as tumbas e violá-las enquanto se embriagavam. Depois, decidiram então ir até a casa de uma prostituta e colocá-la em um caixão. A pobre mulher foi movida à força e teve o caixão fechado. Feito isso, saíram pela rua levando o ataúde e entoando cantochões, enquanto caminhavam em direção ao cemitério.

Ao chegarem de volta ao local, perceberam que o caixão, que antes se agitava e de onde se ouviam os gritos da moça desesperada, estava quieto demais. Quando o abriram, encontraram a garota já sem vida. Ela havia morrido de puro pavor.

Um inquérito foi aberto para investigar a morte, mas ele não foi levado adiante, já que os envolvidos eram de famílias importantes, deixando o caso sem solução.

 

ATO 3: Passado familiar e ultrarromantismo

Parece que as lendas envolvendo escapadas e feitos inusitados eram comuns na família de Álvares de Azevedo. Seu pai, Inácio Manoel, também foi um estudante da Faculdade de Direito do Largo São Francisco e costumava fazer visitas noturnas à Maria Luísa, que mais tarde viria a ser a mãe de Álvares. Os encontros aconteciam, à noite, às escondidas e, para chegar até a janela da amada, Inácio escalava uma enorme cruz preta, que ficava posicionada bem ao lado da sacada dos aposentos da jovem.

Em uma dessas noites de visita amorosa, os colegas de faculdade armaram um plano. Logo depois de Inácio subir até o quarto de Maria Luísa, eles serraram e retiraram a cruz que servia de escada de acesso e saída ao intrépido amante, impossibilitando assim a sua descida. Inácio ficou sem um caminho de volta e a cidade, sem um de seus principais símbolos.

Outra lenda envolve o nascimento de Álvares de Azevedo, que segundo conta-se, teria vindo à luz na biblioteca da Faculdade do Largo São Francisco. Tudo porque Maria Luísa teria o costume de visitar o marido na Faculdade e, durante uma dessas visitas, sentiu as dores do parto e se acomodou na ala da biblioteca para trazer o filho ao mundo.

E embora essa não seja uma história verídica, a realidade não deixa de ser significativa. O verdadeiro nascimento de Maneco, apelido pelo qual o poeta era conhecido entre amigos e familiares, aconteceu mesmo em uma biblioteca, mas na do seu avô materno, que serviu de quarto para o seu parto. Lugar perfeito para receber um dos maiores poetas, que tratou de dar o seu toque particular ao movimento romântico.

 

 

O primeiro movimento do Romantismo brasileiro buscava uma identidade e a tinha encontrado na figura dos índios. Tinha como maiores representantes Gonçalves Dias, Gonçalves de Magalhães e José de Alencar. Álvares de Azevedo pertenceu à segunda fase do Romantismo nacional, mais conhecido como ultrarromantismo. De inspiração byroniana, as obras desse período eram marcadas por temas macabros e sombrios, e também pela melancolia, uma de suas principais marcas.

No século III a.C., o médico romano Galeno formulou a teoria dos quatro humores. Segundo ele, existem no corpo humano quatro humores, ou 4 fluídos corporais, que de acordo com o equilíbrio ou desequilíbrio são responsáveis pela saúde e pela doença. Sua teoria exerceu enorme influência na civilização ocidental e perdurou até a Idade Moderna. Segundo a teoria de Galeno, a melancolia é consequência da inundação do cérebro pela bile negra que se forma no baço.

O Spleen, termo em francês para baço, era usado para se referir à melancolia, que servia de mote para os poetas ultrarromânticos, que compuseram versos e mais versos sobre a tristeza e sobre o tédio da vida. Na obra de Álvares de Azevedo é possível encontrar diversas referências ao tema, como no poema “Spleen e Charutos”.

Assassinatos, visões sobrenaturais e necrofilia são outros assuntos que permeiam seus escritos, tornando-o um dos autores mais emblemáticos da sua geração.

 

 

Álvares de Azevedo faleceu no Rio de Janeiro em 25 de abril de 1852, com apenas 20 anos de idade. A causa da morte ainda gera debate. Alguns acreditam que tenha sido por causa da tuberculose que o acometeu. Outros dizem que foi em decorrência de um tumor na região do abdômen depois de uma queda de cavalo, enquanto estava de férias no Rio de Janeiro. Outra teoria junta as duas causas.

Um mês antes de sua morte, escreveu o poema “Se eu morresse amanhã”, que foi lido por um dos amigos em seu enterro.

Nenhuma das obras de Álvares de Azevedo foi publicada em vida, exceto um discurso comemorativo e alguns textos esparsos. Dentre aquelas publicadas postumamente estão o livro de poemas “A Lira dos Vinte Anos”, a peça "Macário'' e o livro de contos “Noite na Taverna”.

Sua vida pode ter sido breve, mas foi muito intensa, quase tão intensa quanto a dos personagens das histórias criadas por sua mente febril e melancólica.

 

EPÍLOGO: Máquina do tempo

Em muitos casos na história, grandes personalidades sobrevivem no tempo graças às lendas e fantasias criadas em torno delas. Álvares de Azevedo é certamente uma delas.

Não existem documentos que comprovem a existência da tal Sociedade Epicureia ou de muitas das outras lendas e histórias envolvendo Maneco e seus amigos. A verdade é que, até hoje, boa parte de sua vida continua uma grande incógnita.

Entretanto, essas histórias continuam a mexer com nosso imaginário e nos fazem pensar em tempos passados, em uma época completamente diferente da nossa, e de como seria viver nela. Um exercício mental, no mínimo, interessante para quem vive no tempo da hipervelocidade e hiperconectividade. Assim é a literatura: uma máquina do tempo que nos leva para vivenciar aquilo que já se foi.

 

 

Jocê Rodrigues é escritor, jornalista e pesquisador. Membro do Núcleo de Pesquisa em Direito Civil-Constitucional da UFPR (Grupo Virada de Copérnico).